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Dez passagens de Jorge Amado no romance Tenda dos Milagres



“‘O mundo só será realmente civilizado quando as fardas forem objetos de museu’.”


          “Depois foi tomar o banho de folhas, escolhidas uma a uma por Ossaim. No mel e na água de pitanga, no sal e na pimenta-malagueta preparou a arma e a viu crescer, descomunal bordão de caminhante. No bolso escondeu o quelé, o xaorô e o coração da pomba, a conta vermelha e branca de Xangô. Na porta da Tenda, ele a esperou chegar.
          Apenas surgiu na esquina e começaram, não houve fuleragem nem fricotes; mal a iabá apareceu e a estrovenga foi ao seu encontro e lhe subiu as saias engomadas, ali mesmo metendo, na exata medida do xibiu: fogo com fogo, mel com mel, sal com sal, pimenta com pimenta e malagueta. Contar essa batalha, essa guerra das duas competências, o assalto da égua e do cavalo, o miar da gata em desvario, o uivo do lobo, o ronco do javali selvagem, o soluço da donzela na hora de mulher, o arrulho do pombo, o marulho das ondas, contar, amor, quem poderia?
          Rolaram pela ladeira, penetrados, foram parar no areal do porto e atravessaram a noite. A maré cresceu e os levou; no fundo do mar prosseguiram em louca cavalgada, na metida insana.
          (...)
          Durou três dias e três noites o grão embate, o sumo pagode, sem intervalo: dez mil trepadas e uma só metida, e a iabá tanto entesou-se em seu furor sem termo que, de repente, deu-lhe um tangolomango e em gozo ela se abriu como se rompe o céu em chuva. Irrigado o deserto, rota a aridez, vencida a maldição, hosana e aleluia!
          (...)
          No quarto de Archanjo, de sombras e odores misturados, dormia de bruços a iabá: um desatino, um despropósito de negra, um xispeteó. Quando seu hálito cantou, Archanjo lhe pôs o quelé no pescoço e o xaorô no tornozelo e assim sujeita a teve. Depois, com delicadeza de baiano, lhe enfiou no celeste fiofó o coração da ave, conta encantada de Xangô.
          No mesmo instante ela soltou um brado e um pum, os dois medonhos, sinistros, pavorosos, o ar foi puro enxofre, mortal fumaça. Um clarão de raios sobre o mar, o surdo eco dos trovões, os ventos desatados e a tempestade de um extremo a outro do universo. Subiu aos céus imenso cogumelo e apagou o Sol.
          Mas logo tudo se acalmou em júbilo e bonança; o arco-íris se estendeu em cores: Oxumarê inaugurando a festa e a paz. Ao fedor de enxofre, sucedeu um cheiro de desabrochadas rosas e a iabá já não era iabá, era a negra Doroteia. Em seu peito crescera, por arte de Xangô, o mais terno coração”


          “Arrumando as saias, sorrindo, devagar atravessa a sala, entre aclamações: odoiá odoiá Iá! Curva-se diante de Tadeu para lhe oferecer a festa. Ressoam os atabaques, Majé Bassã inicia a dança e o canto de homenagem. A voz em louvação, os incansáveis pés.
          É a mãe, Iá, a antiga, a elementar, a primeva, recém-chegada de Aiocá, sobrevoando tempestades, ventos desatados, calmarias, naufrágios, noivos mortos, marinheiros, para festejar o filho bem-amado, o caçula, o neto, o bisneto, o tataraneto, o descendente de volta da batalha, triunfante. Salve Tadeu Canhoto, vitorioso sobre ameaças, empecilhos, limitações, doenças, de posse do canudo de doutor. Odoiá!
          Velha sem idade, doce e temível mãe Majé Bassã, tão precisa no domínio do passo elegante e difícil, tão rápida e leve, tão moça na dança, iaô recente. Uma dança do começo do mundo: o medo, o desconhecido, o perigo, o combate, o triunfo, a intimidade dos deuses. Uma dança de encantamento e coragem, o homem contra as ignotas forças, em luta e vitória. Assim dançou mãe Majé Bassã para Tadeu, na Tenda dos Milagres. Avó torta dançando para o neto, doutor formado em engenharia.
          Tão solene e simples, tão majestosa e íntima, por entre as palmas das mãos erguidas, parou face a face com Tadeu e lhe abriu os braços. Nos imensos seios acolheu os pensamentos do rapaz, a emoção, o ímpeto, a dúvida, a ambição, o orgulho, a amargura, o amor, o bom e o ruim, as fibras do jovem coração, a sina de Tadeu: tudo coube no mar dos seios maternais, assim enormes para conter a alegria e a dor do mundo. Abraçaram-se a velha e o moço, a que permaneceu no mistério primitivo e o que partia no barco do conhecimento, em liberdade conquistada.”


“Regressavam juntos de uma festa, certa noite, Lídio oferecera-lhe companhia na estrada deserta e perigosa, e foi ela quem pediu para ver a marmota tão falada: riu de morrer com Zé Piroca, tomou um copo de aluá e se deu fogosa, quase oferecida, como se necessitada. Demorou indo e vindo três dias e três noites: arrumou oficina e quarto, pôs tudo novo e limpo, encheu a casa de cantigas, Lídio ria pelos cantos. Mas bastou ele falar em juntar os trapos, ela fez-se séria e dura, a voz amarga em ameaça e advertência: ‘Nunca me fale nisso, nunca mais, senão não volto. Se me quiser, se gosta de mim, tem de ser assim, quando me der na telha, quando de livre vontade eu queira vir. Não lhe peço nada, só lhe peço que não se meta em minha vida, não me vigie, não ande me espiando, porque, se eu souber, juro que nunca mais vai ver minha cara’. Disse de tal maneira e com tal acento; não lhe deixou margem a discussão: ‘Para te ver e ter, comerei sapo e cobra se preciso for’.”


“(...) enterrou o racismo na vergonha da anticiência, sinônimo vil de charlatanice, de reacionarismo, arma de classes e castas agonizantes contra a indomável marcha. Se não terminou com os racistas — sempre haverá imbecis e salafrários em qualquer tempo ou sociedade —, Pedro Archanjo os marcou a ferro e fogo, apontando-os na rua, ‘eis, meus bons, os antibrasileiros’, e proclamou a grandeza do mestiço.”


“Sou um mestiço, tenho do negro e do branco, sou branco e negro ao mesmo tempo. Nasci no candomblé, cresci com os orixás e ainda moço assumi um alto posto no terreiro. Sabe o que significa Ojuobá? Sou os olhos de Xangô, meu ilustre professor. Tenho um compromisso, uma responsabilidade. (...) Para mim, professor, só existe a matéria. Mas nem por isso deixo de ir ao terreiro e de exercer as funções de meu posto de Ojuobá, cumprir meu compromisso. Não me limito como o senhor que tem medo do que os outros possam pensar, tem medo de diminuir o tamanho de seu materialismo. (...) Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira, o samba de roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus são bens do povo. Todas essas coisas e muitas outras que o senhor, com seu pensamento estreito, quer acabar, professor, igualzinho ao delegado Pedrito, me desculpe lhe dizer. Meu materialismo não me limita. Quanto à transformação, acredito nela, professor, e será que nada fiz para ajudá-la? (...) Terreiro de Jesus, tudo misturado na Bahia, professor. O adro de Jesus, o terreiro de Oxalá, Terreiro de Jesus. Sou a mistura de raças e de homens, sou um mulato, um brasileiro. Amanhã será conforme o senhor diz e deseja, certamente será, o homem anda para a frente. Nesse dia tudo já terá se misturado por completo e o que hoje é mistério e luta de gente pobre, roda de negros mestiços, música proibida, dança ilegal, candomblé, samba, capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro, música, balé, nossa cor, nosso riso, compreende? (...) Ouça, meu bom, um dia os orixás dançarão nos palcos dos teatros.”


          “Em seu terceiro livro, Pedro Archanjo analisou as fontes da mestiçagem e comprovou sua extensão, maior do que ele próprio imaginara: não havia família sem mistura de sangue — apenas uns quantos gringos recém-chegados e esses não contavam. Branco puro era coisa inexistente na Bahia, todo sangue branco se enriquecera de sangue indígena e negro, em geral dos dois. A mistura começou com o naufrágio de Caramuru, nunca mais parou, prossegue correntia e acelerada, é a base da nacionalidade.
          O capítulo dedicado a provar a capacidade intelectual do mestiço inclui imponente relação de nomes de políticos, escritores, artistas, engenheiros, jornalistas, e até barões do Império, diplomatas e bispos, todos mulatos, o melhor da inteligência do país.
          Fechando o volume, a grande lista, motivo da grita, do escândalo, da perseguição ao autor. Pedro Archanjo relacionara as famílias nobres da Bahia e completara as árvores genealógicas em geral pouco atentas a certos avós, a determinados conúbios, a filhos bastardos e ilegítimos. Assentados em provas irrefutáveis lá estavam, do tronco aos ramos, brancos, negros e indígenas, colonos, escravos e libertos, guerreiros e letrados, padres e feiticeiros, aquela mistura nacional. Abrindo a grande lista, os Ávilas, os Argolos, os Araújos, os ascendentes do professor de medicina legal, o ariano puro, disposto a discriminar e a deportar negros e mestiços, criminosos natos (...) mestre Archanjo expôs a verdade completa e as famílias finalmente puderam conhecer de onde provinham, contemplar não apenas uma face mas o rosto inteiro, o trigo e o carvão, e saber quem se deitou na cama. (...) O mundo veio abaixo.”


          “A guerra santa do delegado auxiliar Pedrito Gordo prosseguiu anos afora e aos poucos a tenaz resistência de mães e pais de santo começou a ceder. Na crônica da vida urbana, na roda de samba, na cantiga de capoeira, o povo registrava os lances da perseguição (...) Muitos babalorixás e ialorixás levaram axé e santos para longe, expulsos do centro e dos bairros vizinhos para as roças distantes, locais de difícil acesso. Outros tomaram dos orixás, dos instrumentos, dos trajes, dos itás, das cantigas e danças, do baticum, dos ritmos, e se transferiram para o Rio de Janeiro — assim chegou o samba à então capital do país, nas caravanas de baianos fugitivos. Alguns terreiros menores não puderam resistir a tanta perseguição, desapareceram de vez. Vários reduziram o calendário de festas às obrigações imprescindíveis, realizadas às escondidas.
          Somente uns poucos persistiram em luta de morte: as grandes casas de tradição antiga, com dezenas e dezenas de feitas. Nos dias de festa, quando os atabaques batiam no chamado dos santos, o povo desses terreiros enfrentava as incursões da polícia, a prisão, as surras (...) Os secretas, às vezes sob o comando do próprio Pedrito, infestavam a noite da Bahia em busca de candomblés e batuques, o pau comia solto (...) De 1920 a 1926, enquanto durou o reinado do todo-poderoso delegado auxiliar, os costumes de origem negra, sem exceção, das vendedoras de comida até os orixás, foram objeto de violência contínua e crescente. O delegado mantinha-se disposto a acabar com as tradições populares, a porrete e a facão, a bala se preciso.
          O samba de roda foi exilado para o fim do mundo, ruelas e casebres perdidos. As escolas de capoeira fecharam suas portas, quase todas. Budião andou uns tempos escondido, Valdeloir comeu da banda podre. Com os capoeristas, a coisa fiava mais fino, os secretas não os enfrentavam de peito aberto, tinham medo. De longe e pelas costas, era mais seguro. De quando em vez o corpo de um capoerista aparecia crivado de balas na madrugada, tiros de tocaia, obra da malta de facínoras. Assim morreram Neco Dendê, Porco Espinho, João Grauçá, Cassiano do Boné.”


“(...) Quando Zé Alma Grande, cão de fila, assassino às ordens, homem de toda confiança, virou Ogum e partiu para o delegado, Pedrito necessitou do orgulho inteiro para erguer a bengala na última tentativa de se impor. De nada serviu. Os pedaços de junco estalaram nos dedos do encantado — cabeças de serpentes dirigidas contra o comandante da cruzada bendita, da guerra santa. Não coube a Pedrito Gordo outro recurso senão correr vergonhosamente, em pânico, gritando por socorro, em direção ao automóvel veloz que o levaria para longe daquele inferno de orixás desatados em milagres. Mas, ai, os macumbeiros haviam furado os quatro pneus. (...) Nas ruas apinhadas, todos viram o delegado auxiliar Pedrito Gordo, a fera da polícia, o sinistro chefe da malta de facínoras, o mata-mouros, o malvado sem alma, o terror do povo, em triste fuga perseguido por um orixá de candomblé, pelo guerreiro Ogum todo aceso em cobras. Foi o riso da cidade, a galhofa, a notícia cômica nos jornais da oposição, o verso de Lulu Parola, a trova dos cantadores”


“(...) meu bom, leio para entender o que vejo e o que me dizem”


Presentes no romance “Tenda dos Milagres” (Companhia das Letras, 2008), de Jorge Amado, páginas 26, 118-119, 178, 84, 131, 245 a 248, 252-253, 235-236, 241-242 e 138, respectivamente.

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