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Mostrando postagens de março, 2023

Dez passagens de Jorge Amado no romance Tenda dos Milagres

“‘O mundo só será realmente civilizado quando as fardas forem objetos de museu’.”           “Depois foi tomar o banho de folhas, escolhidas uma a uma por Ossaim. No mel e na água de pitanga, no sal e na pimenta-malagueta preparou a arma e a viu crescer, descomunal bordão de caminhante. No bolso escondeu o quelé, o xaorô e o coração da pomba, a conta vermelha e branca de Xangô. Na porta da Tenda, ele a esperou chegar.           Apenas surgiu na esquina e começaram, não houve fuleragem nem fricotes; mal a iabá apareceu e a estrovenga foi ao seu encontro e lhe subiu as saias engomadas, ali mesmo metendo, na exata medida do xibiu: fogo com fogo, mel com mel, sal com sal, pimenta com pimenta e malagueta. Contar essa batalha, essa guerra das duas competências, o assalto da égua e do cavalo, o miar da gata em desvario, o uivo do lobo, o ronco do javali selvagem, o soluço da donzela na hora de mulher, o arrulho do pombo, o marulho das ondas, contar, amor, quem poderia?           Rolaram pela l

A obra de Clarice Lispector

Clarice homenageada com um doodle , na arte da sua neta Mariana Valente Eu sou fã de Clarice Lispector . Tenho todos os seus livros (exceto os infantis). Foi a autora predileta na época da escola, quem me virou de ponta-cabeça e me mostrou que literatura é arte e é muito bom escrever, a observar e a dissecar o ser humano. É uma frasista memorável, e eu tive a sorte de comprar e ler a sua coleção especial dos 100 anos , lançada pela Rocco em 2020 , belas edições com pedaços dos seus quadros nas capas [paguei com o 1 º cachê que recebi como autor na vida, para marcar que é muito bom ser remunerado pelo trabalho artístico]. Entre 2014  e 2023 , selecionei 408 trechos de 20 livros de Clarice Lispector e publiquei-os por aqui. Abaixo, segue o índice, para celebrar a obra da maga. Clarice eterna! As crônicas “O inalcançável é sempre azul” Leia aqui Os contos “O proibido é sempre o melhor” Leia aqui Os romances “Cada dia é um dia roubado da morte” Leia aqui

Toda poesia, de Ferreira Gullar

Quando vejo a imagem do poeta Ferreira Gullar , só me lembro do meu pai: cara de carranca e cabelos grandes, magro, filopoeta e contestador. São contemporâneos de nascimento, dos longínquos anos 1930 . Nos 80 anos do poeta maranhense, estive presente na mesa-festa dedicada a ele na Flip 2010 e, a poucos metros do futucador nascido Ribamar , mais um Zé desse Brasil surreal, nordestinamente me conecto ao sergipano Ildegardo , que faria 80 no ano seguinte. “ Dentro da noite veloz ” me apresenta o trabalho de Gullar [exigido no colégio], mas é “ Poema sujo ” que me choca e forma o gosto por poemas para muito além da forma e prepotência; é o jorro que importa, os enquadros que fotografam o que todo mundo vê, mas quase ninguém eterniza. Em 2011 , faço um teste: na prateleira de poesia da Cultura , leio um monte de autor, e o único livro que compro, o único que me satisfaz, é “ Em alguma parte alguma ”, o último livro do maranhense, morto em 2016 . No comecinho de 2022 , com as vendinhas p

Os contos de Clarice Lispector

Eu também amo os contos de Clarice Lispector . Depois das crônicas, é o seu estilo que mais admiro. Quando eu descobri a maga na escola, foi um grande impacto, pois até então, a literatura infantojuvenil que eu tive acesso, não parecia o suficiente — ler os contos de Clarice foi um divisor de águas. Quando o livro “ Laços de família ” entrou na minha turma, foi um desastre, o pessoal não compreendia. Para mim, foi um choque perceber que você poderia ter uma literatura que não tratasse apenas da história, do enredo, e sim da complexidade, da profundidade, da formação psicológica dos personagens. Foi o que Clarice me mostrou: não interessa a história; interessa é entender o ser humano, expor os seus sentimentos, deflorá-lo. E, quando você é jovem, acontece o espanto: “meu Deus, isso é possível, isso é arte”. Revolucionou a minha vida! Completamente. Os contos de Clarice foram a minha 1 ª paixão literária. Seguem abaixo, uma coleção dos seus melhores momentos. Clarice eterna! “Laços

Dez poemas de Ferreira Gullar no livro Em alguma parte alguma

Ferreira Gullar (foto: Eduardo Simões/IMS) A relativa eternidade Ferreira Gullar Cruzo a rua e vejo                              sobre a montanha                              que se ergue no horizonte para além da Lagoa                  nuvens matinais                  iluminadas                                     contra um céu muito azul como na primeira manhã do mundo (ainda que              em todos os dias do ano              quando faz sol              essa festa matinal se tenha repetido por séculos) mas pouco importa:            é hoje manhã pela primeira vez ainda que            antes de terem aqui chegado os portugueses             já ali estivessem a montanha                             o céu azul                             e as nuvens a se esgarçarem quer houvesse             ou não             (como agora)             alguém para vê-los e então me digo:   se o mundo dura tanto   e eu tão pouco            importa pouco            se ele não for eterno -------- Perplexidade

Vinte passagens de Clarice Lispector no livro Todos os contos

“(...) o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila, e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender. (...) Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. (...) Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o

Dez poemas de Ferreira Gullar no livro Muitas vozes

Ferreira Gullar (foto: Greg Saliban) Visita Ferreira Gullar no dia de finados ele foi ao cemitério porque era o único lugar do mundo onde podia estar perto do filho mas diante daquele bloco negro de pedra impenetrável entendeu que nunca mais poderia alcançá-lo                Então apanhou do chão um pedaço amarrotado de papel escreveu eu te amo filho pôs em cima do mármore sob uma flor e saiu soluçando -------- Meu pai Ferreira Gullar meu pai foi ao Rio se tratar de um câncer (que o mataria) mas perdeu os óculos na viagem quando lhe levei os óculos novos comprados na Ótica Fluminense ele examinou o estojo com o nome da loja dobrou a nota de compra guardou-a no bolso e falou: quero ver agora qual é o sacana que vai dizer que eu nunca estive no Rio de Janeiro -------- Nova concepção da morte Ferreira Gullar Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso na carne, como sempre ocorre aos seres vivos; um aviso, um sinal, que não lhe veio de fora, mas do fundo do corpo, onde a morte mora, ou dizendo m