Junot Díaz - foto daqui
“Há vezes em que o cliente tem que sair correndo pra comprar comida de gato ou jornal na hora em que a gente tá no meio do trabalho. Não se preocupem, estou certo de que vocês vão ficar bem, dizem. Mas nunca parecem muito seguros. Claro, digo eu. É só nos mostrar onde é que está a prataria. Os clientes ha-ha e nós ha-ha, e então eles morrem de agonia de sair e ficam hesitando na porta da frente, tentando guardar na memória tudo que possuem, como se não soubessem onde encontrar a gente, pra quem a gente trabalha.
Uma vez que saiam, não tenho mais que ficar preocupado com alguém me enchendo o saco. Deixo a catraca de lado, estalo os dedos e exploro, geralmente enquanto Wayne está alisando o pano verde e não precisa de ajuda. Pego uns biscoitos na cozinha, barbeadores descartáveis nos armários do banheiro. Algumas dessas casas têm vinte, trinta quartos. Volta e meia eu conto, e na volta fico calculando quantos roubos eu precisaria fazer pra encher todo aquele espaço. Já fui pego rondando muitas vezes, mas você ficaria surpreso de saber como eles acreditam rápido que você tá procurando o banheiro, se você não pular quando for descoberto, se você apenas disser, Oi.”
“Vivi sem pai pelos primeiros nove anos da minha vida. Ele estava nos Estados Unidos, trabalhando, e eu só conhecia a cara dele pelas fotografias que minha mãe guardava debaixo da cama, num saco plástico daqueles de guardar sanduíche. Como o nosso teto de zinco era cheio de goteiras, quase tudo que tínhamos era manchado de água: nossas roupas, a bíblia da Mami, a maquiagem dela, todas as comidas que tivéssemos, as ferramentas do Abuelo, até nossa mobília de madeira barata. Foi só por causa do saco plástico que as fotografias do pai sobreviveram. (...) Eu não pensava nele frequentemente. (...) Nos dias em que eu tinha de imaginá-lo — raramente, pois a Mami já não falava tanto — ele era o soldado da foto. Ele era uma nuvem de fumaça de cigarro, cujos traços ainda estavam nos uniformes que tinha deixado pra trás. Ele era pedaço dos pais dos meus amigos, dos jogadores de dominó na esquina, pedaços da Mami e do Abuelo. Eu absolutamente não o conhecia. Não sabia que ele tinha nos abandonado. Que toda essa história de esperar por ele era uma fraude.”
“(...) ele já tinha sido roubado duas vezes, suas costelas já tinham sido moídas na porrada. Volta e meia ele bebia demais e ia pra casa, pro quarto, e ficava lá dando voltas enlouquecido, fervendo de raiva da estupidez que o tinha levado pra aquela merda de país congelado, puto que um homem da sua idade tivesse que se masturbar quando tinha uma esposa, e com ódio do vislumbre de existência que seus empregos e a cidade lhe impunham. Ele nunca tinha tempo pra dormir, quanto mais para ir aos museus e concertos que enchiam os cadernos inteiros dos jornais. E as baratas. As baratas em seu apartamento eram tão audaciosas que nem se assustavam quando ele acendia a luz. Ficavam acenando aquelas antenas de sete centímetros como se estivessem dizendo, Ô seu puto, apaga aí essa merda. Ele passava cinco minutos pisando naquelas carapaças enormes e sacudindo-as do colchão antes de cair na cama, mas, mesmo assim, elas continuavam a passear em cima dele durante a noite.”
“No primeiro ano, ele trabalhava dezenove, vinte horas por dia, sete dias por semana. No frio da rua, ele tossia como se seus pulmões fossem rasgar pela força das suas exalações; nas cozinhas, o calor dos fornos doía como um saca-rolhas enfiado em sua cabeça. Ele escrevia esporadicamente pra casa. A Mami perdoou o que ele tinha feito e contou quem mais tinha saído do barrio, pela via do caixão ou passagem aérea. As respostas do Papi eram rabiscadas onde quer que ele pudesse; em geral no papelão fino de caixas de tecido ou em páginas dos blocos de notas do trabalho. Ele ficava tão cansado do trabalho que errava quase tudo que escrevia e tinha que ficar mordendo os lábios pra não dormir. Ele prometeu enviar passagens pra ela e pras crianças em breve. As fotos que recebia da Mami eram compartilhadas com seus amigos no trabalho e depois esquecidas na carteira, perdidas entre volantes de loteria. (...) O clima não ajudava. Ele ficava doente frequentemente, mas foi capaz de trabalhar ainda assim e conseguiu economizar dinheiro bastante pra procurar uma mulher pra casar. Era assim que se fazia, o mais velho dos maromas do pós-guerra. Encontre uma cidadã americana, case-se com ela, espere e então se divorcie. A rotina era muito praticada, muito cara e cheia de ciladas.”
“Nós morávamos ao sul do Cementerio Nacional, numa casa de madeira de dois quartos. Éramos pobres. A única maneira de sermos ainda mais pobres seria morar no campo ou ser imigrante haitiano, e a Mami nos apresentava regularmente essa possibilidade como consolação brutal. (...) Pelo menos vocês não estão no campo. Estariam comendo pedras agora. (...) A gente não comia pedra, mas também não comia carne ou feijão. Quase tudo em nossos pratos era cozido: yuca cozida, plátano cozido, guineo cozido, quem sabe um pedaço de queijo ou uma tira de bacalao. Nos dias melhores, o queijo e os plátanos eram fritos. Quando eu e o Rafa tínhamos nosso surto anual de vermes, era só fazendo economia nos nossos jantares que a Mami conseguia comprar o Verminox. Nem dá pra lembrar quantas vezes eu fiquei agachado em cima da nossa latrina com os dentes trincados, vendo aqueles parasitas cinza compridos saírem devagarinho do meio das minhas pernas.”
“O Papi ofereceu uma gorjeta ao motorista, mas ele já estava indo embora, a luz da capota acesa, chamando outro passageiro. Colocando sua bolsa no ombro, o Papi começou a bater pernas, sentindo o cheiro da poeira e o calor que filtrava da rocha prensada das ruas. No começo ele pensou em economizar dinheiro dormindo num banco de rua, mas ele não tinha referências e a inescrutabilidade das placas à volta o intimidou. E se houvesse um toque de recolher? Ele sabia que qualquer coisinha podia acabar com ele. Quantos antes dele tinham chegado tão longe só pra serem mandados de volta por causa de alguma infração boba? De repente, o céu ficou altíssimo. Ele refez o caminho percorrido e entrou no hotel, cujo néon espasmódico se projetava indiscreto na rua. Foi difícil entender o homem magro na escrivaninha, mas finalmente o homem escreveu o preço de uma noite em números garrafais. (...) Em uma hora ele estava dormindo. Tinha vinte e quatro anos. Era um forte. Não sonhou com a família e não sonharia por muitos anos. Em vez disso, sonhou com moedas de ouro, como as que tinham sido resgatadas dos muitos naufrágios perto da nossa ilha, empilhadas à altura de uma cana-de-açúcar.”
Junot Díaz - foto daqui
“Tem que tomar cuidado com essas manchas, disse o sujeito ao meu lado. Ele tinha dentes grandes e estava usando um chapéu de feltro liso. Seus braços eram muito musculosos.
Esses troços são muito gordurosos, eu falei.
Deixa eu ajudar. Ele cuspiu nos dedos e começou a esfregar a mancha, mas daí estava beliscando a ponta da minha pinga através do tecido do calção. E sorrindo. Eu dei um empurrão nele. Ele deu uma olhada pra ver se ninguém tinha visto.
Você é um pato, eu disse.
O homem continuou rindo.
Sai pra lá seu pato chupador de pinga, eu disse. O homem apertou meu ombro, calmamente, com força, da mesma maneira furtiva que os meus amigos faziam coisas comigo na igreja. Eu chorei.
Você tem que cuidar dessa sua boca, ele disse.”
“O Namorado pintou umas duas vezes nessa semana, pra pegar suas coisas, acho, pra terminar o trabalho. O sacana tinha uma puta autoconfiança. Escutou o que ela tinha a dizer, argumentos que ela tinha levado horas pra juntar, suspirou e disse que pouco importava, que ele precisava do seu espaço e punto. Ela dava pra ele toda vez, talvez na esperança de que isso fosse fazer ele ficar, mas sabe como é, toda vez que alguém alcança a velocidade de fuga, não há jogo no mundo que possa impedir de ir embora. Eu ficava escutando eles entrarem nessa e me sentia tipo, Porra, não tem nada pior do que essas trepadas de adeus. Eu sei como é. Eu e Loretta demos trepadas assim até não poder mais. Uma diferença, a gente nunca falou do jeito que aqueles dois falavam. Sobre o nosso dia-a-dia. Nem quando estávamos bem juntos. A gente ficava deitado lá, escutando o mundo lá fora, a rapaziada falando alto, os carros, os pombos. Na época, eu não tinha a menor ideia do que ela estava pensando, mas agora sei o que escrever nos balões vazios do pensamento dela. Fugir. Fugir.”
“(...) ela passa muito tempo na Hacienda, com o resto daqueles seus amigos fodidos. Encontro portas abertas e migalhas de Dorito, talvez uma privada sem dar a descarga. Sempre um vômito, no banheiro ou numa parede qualquer. Há vezes em que a rapaziada caga no meio da sala; aprendi a só começar a andar depois dos meus olhos se acostumarem ao escuro. Vou de quarto em quarto, a mão esticada pra frente, esperando que, quem sabe, somente daquela vez eu sinta o seu rosto macio do outro lado dos meus dedos, em vez de algum reboco de merda na parede. Uma vez isso aconteceu de verdade, mas há muito tempo. (...) Os apartamentos são todos iguais, sem a menor surpresa que seja. Lavo minhas mãos na pia, esfregando na parede e saio.”
“O Tío bateu aquela mão de tijolo no meu ombro. Todo mundo passa mal de vez em quando, ele disse. Você devia ter me visto no avião pra cá. Dios mio! E rolou seus olhos asiáticos pra dar ênfase. Pensei que ia morrer todo mundo.
Todo mundo podia ver que ele estava mentindo, isso sim. E eu tratei de sorrir como se ele estivesse me ajudando a me sentir melhor.
Quer beber alguma coisa?, perguntou o Tío. Temos cerveja e rum.
Miguel, disse Mami. Ele é muito novo.
Novo? Lá em Santo Domingo, ele já estaria transando numa altura dessas.
A Mami fechou a cara e apertou os lábios, o que produziu seu efeito.
Bem, é verdade, disse o Tío.”
Presentes no livro de contos Afogado (Record, 1998), de Junot Díaz, tradução de Renato Aguiar, páginas 102-103, 61-62, 146-147, 145, 62, 136-138, 19, 96-97, 52-53 e 33, respectivamente.
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