(foto: Eduardo Simões/IMS)
A relativa eternidade
Ferreira Gullar
Cruzo a rua e vejo
sobre a montanha
que se ergue no horizonte
para além da Lagoa
nuvens matinais
iluminadas
contra um céu muito azul
como na primeira manhã do mundo
(ainda que
em todos os dias do ano
quando faz sol
essa festa matinal se tenha repetido
por séculos)
mas pouco importa:
é hoje manhã pela primeira vez
ainda que
antes de terem aqui chegado os portugueses
já ali estivessem a montanha
o céu azul
e as nuvens a se esgarçarem
quer houvesse
ou não
(como agora)
alguém para vê-los
e então me digo:
se o mundo dura tanto
e eu tão pouco
importa pouco
se ele não for eterno
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Perplexidades
Ferreira Gullar
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado
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Nem aí
Ferreira Gullar
Indiferente
ao suposto prestígio literário
e ao trabalho
do poeta
à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobe à mesa
o gatinho
se espreguiça
e deita-se e
adormece
em cima do poema
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Universo
Ferreira Gullar
O que vi do universo
até hoje foi pouco
mas, se penso em quanto meço,
posso dizer que foi muito.
Sei, de ler, que o universo
é de tais dimensões
que a própria luz só o atravessa
depois de bilhões e bilhões
de anos, e que nele há
multidões de galáxias e sóis
que talvez já morreram, antes
de chegar a sua luz até nós.
Deste modo, é correto dizer
que o céu que ora espio é passado
e que até pode ser que
o universo que vejo já se tenha acabado.
Mas, de fato, não vejo
a não ser nas revistas
de astronomia: o lampejo
espantoso de infinitas
constelações a brilhar
num abismo espectral e difuso
de gases e poeira estelar
que me deixa confuso.
E assim, assustado e mudo,
bem menor que um ínfimo
grão de poeira, contudo,
sou capaz de apreender, no meu íntimo,
essas incontáveis galáxias,
esses espaços sem fim,
essa treva e explosões de lava.
Como tudo isso cabe em mim?
O fato é que qualquer vasta nuvem
prenhe de sóis já mortos ou futuros
não possui consciência, esse obscuro
fenômeno surgido aqui na Via Láctea,
ou melhor, na Terra, e talvez
somente nela, não se sabe por quê,
mas que permite ao cosmos perceber-se
a si mesmo, e ter olhos pra se ver.
Olhos que são nossos,
lentes minúsculas mas sensíveis
que captam a luz das nebulosas
vinda de espaço e tempo inconcebíveis.
É o que dizem, pois tudo
o que vejo é, à noite, apenas o brilhar
de distantes luzes no escuro.
São estrelas? planetas no sistema solar?
Somos algo recente e raro
no universo, como rara
é também a própria luz
dos sóis deste sol que nos aclara.
Todo universo é treva.
Inalcançável vastidão escura
dentro da qual os sóis, as explosões
de gás e luz são exceções.
O universo em sua vastidão vazia
é espaço e treva, é matéria fria
em que não há o mínimo sinal
de vida ou consciência; o que é mental
nele, ao que se sabe, está em nós,
no mínimo do mínimo do existente
e o que também na treva luze é nossa voz
inaudível no espantoso vão silente.
Vi pouco do universo: afora a asa
de luz e pó da Via Láctea, o que conheço
são as manhãs que invadem minha casa.
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Uma pedra é uma pedra
Ferreira Gullar
uma pedra
(diz
o filósofo, existe
em si,
não para si
como nós)
uma pedra
é uma pedra
matéria densa
sem qualquer luz
não pensa
ela é somente sua
materialidade
de cousa:
não ousa
enquanto o homem é uma
aflição
que repousa
num corpo
que ele
de certo modo
nega
pois que esse corpo morre
e se apaga
e assim
o homem tenta
livrar-se do fim
que o atormenta
e se inventa
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O duplo
Ferreira Gullar
Foi-se formando
a meu lado
um outro
que é mais Gullar do que eu
que se apossou do que vi
do que fiz
do que era meu
e pelo país
flutua
livre da morte
e do morto
pelas ruas da cidade
vejo-o passar
com meu rosto
mas sem o peso
do corpo
que sou eu
culpado e pouco
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O tempo cósmico
Ferreira Gullar
ente minúsculo
num braço da galáxia,
ouso dizer
que ela demora 250 milhões de anos
para fazer
um giro
completo
em torno de seu eixo
e penso:
o homem existe há pouco mais
de 100 mil anos
é como se o giro da galáxia
jamais se completasse
é como se ela não girasse
e que o diria esta mosca
— que na tolha da mesa
pousa agora —
cuja existência talvez dure
pouco mais que uma hora?
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Reflexão sobre o osso da minha perna
Ferreira Gullar
A parte mais durável de mim
são os ossos
e a mais dura também
como, por exemplo, este osso
da perna
que apalpo
sob a macia cobertura
ativa
de carne e pele
que o veste e inteiro
me reveste
dos pés à cabeça
esta vestimenta
fugaz e viva
sim, este osso
a mais dura parte de mim
dura mais do que tudo o que ouço
e penso
mais do que tudo o que invento
e minto
este osso
dito perônio
é, sim,
a parte mais mineral
e obscura
de mim
já que à pele
e à carne
irrigam-nas o sonho e a loucura
têm, creio eu,
algo de transparente
e dócil
tendem a solver-se
a esvanecer-se
para deixar no pó da terra
o osso
o fóssil
futura
peça de museu
o osso
este osso
(a parte de mim
mais dura
e a que mais dura)
é a que menos sou eu?
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Inseto
Ferreira Gullar
Um inseto é mais complexo que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica
Também mais complexo
que uma hidrelétrica
é um poema
(menos complexo que um inseto)
e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida
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O que se foi
Ferreira Gullar
O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.
Se o que foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.
Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.
Então por que me faz
o coração bater tão forte?
“Em alguma parte alguma” está incluído em “Toda poesia” (Companhia das Letras, 2021), de Ferreira Gullar, donde esses poemas foram peneirados, páginas 479-480, 447, 463, 470-472, 469, 445-446, 472, 441-442, 453 e 451, respectivamente.
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