(foto: Greg Saliban)
Visita
Ferreira Gullar
no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo
Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando
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Meu pai
Ferreira Gullar
meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem
quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro
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Nova concepção da morte
Ferreira Gullar
Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso
na carne, como sempre ocorre aos seres vivos;
um aviso, um sinal, que não lhe veio de fora,
mas do fundo do corpo, onde a morte mora,
ou dizendo melhor, onde ela circula
como a eletricidade ou o medo, na medula
dos ossos e em cada enzima, que veicula,
no processo da vida, esse contrário: a morte
(decidida sem que se saiba de que sorte
nem por quem nem por que nem por que corte
de justiça, uma vez que era morte de dentro
não de fora, como as que causa externa engendra).
Ela veio chegando ao ritmo do pulso,
sem pressa nem vagar e sem perder o impulso
que empurra a vida para o desenlace, para
o ponto onde afinal o sistema dispara
cortando a luz do corpo — e a máquina para.
Muito antes, porém, que ocorra esse colapso,
chega o aviso da morte, indecifrado, lapsus
linguae, sinal errado ou mal pronunciado
no código de sais, ou não compreendido
deliberadamente: a gente faz ouvido
de mercador à voz que a morte noticia
pra não ouvi-la, já que não tem serventia
ouvi-la e assim saber que a hora está marcada.
Só para entristecer-se ante a noite estrelada?
Essa é a morte de dentro, endócrina; a de fora,
a exógena, provém do acaso, se elabora
na natureza ou então no tráfego ou no crime
e implacável chega, e nada nos exime
da injusta sentença, a moral impoluta,
a bondade, o latim, nossa boa conduta,
nada: a pedra que cai ou a bala perdida
sem razão nos atinge e acaba com a vida.
Diz-se que, dessa morte, a notícia também
nos chega, aleatória antecipação,
na pronúncia da brisa e dos búzios, além
do que se lê na carta e nas linhas da mão.
Mas, se vinda de dentro ou fora, não se altera
essencialmente o fato: a morte, por si, gera
um processo que altera as relações de espaço
e tempo e modifica, inverte, em descompasso,
o curso natural da vida: uma vertigem
arrasta tardes, sóis, desperta da fuligem
vozes, risos, manhãs já de há muito apagadas,
e as precipita velozmente, misturadas,
para dentro de si, como fazem as estrelas
ao morrer, cuja massa, ao ser prensada pelas
forças de contração da morte, se reduz
a um buraco voraz de que nem mesmo a luz
escapa, e assim também com as pessoas ocorre.
E é por essa razão que quando um homem morre,
alguém que esteja perto e que apure o ouvido,
certamente ouvirá, como estranho alarido,
o jorrar ao revés da vida que vivera
até tornar-se treva o que foi primavera.
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Não coisa
Ferreira Gullar
O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.
Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?
Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?
A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes
só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas
invadindo-te inteiro
tal dum mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho
um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos.
No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:
subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa
sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa é fechada
à humana consciência.
O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.
Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,
a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.
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Extravio
Ferreira Gullar
Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?
Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.
Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.
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Adormecer
Ferreira Gullar
na cama
no escuro
busco a posição
certa
para adormecer:
fico de
bruços, de
lado, de
costas cego
in slow motion
me
movo
no fe roz
silêncio
do
cosmos
até que os
braços as
pernas encontram
a forma
do sono
Detenho-me
o gás se desata
e
lentamente
em
meu
corpo
me
apago
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Sortilégio
Ferreira Gullar
Estava eu ali
no escuro e
de repente
o silêncio se move
enruga-se, melhor
dizendo, e me
roça as virilhas
(onde dormiam fúrias)
É quando uma
quase voz me toca
o lado esquerdo
do corpo para onde
me volto
e estás ali
nua
emergias da treva
as coxas o ventre
os seios
eram luas encantadas
e do centro
do teu corpo
a macia estrela negra
me chamava
para dentro de si
enquanto o teu rosto menino
espantosamente familiar
sorria a me dizer: jamais
jamais jamais
escaparás
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Coito
Ferreira Gullar
Todos os movimentos
do amor
são noturnos
mesmo quando praticados
à luz do dia
Vem de ti o sinal
no cheiro ou no tato
que faz acordar o bicho
em seu fosso:
na treva, lento,
se desenrola
e desliza
em direção a teu sorriso
Hipnotiza-te
com seu guizo
envolve-te
em seus anéis
corredios
beija-te
a boca em flor
e por baixo
com seu esporão
te fende te fode
e se fundem
no gozo
depois
desenfia-se de ti
a teu lado
na cama
recupero a minha forma usual
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Filhos
Ferreira Gullar
A meu filho Marcos
Daqui escutei
quando eles
chegaram rindo
e correndo
entraram
na sala
e logo
invadiram também
o escritório
(onde eu trabalhava)
num alvoroço
e rindo e correndo
se foram
com sua alegria
se foram
Só então
me perguntei
por que
não lhes dera
maior
atenção
se há tantos
e tantos
anos
não os via
crianças
já que
agora
estão os três
com mais
de trinta anos.
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Infinito silêncio
Ferreira Gullar
houve
(há)
um enorme silêncio
anterior ao nascimento das estrelas
antes da luz
a matéria da matéria
de onde tudo vem incessante e onde
tudo se apaga
eternamente
esse silêncio
grita sob a nossa vida
e de ponta a ponta
a atravessa
estridente
“Muitas vozes” está incluído em “Toda poesia” (Companhia das Letras, 2021), de Ferreira Gullar, donde esses poemas foram peneirados, páginas 391-392, 391, 407-409, 398-399, 422, 389, 413, 414-415, 388 e 423, respectivamente.
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