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Vinte passagens de Clarice Lispector no livro Todos os contos



“(...) o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila, e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender. (...) Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. (...) Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição.”


“(...) devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. (...) a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim. (...) Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. (...) Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. (...) Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu — que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. (...) Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. (...) Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos.”


“(...) Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso — nesse instante está sendo morto um inocente.”


“(...) No fundo sou sozinha. Há verdades que nem a Deus eu contei. E nem a mim mesma. Sou um segredo fechado a sete chaves. Por favor me poupem. Estou tão só. Eu e meus rituais. O telefone não toca. Dói. Mas é Deus que me poupa. Amém.”


“(...) Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge — minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. (...) Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria. (...) Só horas depois é que veio a salvação. (...) Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.”


“(...) quando estava chovendo, hoje mesmo, eu profanei a Criação com um coração tão torturado e uma alma onde havia tanta raiva que a bondade das criaturas não podia entrar. Levei minha cara para a rua, sobre uma maca, mostrando-a a todos: chorem por mim, chorem por mim. E toda vez que alguém sorria, eu gritava: mor-te-mor-te-mor-te. Confesso, contrita e arrependida, que eu me alegrava quando a coisa saía bem-feita. (...) Mas hoje voltei cedo para casa e no meu quarto não tinha, como sempre, ninguém, e eu fiquei sozinha com meus trinta e dois anos incompletos e me pus a chorar, com pena de mim. Tentei tudo, afianço-lhe, para melhorar. Repeti, repeti: que a maldição caia sobre mim, se eu não ficar alegre! Nenhum resultado. Tentei com melhores modos: você nada é, que direito tem de ficar triste? Zero. Então eu vi que era sincera, embora não compreendesse por que, numa terra tão feliz, eu chorava. (...) E o pior é que comecei a ficar orgulhosa: será que outras pessoas sentem o que eu sinto? aposto que não. Estás vendo, amor, como se pode chegar a um grau de desgraça tal em que se ama a própria ferida.”


“Estou tão perdida. Mas é assim mesmo que se vive: perdida no tempo e no espaço. (...) Eu sei morrer. Morri desde pequena. E dói mas a gente finge que não dói. Estou com tanta saudade de Deus.”


“O dia inteiro o amor exigindo um passado que redimisse o presente e o futuro. O dia inteiro, sem uma palavra, ela exigindo dele que ele tivesse nascido no ventre dela. A prima não queria nada dele, senão isso. Ela queria do menino de óculos que ela não fosse uma mulher sem filhos. Nesse dia, pois, ele conheceu uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo irrealizável. A estabilidade do ideal inatingível. Pela primeira vez, ele, que era um ser votado à moderação, pela primeira vez sentiu-se atraído pelo imoderado: atração pelo extremo impossível. Numa palavra, pelo impossível. E pela primeira vez teve então amor pela paixão. (...) E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O relance mais profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria. Não um relance de pensamento. Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar. Talvez tenha sido a partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.”


“Eu estava muito triste. E sem saber o que fazer para ajudá-lo. É uma terrível impotência, essa de não saber como ajudar.
Ele me disse:
— Se eu um dia me suicidar...
— Você não vai se suicidar coisa alguma, interrompi-o. Porque é dever da gente viver. E viver pode ser bom. Acredite.
Quem só faltava chorar era eu.
Não havia nada que eu pudesse fazer.”


“Carla era dançarina no ‘Erótica’. Era casada com Joaquim que se matava de trabalhar como carpinteiro. E Carla ‘trabalhava’ de dois modos: dançando meio nua e enganando o marido. (...) Não tinha filhos. Joaquim e ela não se ligavam. Ele trabalhava até dez horas da noite. Ela começava a trabalhar exatamente às dez. Dormia o dia inteiro. (...) Desnudava-se, sim, mas os primeiros momentos de dança e requebro eram de vergonha. Só ‘esquentava’ minutos depois. Então se desdobrava, requebrava-se, dava tudo de si mesma. No samba é que era boa. Mas um blues bem romântico também a atiçava. (...) Era chamada a beber com os fregueses. Recebia comissão pela garrafa de bebida. Escolhia a mais cara. E fingia beber: não era de álcool. Fazia era o freguês se embebedar e gastar. Era tedioso conversar com eles. Eles a acariciavam, passavam as mãos pelos seus mínimos seios. E ela de biquíni cintilante. Linda. (...) De vez em quando dormia com um freguês. Pegava o dinheiro, guardava-o bem guardadinho no sutiã e no dia seguinte ia comprar roupas.”




“(...) Que podia eu fazer, afinal? Desde pequena tinha visto e sentido a predominância das ideias dos homens sobre a das mulheres. Mamãe antes de casar, segundo tia Emília, era um foguete, uma ruiva tempestuosa, com pensamentos próprios sobre liberdade e igualdade das mulheres. Mas veio papai, muito sério e alto, com pensamentos próprios também, sobre... liberdade e igualdade das mulheres. O mal foi a coincidência de matéria. Houve um choque. E hoje mamãe cose e borda e canta no piano e faz bolinhos aos sábados”


“— Eu também entendo você.
— Você? a você só importa a literatura.
— Pois você está enganado. Filhos, famílias, amigos, vêm em primeiro lugar.
Olhou-me desconfiado, meio de lado. E perguntou:
— Você jura que a literatura não importa?
— Juro, respondi com a segurança que vem de íntima veracidade. E acrescentei: qualquer gato, qualquer cachorro vale mais do que a literatura.
— Então, disse muito emocionado, aperte minha mão. Eu acredito em você.”


“(...) eu não queria era esse agradecimento que não só era a minha pior punição, por eu não merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me atraía. Eu bem quis lhe avisar que não se acha tesouro à toa. Mas, olhando-o, desanimei: faltava-me a coragem de desiludi-lo. Eu já me habituara a proteger a alegria dos outros, a de meu pai, por exemplo, que era mais desprevenido que eu. Mas como me foi difícil engolir a seco essa alegria que tão irresponsavelmente eu causara! Ele parecia um mendigo que agradecesse o prato de comida sem perceber que lhe haviam dado carne estragada. O sangue me subira ao rosto, agora tão quente que pensei estar com os olhos injetados, enquanto ele, provavelmente em novo engano, devia pensar que eu corara de prazer ao elogio. Naquela mesma noite aquilo tudo se transformaria em incoercível crise de vômitos que manteria acesas todas as luzes de minha casa.”


“Já tentei olhar bem de perto o rosto de uma pessoa — uma bilheteira de cinema. Para saber do segredo de sua vida. Inútil. A outra pessoa é um enigma. E seus olhos são de estátua: cegos.”


“(...) Sim, repeti embriagada, porque o perigo maior não existe: quando se vai, se vai junto, você mesma sempre estará; isso, isso você levará consigo para o que for ser. (...) A agonia de seu nascimento. Até então eu nunca vira a coragem. A coragem de ser o outro que se é, a de nascer do próprio parto, e de largar no chão o corpo antigo. E sem lhe terem respondido se valia a pena.”


“Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado — que fora da janela se balançava em acácias e sombras — eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.”


“A forma do cavalo representa o que há de melhor no ser humano. Tenho um cavalo dentro de mim que raramente se exprime. Mas quando vejo outro cavalo então o meu se expressa. Sua forma fala. (...) Tentando pôr em frases a minha mais oculta e sutil sensação — e desobedecendo à minha necessidade exigente de veracidade — eu diria: se pudesse ter escolhido queria ter nascido cavalo. Mas — quem sabe — talvez o cavalo ele-mesmo não sinta o grande símbolo da vida livre que nós sentimos nele. Devo então concluir que o cavalo seria sobretudo para ser sentido por mim? O cavalo representa a animalidade bela e solta do ser humano? O melhor do cavalo o ente humano já tem? Então abdico de ser um cavalo e com glória passo para a minha humanidade. O cavalo me indica o que sou.”


“(...) agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tomava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. (...) Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. (...) A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos.”


“(...) Brasília é o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília é uma estrela espatifada. Estou abismada. É linda e é nua. O despudoramento que se tem na solidão. Ao mesmo tempo fiquei com vergonha de tirar a roupa para tomar banho. Como se um gigantesco olho verde me olhasse implacável. Aliás Brasília é implacável. Senti-me como se alguém me apontasse com o dedo: como se pudessem me prender ou tirar meus documentos, a minha identidade, a minha veracidade, o meu último hálito íntimo. Ai se a radiopatrulha me pega e me sova! aí eu lhes digo a pior palavra da língua portuguesa: sovaco. E eles caem mortos. Mas para ti, meu amor, sou mais delicada e digo baixinho: axilas...”


“(...) parecia-lhe que se desse à criança o nome de Jesus, ele seria, quando homem, crucificado. Era melhor dar-lhe o nome de Emmanuel. Nome simples. Nome bom. (...) Esperava Emmanuel sentada debaixo de uma jabuticabeira. E pensava: Quando chegar a hora, não vou gritar, vou só dizer: ai Jesus!”


Presentes no livro “Todos os contos” (Rocco, 2016), de Clarice Lispector, páginas 389, 386-387, 390, 607, 399-400, 103-104, 617-618, 334, 554, 573-574, 78-79, 552, 274-275, 528, 361, 280, 470-471, 282-283, 598 e 547, respectivamente.


Aforismos de Clarice em “Todos os contos”

“Viver é missão suicida”

“Mesmo no meio das coisas de que mais gosto, eu tenho vontade de largar tudo e ir embora”

“Abandona o que destrói”

“Eu tenho até medo de mim, em alguns momentos”

“Futuramente seremos apenas os mortos antigos dos outros”

“Eu não passo de frases ouvidas por acaso”

“Palavras são pedras duras e as sensações delicadíssimas, fugazes, extremas”

Aforismos presentes no livro “Todos os contos” (Rocco, 2016), de Clarice Lispector, páginas 385, 105, 109, 103, 384, 597 e 612, respectivamente.

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