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Dez passagens do livro O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853), de João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. M. de Carvalho



“Rufino não seria avis rara a bordo dos navios negreiros em que embarcou, pois africanos neles se empregavam em grande número. Além de trabalhar como marinheiros, eles conheciam as regiões fornecedoras de escravos, serviam como intérpretes e podiam melhor convencer, acalmar, organizar e controlar cativos cujas línguas soubessem falar. Geralmente esses homens do mar tinham sido escravos no Brasil e ali conseguido sua liberdade, como acontecera com o próprio Rufino. (...) Esses personagens, que um dia tinham sido vítimas do tráfico luso-brasileiro, uma vez libertos passaram a ocupar vários postos na hierarquia do mesmo negócio, e não apenas nas escalas mais inferiores. Só não os encontramos, ainda, na condição de capitães e donos de navios empregados na rota transatlântica. (...) Uma vantagem adicional para que os traficantes empregassem africanos era a maior resistência destes às doenças tropicais, muitas vezes letais, que infestavam a costa africana, em uns mais que noutros lugares, especialmente a malária, a febre amarela e o tifo. Africanos como Rufino deviam ser dotados de sistema imunológico muito bom. Afinal, além da experiência da escravidão, haviam antes sobrevivo à travessia atlântica nos porões de negreiros, onde uma infinidade de doenças era facilmente contraída. Os sobreviventes já eram imunes a esses males ou se tornavam imunes com a viagem.”


“Rufino José Maria permite observar o amplo leque de possibilidades aberto e perseguido pelos africanos escravizados no Brasil, ou pelo menos por alguns deles. Inclusive a possibilidade de, uma vez libertos, se associarem à empresa do tráfico para alimentar a máquina da escravidão atlântica que um dia os vitimara. Embora o tráfico fosse um empreendimento sobretudo de homens brancos brasileiros e portugueses (e, em momentos diferentes, também de ingleses, norte-americanos, jamaicanos, espanhóis, cubanos, franceses e até dinamarqueses, entre outros), negros crioulos e africanos de diversas origens, nas duas margens do Atlântico, também estiveram envolvidos. Da mesma forma, se o homem branco foi quem mais escravizou, africanos e seus descendentes o fizeram não apenas na África, mas também no Novo Mundo, e no Brasil com frequência. Para quem não está acostumado com a história da escravidão e do tráfico, este é o aspecto não apenas mais surpreendente como mais difícil de aceitar do ponto de vista moral, até doloroso.”


“Se não era um malê aguerrido, Rufino representava outro tipo de ameaça, espécie de afronta cultural e mesmo psicológica ao mundo dos brancos brasileiros, por se tratar de negro que se orgulhava de ser diferente, um muçulmano com poderes para curar, adivinhar, juntar e separar amantes, botar e tirar feitiço, o que o fazia um notável entre os africanos do Recife. Um ex-escravo africano e muçulmano não era facilmente integrado num país católico escravista. Muito menos um sujeito articulado, poliglota, viajado, cosmopolita e carismático como Rufino. E, talvez o mais importante, africano que sabia ler e escrever, dominando assim um símbolo fundamental de civilização naquele tempo e lugar (...) Rufino foi capaz de influenciar a vida de quem o procurava, inclusive de brancos. (...) Havia criado raízes no país onde fora escravo, que conhecia de norte a sul, onde lhe havia nascido um filho, tinha discípulos entre africanos desterrados e clientes entre estes e os nativos da terra. (...) Na linguagem da época, pessoas como Rufino, nascidas na África e experimentadas nos mundos da escravidão atlântica, eram tidas como ladinas no Brasil. Nesse sentido, Rufino seria um ‘ladino atlântico’ que, no entanto, decidira lançar âncoras definitivamente em terra firme brasileira.”


“As condições de transporte dos escravos nos tumbeiros contam uma história à parte de puro terror (...) Os traficantes carregavam o maior número possível de cativos, conscientes de que, apesar do consequente aumento da mortalidade, os lucros seriam também crescentes. As condições no porão pioraram com a proibição porque os negreiros não mais precisavam dar satisfação aos funcionários alfandegários e a outras autoridades sobre o volume permitido e as condições de transporte da carga humana. O número de dias a bordo também aumentou (...) a mortalidade mais que dobrou, de 7,1% para 15,5% (...) A depender do tempo da travessia, faltavam comida e água, e o excesso de bocas era amiúde sacrificado aos tubarões, esses ‘invariáveis batedores dos navios negreiros’, nas palavras de Herman Melville. (...) Respirar, simplesmente, virava um angustiante exercício de mera sobrevivência. Ao calor, à umidade, à pouca ventilação e à escassez crônica de água, juntava-se o odor dos excrementos que se acumulavam com o passar dos dias (...) muitos morriam por ‘calor excessivo e a falta de água’, um (...) ‘sufoco absoluto’.”


“(...) segundo Robert Walsh: ‘(...) Os escravos estavam todos confinados entre conveses, com escotilhas gradeadas. O teto era tão baixo e lugar tão apertado que se sentavam entre as pernas uns dos outros, arrumados tão juntos que não lhes era absolutamente possível deitar ou mudar de posição, de noite ou de dia. Porque pertenciam ou foram destinados a diferentes indivíduos, foram todos marcados, como carneiros, com as diferentes marcas de seus proprietários. Estas eram impressas a ferro quente abaixo do peito ou nos braços, conforme me informou o imediato com perfeita indiferença. Sobre a escotilha estava um sujeito de aparência feroz, era o feitor do navio, tendo nas mãos um chicote de muitas tiras de couro trançado, que sempre que ouvia o mais leve ruído embaixo ele o sacudia sobre suas cabeças, e parecia ansioso por usá-lo. (...) como era possível a um número tão grande de seres humanos estarem compactados e socados tão juntos quanto pudessem, em celas baixas de um metro de altura, onde não entrava luz nem ventilação (...) e isso quando o termômetro no convés, ao ar livre e à sombra, marcava 31,6 ºC’.”


“O contrato e as cartas apreendidas pelos britânicos revelam as operações da empresa para a qual Rufino viria a trabalhar. (...) o contrato estabelecia uma sociedade comercial, subscrita por vinte acionistas, cujos nomes infelizmente não aparecem na papelada, cada um com quatro contos de réis, totalizando oitenta contos. Azevedinho foi designado tesoureiro, mas suas funções iam muito além da contabilidade. Era antes o estrategista: instruiria os agentes da companhia, mandaria construir barcos, faria a empresa funcionar. (...) O objetivo explícito da empresa era o tráfico de escravos. Para tanto, além de providenciar a compra de navios e mercadorias, estabeleceriam uma feitoria no reino do Benim. (...) Essa deve ter sido uma das primeiras ‘companhias capitalistas’ desse tipo, adaptadas aos riscos gerados pelas novas circunstâncias do comércio atlântico de escravos, que se tornara uma atividade à margem da lei. (...) Nas suas detalhadas instruções, Azevedinho demonstrava intimidade com o tráfico e com as formas de negociar escravos naquela parte da África. Suas cartas constituíam verdadeiro manual de conduta de uma empresa moderna. A diferença é que a mercadoria eram homens, mulheres e crianças.”


“(...) Um africano como Rufino, que tivera a experiência de ser um dia cativo no porão de um tumbeiro, talvez estivesse mais inclinado a dar o serviço aos ingleses por presumível solidariedade às vítimas daquele tipo de comércio. Os ingleses, porém, já estavam calejados em saber que não era este o caso. (...) Os marinheiros africanos, em geral, confirmavam com os demais tripulantes as histórias fantasiosas de ventos e correntes fortes que teriam desviado navios das rotas declaradas em seus documentos de viagem, histórias decerto ensaiadas por toda a tripulação. (...) a fidelidade dos tripulantes a seus empregadores e protetores representava virtude altamente apreciada. Entende-se, portanto, por que tantos deles tivessem dado depoimentos favoráveis aos traficantes, quando não eram eles próprios minitraficantes. Essa obediência a uma espécie de lei de silêncio, típica de qualquer crime organizado, não era característica apenas de libertos, mas de todos os envolvidos no comércio de gente, inclusive os ainda escravizados. (...) Então os ingleses deviam saber que não podiam esperar colaboração do cozinheiro Rufino apenas por se tratar de africano um dia traficado e por isso supostamente simpático à causa da repressão ao tráfico. Afinal, era o tráfico que lhes dava emprego.”


“Era preciso alimentar os cativos o suficiente para que permanecessem vivos, mesmo que enfraquecidos pela fome e pela sede e deprimidos diante do absoluto horror da situação em que se encontravam. A comida dos cativos tinha de ser feita a cada dia e de forma adequada. Comiam biscoito, bolacha, arroz, inhames e farinhas, a de milho de preferência, mas que podia ser substituída pela de mandioca, mais barata no circuito brasileiro do tráfico. Vez por outra — duas vezes por semana, segundo depoimento de um cativo —, um pouco de charque acrescentava alguma proteína animal à ração servida. A umidade e as altas temperaturas tropicais não ajudavam na conservação dos alimentos. Se a farinha ou o arroz estragassem, o resultado podia ser desastroso. O cozinheiro de um navio negreiro, em suma, era um dos principais responsáveis — talvez mais do que o cirurgião, quando existia um a bordo — pela manutenção da taxa de sobrevivência dos cativos dentro de margens aceitáveis de lucro. Acrescente-se, no caso de Rufino (...) possível que ele, além de cozinhar, cuidasse da botica dos navios em que veio a trabalhar. Além disso, enquanto muçulmano, podia confeccionar amuletos protetores para seus parceiros (e para o próprio navio) no perigoso ofício do mar.”


“Os relatórios de Cézar e de seus subalternos indicam que eram altos os impostos pagos aos vários escalões da hierarquia africana, que exigia dos agentes da companhia outro tanto na forma de complexos códigos de etiqueta e deferência. A concorrência também era grande. Os negociantes e a nobreza africanos contavam com vários fornecedores de produtos europeus e brasileiros, e tinham outros canais para exportar sua preciosa mercadoria humana. Havia séculos que negociavam com o mundo atlântico. Foi de Gotto, porto mais próximo ao reino do Benim, que os portugueses levaram escravos, ainda no final do século XV, para trocar por ouro na Costa do Ouro, atual Gana. Os africanos sabiam muito bem o que queriam dos traficantes, às vezes coisas bem específicas a que já se haviam acostumado. O rei do Benim, por exemplo, mandou em 1837 uma menina com o específico propósito de ser trocada na feitoria de Azevedinho por presunto, diferentes tipos de bolacha, manteiga, salsicha, açúcar e chá.”


“Não dizemos que inexistissem abolicionistas sinceros entre os oficiais britânicos que combatiam o tráfico. Longe disso. Mas é um fato que essa autoproclamada missão deu ao governo de sua majestade britânica um instrumento ideológico para justificar sua hegemonia marítima. Os exageros da Marinha inglesa, inclusive, terminaram servindo aos grandes negociantes de escravos, que, denunciando-os, ganharam seu próprio instrumento de luta ideológica. Os defensores do tráfico no Brasil apropriaram-se de um discurso nacionalista segundo o qual o tráfico seria um direito dos brasileiros, que não deveriam se submeter ao império britânico. Poucos no Brasil se atreviam a defender abertamente o ‘infame comércio’, mas tornou-se rotina na imprensa e no Parlamento o protesto contra a arrogância da Marinha inglesa. Esse discurso nacionalista, ufanista, anti-inglês, ganharia cada vez mais adeptos”


Presentes no livro “O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853)” (Companhia das Letras, 2017), de João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. M. de Carvalho, páginas 138 a 140, 359, 357-358, 102-103, 104, 150-151, 209 a 211, 101-102, 158 e 257, respectivamente.

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