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Mostrando postagens de novembro, 2019

Dez passagens de Junot Díaz no livro de contos Afogado

Junot Díaz - foto daqui           “Há vezes em que o cliente tem que sair correndo pra comprar comida de gato ou jornal na hora em que a gente tá no meio do trabalho. Não se preocupem, estou certo de que vocês vão ficar bem, dizem. Mas nunca parecem muito seguros. Claro, digo eu. É só nos mostrar onde é que está a prataria. Os clientes ha-ha e nós ha-ha, e então eles morrem de agonia de sair e ficam hesitando na porta da frente, tentando guardar na memória tudo que possuem, como se não soubessem onde encontrar a gente, pra quem a gente trabalha.           Uma vez que saiam, não tenho mais que ficar preocupado com alguém me enchendo o saco. Deixo a catraca de lado, estalo os dedos e exploro, geralmente enquanto Wayne está alisando o pano verde e não precisa de ajuda. Pego uns biscoitos na cozinha, barbeadores descartáveis nos armários do banheiro. Algumas dessas casas têm vinte, trinta quartos. Volta e meia eu conto, e na volta fico calculando quantos roubos eu precisaria fazer p

Doze passagens de Noemi Jaffe no livro O que os cegos estão sonhando?

Noemi Jaffe - foto daqui “(...) O corpo e a alma — que alma? o que é a alma de um prisioneiro faminto, de qualquer pessoa faminta? a fome faz pensar que a alma é simplesmente uma invenção do corpo, para aqueles que estão abastecidos e não precisam pensar em comida — de uma pessoa com fome são uma demanda permanente por comida. Como se os humanos se tornassem parasitas, bactérias enlouquecidas, girando desnecessariamente num vácuo, desesperadas atrás de migalhas, não para viver, mas simplesmente para comê-las. (...) Muitos israelenses condenam os judeus dos campos de concentração por não terem resistido mais e melhor; por terem se submetido tão brandamente, animalescamente, por uma ração de sopa, por um pedaço de pão. Há uma inversão e uma perversão nessas ideias. Ninguém, que não esteja passando ou tenha passado fome, tem a mais remota noção do que ela é e dos efeitos que ela provoca no comportamento de um homem, por mais ético que ele seja. Ninguém sabe se a vida, ou, mais absur

Dez passagens de Pawlo Cidade no romance O povoado das onze mil virgens

Pawlo Cidade - foto daqui           “Um dia, ao abrir a loja, Virgílio de Jesus deparou com várias prateleiras vazias. Pensou ter havido um grande roubo na joalheria. Quase entrou em desespero. Todavia, para sua surpresa, quando o mercador chegou, sorriu maravilhado. Disse para Virgílio que fecharia a loja, pois estava cansado do comércio e iria embora da capitania com a família. (...)           — Mas o senhor não disse que fecharia a loja! — Contestou o outro.           — Mudei de ideia! Cansei desta vida de joalheiro! Vou embora — Disse o mercador determinado.           (...)           Só acreditou mesmo que aquela situação era real quando foi dispensado pelo mercador, do mesmo jeito em que os açougueiros dispensavam as tripas de porco no mercado municipal. Seu semblante desabou. Aquele trabalho era o sustento de sua família. O pouco que recebia era o suficiente para sustentar os cinco filhos. Quem iria empregar um preto, beirando os quarenta anos, naquela sociedade que hav

Vinte poemas de Maria do Rosário Pedreira no livro Poesia reunida

Maria do Rosário Pedreira - foto daqui Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada daquilo que disseste quando os meus seios começaram a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande, murcharam tão depressa as rosas que me deram — se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer. Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos, só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia, deitei-me com mais homens do que aqueles que amei e o que amei de verdade nunca acordou comigo. Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca. Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez não chames pelo meu nome, não me peças que fique — as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de

Nove passagens de Ricardo Cury no romance Tchau

Ricardo Cury – foto daqui “— É a primeira vez que uma branca me dá um beijo — disse ela. Assim que conseguiu comprar a casa, se casou e teve os quatro filhos. O marido, traficante, bebia, cheirava e batia nela. — Por que você não se separou? — perguntei um dia, ingênua. — Oh, Luiza, você não sabe da vida que a gente leva. Esse povo do tráfico, a gente não pode se separar, é bala na certa — dizia com autoridade e melancolia. Fui estimulando pra que ela se gostasse mais, mas nada adiantava muito. Nunca parou de fumar. Durante uma crise, tive de chamar um dos filhos. Veio a menina, Joseane. — Dona Marina, sua filha tratou você tão mal quando esteve aqui — comentei. Ela respondeu que eu precisava ver os outros, pois eram bem piores. Moravam com ela por causa do dinheiro do INSS, que eles pegavam todo. — Eu não posso comprar nada, um sabonete, um xampu, uma comida. Logo em seguida deu a notícia de que o pequeno, o único que ainda tinha algum respeito por ela, tinha virado aviã