Ferreira Gullar
(foto: Márcio Vasconcelos)
O lampejo
Ferreira Gullar
O poema não voa de asa-delta
não mora na Barra
não frequenta o Maksoud.
Pra falar a verdade, o poema não voa:
anda a pé
e acaba de ser expulso da fazenda Itupu
pela polícia.
Come mal dorme mal cheira a suor,
parece demais com o povo:
é assaltante?
é posseiro?
é vagabundo?
frequentemente o detêm para averiguações
às vezes o espancam
às vezes o matam
às vezes o resgatam
da merda
por um dia
e o fazem sorrir diante das câmeras da TV
de banho tomado.
O poema se vende
se corrompe
confia no governo
desconfia
de repente se zanga
e quebra trezentos ônibus nas ruas de Salvador.
O poema é confuso
mas tem o rosto da história brasileira:
tisnado de sol
cavado de aflições
e no fundo do olhar, no mais fundo,
detrás de todo o amargor,
guarda um lampejo —
um diamante
duro como um homem
e é isso que obriga o exército a se manter de prontidão.
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Onde estão?
Ferreira Gullar
Na enseada de Botafogo o mar é cinza
e sobre ele se erguem os rochedos da Urca,
o Pão de Açúcar.
É tudo solidamente real.
Mas e os mortos,
onde estão?
O Vinícius, por exemplo,
e o Hélio? a Clarice?
Não quero que me respondam.
Pergunto apenas, quero
apenas
fundamente
perguntar.
Ia cruzando a sala de manhã quando
me disseram: a Clarice morreu.
E no banheiro, depois, lavando as mãos,
lavava eu as mãos já num mundo sem ela
e água e mãos eram um enigma
de sensações e lampejos
ali na pia.
É que a morte revela a vida aos vivos?
Quando Darwin morreu
fomos todos para o seu apartamento na Rua Redentor.
Ele estava esticado num banco
enquanto eu via
pela janela sobre a praia
um helicóptero
a zumbir na atmosfera iluminada
longe.
Tereza, Guguta, Zuenir,
estavam todos ali e o bairro
funcionava, a cidade funcionava naquela manhã
como em todas as manhãs.
Não era realidade demais
para alguém deixar assim
para sempre?
A caminho do cemitério me lembro
havia uma casa espantosamente ocre
recém-pintada — até hoje me pergunto
o que há de espantoso numa casa ocre
recém-pintada.
Não sei se devido à quantidade de automóveis
que há na cidade
o surdo barulho das ruas
e os aviões que cruzam o céu,
o certo é que
subitamente
me pergunto por eles.
Onde estão?
onde estou?
O mundo é real demais para alguém pensar
que se trata de um sonho.
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Ano-novo
Ferreira Gullar
Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.
Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).
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Nós, latino-americanos
Ferreira Gullar
à
Revolução Sandinista
Somos todos irmãos
mas não porque tenhamos
a mesma mãe e o mesmo pai:
temos é o mesmo parceiro
que nos trai.
Somos todos irmãos
não porque dividamos
o mesmo teto e a mesma mesa:
divisamos a mesma espada
sobre nossa cabeça.
Somos todos irmãos
não porque tenhamos
o mesmo braço, o mesmo sobrenome:
temos um mesmo trajeto
de sanha e fome.
Somos todos irmãos
não porque seja o mesmo sangue
que no corpo levamos:
o que é o mesmo é o modo
como o derramamos.
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Quem sou eu?
Ferreira Gullar
Quem sou eu dentro da minha boca?
Quem sou eu nos meus dentes
detrás dos dentes
na língua que se move
presa no fundo da garganta? que nome tenho
na escuridão do esôfago?
no estômago
na química
dos intestinos?
Quem em mim secreta
saliva? excreta
fezes?
quem embranquece em meus cabelos
e vira pus nas gengivas?
Quem sou eu
ao lado da Biblioteca Nacional
tão frágil, meu deus, na noite
sob as estrelas?
e no entanto impávido!
(a mexer no armário de roupas
num apartamento da Rua Tenente Possolo
em 1952
vivo a história do homem).
J’irai sous la terre
et toi, tu marcheras dans le soleil.
Tudo o que sobrará de mim
é papel impresso.
Com um pouco de manhã
engastado nas sílabas, é certo, mas
que é isso
em comparação com meu corpo real? meu
corpo
onde a alegria é possível
se mãos lhe tocam os pelos
se uma boca o beija
o saliva
o chupa com dois olhos brilhantes?
E sou então
praia vento floresta
resposta sem pergunta
o eixo do corpo
na saliva dourada
giro
e giramos
com o verão que se estende por todo o hemisfério sul.
Como dizer então: pouco
me importa a morte?
E sobretudo se existem as histórias em quadrinhos
e os programas de televisão
que continuarão a passar noite após noite
no recesso dos lares
numa terça-feira que antecede à quarta
numa quinta-feira que antecede à sexta
ou num sábado
ou num domingo.
Como dizer
pouco me importa?
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Narciso e Narciso
Ferreira Gullar
Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.
Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.
Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
— e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se odiando.
O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam de mentira.
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Desastre
Ferreira Gullar
Há quem pretenda
que seu poema seja
mármore
ou cristal — o meu
o queria pêssego
pera
banana apodrecendo num prato
e se possível
numa varanda
onde pessoas trabalhem e falem
e donde se ouça
o barulho da rua.
Ah quem me dera
o poema podre!
a polpa fendida
exposto
o avesso da voz
minando
no prato
o licor a química
das sílabas
o desintegrando-se o cadáver
das metáforas
um poema
como um desastre em curso.
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Exercício de relax
Ferreira Gullar
Pé direito, meu velho, relaxa,
esquece a inflação,
quero contigo iniciar
esta lenta descida do sono...
Mergulha nele, perna
minha, até o joelho...assim...
e agora,
pé esquerdo,
você também, que nunca fez um gol na vida,
que só topadas deu,
adormece,
afrouxa esse feixe de tendões e ossos e te abre
à paz.
Joelhos meus, pensem
nos oitizeiros
da Avenida Silva Maia
e durmam,
e que as águas do sono subam pelos músculos da coxa
adductor longus, quadriceps femoris
e pelo fêmur
e pelo ânus
e pelo pênis
e me cinjam a cintura.
Deitado, já metade de mim desceu na sombra. A outra
metade
sofre ainda a crise do petróleo.
Relaxa abdômen, que está tudo sob controle, músculos
do peito e dos braços,
abandonem-se,
para que a paz escorra até a palma da mão:
a esquerda anônima, a direita
tão conhecida de mim quanto meu rosto
e que, como ele, mais disfarça
o que eu somos
o que eu sonos
mas que, dentre as hostes celestes, me reconheceria
pelo caralho?
Cala-te, boca,
silencia, maxilar arcaico,
apaga-te, arco voltaico
do que o verso não diz.
E agora, tu, cabeça,
dura cabeça nordestina,
dorme,
dorme, revolta,
sociedade futura pátria igual,
poema que iluminaria a cidade,
dorme
onde me sonho
(caixa de flores)
E donde espio o mundo
por duas órbitas
e duas pálpebras
que finalmente
se fecham
sobre mim.
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Armando, irmãozinho
Ferreira Gullar
I
O dia de hoje, Armando, estava quente
e empurrava luminoso com o ombro
alvas cordilheiras de nuvens por sobre Botafogo.
Depois que te deixamos ali para sempre
saímos todos aturdidos de realidade
e sem poder fugir.
À noite estaremos no Luna
e você não.
Você nunca mais estará no Luna, cara!
Parece incrível
mas vai ser assim.
Como um raio
a grande pantera caiu sobre nós
pôs as duas patas em nosso peito
e rugiu:
agora vai ser assim!
E vai, cara,
vai ser assim.
II
Ele desarrumava a conversa
rompia a lógica
do discurso, a lógica
da postura da gente na vida, quebrava
o espelho da ordem
nossa e dele
o equilíbrio
em que dificilmente nos mantemos.
Preferia a vertigem
e aliviava a tensão com o frio do copo
na testa
(suco de laranja com vodca)
“não se preocupe pois tudo vai acabar mal”
dizia rindo,
“além do mais esta música é bonita pra caralho...
ou não!”
E caiu de repente fulminado
no chão do quarto numa sexta-feira à noite
(a tia na sala, a empregada,
e só depois o encontraram debatendo-se vítima
de seu corpo frágil demais para tanta indagação
e afeto).
Mas
aquele olhar, aquele jeito de falar e brincar
que era ele
e que se dissipou
o seu rosto — que ia começar a desfazer-se —
arrasta-nos para além do que se vê e sabe.
Onde a vida cessou começa o abismo.
Onde ele acabou
começa a vertigem
que nos mistura à eternidade do mundo.
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Omissão
Ferreira Gullar
I
Não é estranho
que um poeta político
dê as costas a tudo e se fixe
em três ou quatro frutas que apodrecem
num prato
em cima da geladeira
numa cozinha da Rua Duvivier?
E isso quando vinte famílias
são expulsas de casa na Tijuca,
os estaleiros entram em greve em Niterói
e no Atlântico Sul começa
a guerra das Malvinas.
Não é estranho?
por que então
mergulho nessa minicatástrofe
doméstica
de frutas que morrem
e que nem minhas parentas são?
por que
me abismo
no sinistro clarão dessas formas
outrora coloridas
e que nos abandonam agora inapelavelmente
deixando a nossa cidade
com suas praias e cinemas
deixando a casa
onde frequentemente toca o telefone?
para virar lama.
II
É compreensível que tua pele se ligue à pele dessas frutas que apodrecem
pois ali
há uma intensificação do espaço, das forças
que trabalham dentro da polpa
(enferrujando na casca
a cor
em nódoas negras)
e ligam
uma tarde a outra tarde e a outra ainda
onde
bananas apodreceram
subvertendo a ordem da história humana, tardes
de hoje e de ontem
que são outras cada uma em mim
e a mesma talvez
no processo noturno da morte nas frutas
e que te ligam a ti através das décadas
como um trem que rompe a noite
furiosamente dentro
e em parte alguma
— é compreensível
que dês as costas à guerra das Malvinas
à luta de classes
e te precipites nesse abismo
de mel
que o clarão do açúcar nos cega
e diverte ser espectador da morte, que é também a nossa,
e que nos atrai com sua boca de lama sua vagina
de nada
por onde escorregamos docemente no sono
e é bom morrer
no teatro
vendo morrer
peras ardendo
na sua própria fúria
e urinando
e afundando em si mesmas
a converter-se em mijo, a pera, a banana ou o que seja
e assistes
à hecatombe
no prato
sob uma nuvem de mosquitos
e não ouves o clamor da vida
aqui fora
na rua na fábrica na favela do Borel
não ouves
o tiro que matou Palito
e não ouves, poeta,
o alarido da multidão que pede emprego
(são dois milhões sem trabalho
há meses
sem ter como dar de comer à família
e cuja história
é assunto arredio ao poema).
É a morte que te chama?
É tua própria história
reduzida ao inventário de escombros
no avesso do dia
e não mais esperança
de uma vida melhor?
que se passa, poeta?
adiaste o futuro?
“Barulhos” está incluído em “Toda poesia” (Companhia das Letras, 2021), de Ferreira Gullar, donde esses poemas foram peneirados, páginas 326-327, 319-320, 340, 342-343, 325-326, 334-335, 330-331, 318-319, 344-345 e 331-333, respectivamente.
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