“(...) Sua inteligência que a afogava. Você é uma temperamental, Angela, disse-lhe ele uma vez. E daí? Que mal há nisso? Sou o que sou e não o que pensas que sou. (...) Ela já tivera plenitude. Quando ela e Eduardo estavam tão apaixonados um pelo outro que estando juntos numa cama, de mãos dadas, eles sentiam a vida completa. Pouca gente conheceu a plenitude. E, porque a plenitude é também uma explosão, ela e Eduardo covardemente passaram a viver ‘normalmente’. Porque não se pode prolongar o êxtase sem morrer. Separaram-se por um motivo fútil quase inventado: não queriam morrer de paixão. A plenitude é uma das verdades encontradas. Mas o rompimento necessário fora para ela uma ablação, assim como há mulheres de quem são tirados o útero e os ovários. Vazia por dentro. (...) Eu não caio nessa de que o certo é ser infeliz, Eduardo. Quero fruir de tudo e depois morrer e eu que me dane! me dane! me dane! (...) nada de passividade, quero é tomar banho nua no rio barrento que se parece comigo, nua e livre! viva! Três vivas! Eu abandono tudo! tudo! e assim não sou abandonada, não quero depender senão de umas três pessoas e o resto é: Bom-dia, tudo bem? tudo bem. Edu, você sabe? eu te abandono. Você, no fundo de seu intelectualismo, não vale a vida de um cão. Eu te abandono, então. E abandono o grupo falsamente intelectual que exigia de mim um vão e nervoso exercício contínuo de inteligência falsa e apressada. Precisei que Deus me abandonasse para que eu sentisse a sua presença. Eu preciso matar alguém dentro de mim. Você estragou minha inteligência com a tua que é de gênio. E me obrigou a saber, a saber, a saber. (...) A vida que tinha com Eduardo tinha cheiro de farmácia nova recém-pintada. Ela preferia o cheiro vivo de estrume por mais nojento que fosse. Ele era correto como uma quadra de tênis. (...) era um chato que ela amava e quase não amava mais.”
“(...) eu vou para a fazenda de meu filho, vou ficar lá para o resto da vida, minha filha me trouxe até o trem e meu filho me espera com a charrete na estação. Sou como um embrulho que se entrega de mão em mão. (...) ‘Sou velha mas sou rica, mais rica que todos aqui no vagão. Sou rica, sou rica.’ Espiou o relógio, mais para ver a grossa placa de ouro do que para ver as horas. ‘Sou muito rica, não sou uma velha qualquer.’ Mas sabia, ah bem sabia que era uma velhinha qualquer, uma velhinha assustada pelas menores coisas. Lembrou-se de si, o dia inteiro sozinha na sua cadeira de balanço, sozinha com os criados, enquanto a filha ‘public relations’ passava o dia fora, só chegava às oito da noite, e nem sequer lhe dava um beijo. (...) Dona Maria Rita pensava: depois de velha começara a desaparecer para os outros, só a viam de relance. Velhice: momento supremo. Estava alheia à estratégia geral do mundo e a sua própria era parca. Perdera os objetivos de maior alcance. Ela já era o futuro. (...) Dona Maria Rita era tão antiga que na casa da filha estavam habituados a ela como a um móvel velho. Ela não era novidade para ninguém. Mas nunca lhe passara pela cabeça que era uma solitária. Só que não tinha nada para fazer. (...) Senão viver como um gato, como um cachorro. (...) Não fazia nada, fazia só isso: ser velha. Às vezes ficava deprimida: achava que não servia a nada, não servia sequer a Deus. (...) acho que essa moça bonita não se interessa em conversar comigo. Não sei por que, mas ninguém conversa mais comigo. E mesmo quando estou junto das pessoas, elas parecem não se lembrar de mim. Afinal não tenho culpa de ser velha. Mas não faz mal, eu me faço companhia.”
“É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado. Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou inventar um programa, frágil ponto que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como ultrapassar essa paz que nos espreita. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar. (...) É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível — sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda mas deixa rastro — tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não diz.”
“(...) O futuro é meu enquanto eu viver. No futuro vai-se ter mais tempo de viver, e, de cambulhada escrever. No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia. Marli de Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima. Aliás eu só sei em todas as circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada. Tudo o que nunca se fez, far-se-á um dia? O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura; e nela então o humano do homem se refugia. Vejo as flores na jarra: são flores do campo, nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas minha cozinheira disse: mas que flores feias. Só porque é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana.”
“Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e forçadamente o caminho que tomei — e teria sido sempre o que realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo ao Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter se transformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser uma pedra. Ela é uma chuva. Talvez seja isso ao que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa.”
“Entre ela e Eduardo o ar tinha gosto de sábado. E de súbito os dois eram raros, a raridade no ar. Eles se sentiam raros, não fazendo parte das mil pessoas que andavam pelas ruas. Os dois às vezes eram coniventes, tinham uma vida secreta porque ninguém os compreenderia. E mesmo porque os raros são perseguidos pelo povo que não tolera a insultante ofensa dos que se diferenciavam. Eles escondiam o amor deles para não ferir os olhos dos outros de inveja.”
“Esta coisa é a mais difícil de uma pessoa entender. Insista. Não desanime. Parecerá óbvio. Mas é extremamente difícil de se saber dela. Pois envolve o tempo. (...) Nós dividimos o tempo quando ele na realidade não é divisível. Ele é sempre e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo. E para isso criou-se uma coisa monstruosa: o relógio.”
“(...) Deus é burro. Porque ele não entende, ele não pensa, ele é apenas. É verdade que é de uma burrice que executa-se a si mesma. Mas Ele comete muitos erros. E sabe que os comete. Basta olharmos para nós mesmos que somos um erro grave. Basta ver o modo como nos organizamos em sociedade e intrinsecamente, de si para si. Mas um erro Ele não comete: Ele não morre.”
“(...) Estou precisando de um determinado acontecimento sobre o qual não posso falar. E dá-me de volta o desejo, que é a mola da vida animal. Eu não te quero para mim. Não gosto de ser vigiada. E você é o olho único aberto sempre como olho solto no espaço. Você não me quer mal mas também não me quer bem. Será que também eu estou ficando assim, sem sentimento de amor? Sou uma coisa? Sei que estou com pouca capacidade de amar. Minha capacidade de amar foi pisada demais, meu Deus. Só me resta um fio de desejo. Eu preciso que este se fortifique. Porque não é como você pensa, que só a morte importa. Viver, coisa que você não conhece porque é apodrecível — viver apodrecendo importa muito. Um viver seco: um viver o essencial.”
“Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto — é para lá que eu vou. (...) À ponta do lápis o traço. (...) Onde expira um pensamento está uma ideia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia — é para lá que eu vou. (...) Na ponta dos pés o salto. (...) Parece a história de alguém que foi e não voltou — é para lá que eu vou. (...) Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. É para lá que eu vou. (...) À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe.”
Presentes no livro de contos “Onde estivestes de noite” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 25+29+31, 21+24+25+29, 79-80, 99, 94, 35, 61, 65, 62-63 e 75, respectivamente.
Aforismos de Clarice em “Onde estivestes de noite”
“O proibido é sempre o melhor”
“A verdade é o resíduo final de todas as coisas”
“Tem que haver uma porta de saída”
“Todo cavalo é selvagem e arisco quando mãos inseguras o tocam”
“É no vazio que se passa o tempo”
“Se há coragem, não se luta mais”
“O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar”
“Que é que você está fazendo? Estou esperando o futuro”
“Amo os objetos à medida que eles não me amam”
“Coerência é mutilação. Quero a desordem. Só adivinho através de uma veemente incoerência”
“É importante estar acordada para ver. Mas é também importante dormir para sonhar com a falta de tempo”
Aforismos presentes no livro de contos “Onde estivestes de noite” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 50, 100, 33, 38, 30, 81, 102, 34, 98-99, 30 e 62, respectivamente.
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