A alegria
Ferreira Gullar
O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).
Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.
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Digo sim
Ferreira Gullar
Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos de meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu coração
é um sol de esperança entre pulmões
e nuvens.
Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
no rodar
das cabrochas no carnaval
da Avenida.
Mas não. O poeta mente.
A vida nós a amassamos em sangue
e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
em meio à fome
e dizendo sim
— em meio à violência e a solidão dizendo
sim —
pelo espanto da beleza
pela flama de Thereza
pelo meu filho perdido
neste vasto continente
por Vianinha ferido
pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela
tampouco me nego a ela:
— digo sim
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Subversiva
Ferreira Gullar
A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal
embala no colo
os que têm sede de felicidade
e de justiça.
E promete incendiar o país
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Poema obsceno
Ferreira Gullar
Façam a festa
cantem dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
— e espreitam.
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Um sorriso
Ferreira Gullar
Quando
com minhas mãos de labareda
te acendo e em rosa
embaixo
te espetalas
quando
com o meu aceso archote e cego
penetro a noite de tua flor que exala
urina
e mel
que busco eu com toda essa assassina
fúria de macho?
que busco eu
em fogo
aqui embaixo?
senão colher com a repentina
mão do delírio
uma outra flor: a do sorriso
que no alto o teu rosto ilumina?
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Morte de Clarice Lispector
Ferreira Gullar
Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
E as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós
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Traduzir-se
Ferreira Gullar
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão;
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
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Homem sentado
Ferreira Gullar
Neste divã recostado
à tarde
num canto do sistema solar
em Buenos Aires
(os intestinos dobrados
dentro da barriga, as pernas
sob o corpo)
vejo pelo janelão da sala
parte da cidade:
estou aqui
apoiado apenas em mim mesmo
neste meu corpo magro, mistura
de nervos e ossos
vivendo
à temperatura de 36 graus e meio
lembrando plantas verdes
que já morreram
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O espelho do guarda-roupa
Ferreira Gullar
Espelho espelho velho
alumiando
debaixo da vida
Quantas manhãs e tardes
diante das janelas
viste se acenderem
e se apagarem
quando eu já não estava lá?
De noite
na escuridão do quarto
insinuavas
que teu corpo era de água
e te bebi
sem o saber te bebi e te trago
entalado
de um ombro a outro
dentro de mim
e dóis e ameaças
estalar
estilhaçar-se
com as tardes e as manhãs
que naquele tempo
atravessavam a rua
e se precipitaram em teu abismo claro
e raso
espelho
espelho velho
e por trás de meu rosto
o dia
bracejava seus ramos verdes
sua iluminada primavera
II
Um homem
com um espelho (feito
um segundo esqueleto)
embutido no corpo
não pode
bruscamente voltar-se para trás
não pode
juntar nada do chão
e quando dorme
é como um acrobata
estendido sobre um relâmpago
Um homem com um espelho
enterrado no corpo
na verdade não dorme: reflete
um voo
Enfim, esse homem
não pode falar alto demais
porque os espelhos só guardam
(em seu abismo)
imagens sem barulho
III
Carregar um espelho
é mais desconforto que vantagem:
a gente se fere nele
e ele
não nos devolve mais do que a paisagem
Não nos devolve o que ele não reteve:
o vento nas copas
o ladrar dos cães
a conversa na sala
barulhos
sem os quais
não haveria tardes nem manhãs
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A voz do poeta
Ferreira Gullar
Não é voz de passarinho
flauta do mato
viola
Não é voz de violão
clarinete pianola
É voz de gente
(na varanda? na janela?
na saudade? na prisão?)
É voz de gente — poema:
fogo logro solidão
“Na vertigem do dia” está incluído em “Toda poesia” (Companhia das Letras, 2021), de Ferreira Gullar, donde esses poemas foram peneirados, páginas 302, 305, 282, 282-283, 294-295, 299, 280, 299, 288-289 e 303, respectivamente.
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