“Mas que é o corpo?
Meu corpo feito de carne e de osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas,
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras
e os carinhos mais doces mais sacanas
mais sentidos
para explodir como uma galáxia
de leite
no centro de tuas coxas no fundo
de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo
do teu corpo do meu corpo
corpo
que pode um sabre rasgar
um caco de vidro
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga como a um continente
ou um jardim
(...)
Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
dois olhos
e um certo jeito de sorrir
de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
que meu filho identifica
como sendo de seu pai
corpo que se para de funcionar provoca
um grave acontecimento na família:
sem ele não há José de Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre
(...)
corpo
nordestino
mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense
newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria
sob o signo de Virgo
sob as balas do 24º BC
na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
num tique-taque que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)
tique-taque tique-taque
enquanto vou entre automóveis e ônibus
entre vitrinas de roupas
nas livrarias
nos bares
tique-taque tique-taque
pulsando há 45 anos
esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
debaixo da capa, do paletó, da camisa
debaixo da pele, da carne
combatente clandestino aliado da classe operária
meu coração de menino”
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“Me reflito em tuas águas
recolhidas:
no copo
d’água
no pote d’água
na tina d’água
no banho nu no banheiro
vestido com as roupas
de tuas águas
que logo me despem e descem
diligentes para o ralo
como se de antemão soubessem
para onde ir
Para onde
foram essas águas
de tantos banhos de tarde?
Rolamos com aquelas tardes
no ralo do esgoto
e rolo eu
agora
no abismo dos cheiros
que se desatam na minha
carne na tua, cidade
que me envenenas de ti,
que me arrastas pela treva
me atordoas de jasmim
que de saliva me molhas me atochas
num cu
rijo me fazes
delirar me sujas
de merda e explodo o meu sonho
em merda.
Sobre os jardins da cidade
urino pus. Me extravio
(...)
Acordo na zona. O dia ladra, navega
enfunado e azul
Voo
com as toalhas brancas
Vou pousar no sorriso de Isabel
Tropeço num preconceito caio das nuvens
descubro Marília
me aconchego em suas pétalas como a pomba
do Divino entre rosas na bandeja
Mas vem junho e me apunhala
vem julho me dilacera
setembro expõe meus despojos
pelos postes da cidade
(me recomponho mais tarde,
costuro as partes, mas os intestinos
nunca mais funcionarão direito)
Prego a subversão da ordem
poética, me pagam. Prego
a subversão da ordem política,
me enforcam junto ao campo de tênis dos ingleses
na Avenida Beira-Mar
(...)
(Se tivesse me casado com Maria de Lourdes,
meus filhos seriam dourados uns, outros
morenos de olhos verdes
e eu terminaria deputado e membro
da Academia Maranhense de Letras;
se tivesse me casado com Marília,
teria me suicidado na discoteca da Rádio Timbira)”
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“De noite, porque
a luz é pouca,
a gente tem a impressão
de que o tempo não passa
ou pelo menos não escorre
como escorre de dia:
como se se desse uma interrupção
para o dr. Bacelar fazer uma palestra
no Grêmio Lítero-Recreativo Português
uma interrupção
para que os operários da fábrica Camboa
descansem um pouco
e se reproduzam nas redes
ou nas esteiras
se amando sem muito alarde
para não acordar os filhos que dormem no mesmo quarto
Como se o tempo
durante a noite
ficasse parado junto
com a escuridão e o cisco
debaixo dos móveis e
nos cantos da casa
(mesmo dentro
do guarda-roupa,
o tempo,
pendurado nos cabides)
(...)
A noite nos faz crer
(dada a pouca luz)
que o tempo é um troço
auditivo.
Concluídos os afazeres noturnos
(que encheram a casa de rumores,
inclusive as últimas conversas no quarto)
quando enfim a família inteira dorme —
o tempo se torna um fenômeno
meramente químico
que não perturba
(...)
Numa coisa que apodrece
— tomemos um exemplo velho:
uma pera —
o tempo
não escorre nem grita,
antes
se afunda em seu próprio abismo,
se perde
em sua própria vertigem,
mas tão sem velocidade
que em lugar de virar luz vira
escuridão;
o apodrecer de uma coisa
de fato é a fabricação
de uma noite:
seja essa coisa
uma pera num prato seja
um rio num bairro operário”
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“Perdeu-se na carne fria
perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta
(...)
Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem
que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,
ou dentro de um ônibus
ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico
acima do arco-íris
perfeitamente fora
do rigor cronológico
sonhando
(...)
E também rastejais comigo
pelos túneis das noites clandestinas
sob o céu constelado do país
entre fulgor e lepra
debaixo de lençóis de lama e de terror
vos esgueirais comigo, mesas velhas,
armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,
dobrais comigo as esquinas do susto
e esperais esperais
que o dia venha
E depois de tanto
que importa um nome?
Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo:
te chamo aurora
te chamo água
te descubro nas pedras coloridas nas artistas de cinema
nas aparições do sonho”
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“muitos dias há num dia só
porque as coisas mesmas
os compõem
com sua carne (ou ferro
que nome tenha essa
matéria-tempo
suja ou
não)
os compõem
nos silêncios aparentes ou grossos
como colchas de flanela
ou água vertiginosamente imóvel
(...)
coberto pela sombra quase pânica
das árvores
de galhos que subiam mudos
como enigmas
tudo parado
feito uma noite verde ou vegetal
e de água
(...)
muitos são os dias num só dia
fácil de entender
mas difícil de penetrar
no cerne de cada um desses muitos dias
porque são mais do que parecem
pois
dias outros há
ou havia
(...)
porque não é possível estabelecer um limite
a cada um desses
dias de fronteiras impalpáveis
feitos de — por exemplo — frutas e folhas
frutas que em si mesmas são
um dia
de açúcar se fazendo na polpa
ou já se abrindo aos outros dias
que estão em volta
como um horizonte de trabalhos infinitos”
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“Apenas os índios vinham banhar-se
na praia do Jenipapeiro, apenas eles
ouviam o vento nas árvores
e caminhavam por onde
hoje são avenidas e ruas,
sobrados cobertos de limo,
cheios de redes e lembranças
na obscuridade.
Mas desses índios timbiras
nada resta, senão coisas contadas em livros
e alguns poemas em que se tenta
evocar a sombra dos guerreiros
com seu arco
ocultos entre as folhas
(o que não impede que algum menino
tendo visto no palco da escola
I-Juca Pirama
saia a buscar
pelos matos de Maioba ou da Jordoa
— o coração batendo forte —
vestígios daqueles homens,
mas não encontra mais
que o rumor do vento nas árvores)
Exceto se encontra
pousado
um pássaro azul e vermelho
— a brisa entortando-lhe as penas feito
um leque feito
o cocar de um guerreiro
que nele se transformara
para continuar habitando aqueles matos.
E mesmo que
não seja o pássaro o guerreiro
foi decerto visto por ele um dia
e por isso
estranhamente
está presente ali
vendo-o de novo
quem sabe agora mesmo atrás do menino atrás
dos ramos
quando
algo se mexe
e uma lagartixa foge sobre as folhas secas.
E tudo isso se passa
sob a copa das árvores
(longe
da estrada por onde trafegam bondes
e ônibus,
e mais longe ainda
das ruas da Praia Grande
atravancadas de caminhões
pracistas como João Coelho e estivadores
que descarregam babaçu)
Tudo isso se passa
como parte da história dos matos e dos pássaros
E na história dos pássaros
os guerreiros continuam vivos.”
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“O que eles falavam na cozinha
ou no alpendre do sobrado
(na Rua do Sol)
saía pelas janelas
se ouvia nos quartos de baixo
na casa vizinha, nos fundos da Movelaria
(e vá alguém saber
quanta coisa se fala numa cidade
quantas vozes
resvalam por esse intrincado labirinto
de paredes e quartos e saguões,
de banheiros, de pátios, de quintais
vozes
entre muros e plantas,
risos
que duram um segundo e se apagam)
E são coisas vivas as palavras
e vibram da alegria do corpo que as gritou
têm mesmo o seu perfume, o gosto
da carne
que nunca se entrega realmente
nem na cama
senão a si mesma
à sua própria vertigem
ou assim
falando
ou rindo
no ambiente familiar
enquanto como um rato
tu podes ouvir e ver
de teu buraco
como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio
na armação de ferro onde seca uma parreira
entre arames
de tarde
numa pequena cidade latino-americana.
E nelas há
uma iluminação mortal
que é da boca
em qualquer tempo
mas que ali
na nossa casa
entre móveis baratos
e nenhuma dignidade especial
minava a própria existência.
Ríamos, é certo,
em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas
de hortelã enroladas em papel de seda colorido,
ríamos, sim,
mas
era como se nenhum afeto valesse
como se não tivesse sentido rir
numa cidade tão pequena.”
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“E que melhor se vê uma cidade
quando — como Alcântara —
todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) — se não
entre as ruínas
a persistente certeza de que
naquele chão
onde agora crescem carrapichos
eles efetivamente dançaram
(e quase se ouvem vozes
e gargalhadas
que se acendem e apagam nas dobras da brisa)”
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“E do mesmo modo
que há muitas velocidades num
só dia
e nesse mesmo dia muitos dias
assim
não se pode também dizer que o dia
tem um único centro
(feito um caroço
ou um sol)
porque na verdade um dia
tem inumeráveis centros
como, por exemplo, o pote de água
na sala de jantar
ou na cozinha
em torno do qual
desordenadamente giram os membros da família.
(...)
Porque
diferentemente do sistema solar
a esses sistemas
não os sustém o sol e sim
os corpos
que em torno dele giram:
não os sustém a mesa
mas a fome
não os sustém a cama
e sim o sono
não os sustém o banco
e sim o trabalho não pago”
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“Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que passava rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro, por seu Neco que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que tomava tiquira com mel de abelha e trepava com a janela aberta,
pelo meu carneiro manso
por minha cidade azul
pelo Brasil salve salve,
Stalingrado resiste.
A cada nova manhã
nas janelas nas esquinas na manchete dos jornais”
Trechos do poema-livro “Poema sujo”, que está incluído em “Toda poesia” (Companhia das Letras, 2021), de Ferreira Gullar, donde esses trechos foram peneirados, páginas 227 a 230, 263 a 265, 242-243-245, 224-225, 238-239, 250-251, 273-274, 268, 270-271 e 226, respectivamente.
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