Ricardo Cury – foto daqui
“— É a primeira vez que uma branca me dá um beijo — disse ela.
Assim que conseguiu comprar a casa, se casou e teve os quatro filhos. O marido, traficante, bebia, cheirava e batia nela.
— Por que você não se separou? — perguntei um dia, ingênua.
— Oh, Luiza, você não sabe da vida que a gente leva. Esse povo do tráfico, a gente não pode se separar, é bala na certa — dizia com autoridade e melancolia.
Fui estimulando pra que ela se gostasse mais, mas nada adiantava muito. Nunca parou de fumar. Durante uma crise, tive de chamar um dos filhos. Veio a menina, Joseane.
— Dona Marina, sua filha tratou você tão mal quando esteve aqui — comentei.
Ela respondeu que eu precisava ver os outros, pois eram bem piores. Moravam com ela por causa do dinheiro do INSS, que eles pegavam todo.
— Eu não posso comprar nada, um sabonete, um xampu, uma comida.
Logo em seguida deu a notícia de que o pequeno, o único que ainda tinha algum respeito por ela, tinha virado aviãozinho do bairro e já a xingava frequentemente, completando o círculo de uma vida de abuso por parte dos ‘pais’, do marido e de todos os filhos. Uma mulher que nunca foi amada. A partir dessa minha constatação, toda vez que a encontrava, mesmo com aquele cheiro indefectível do cigarro, fazia questão de lhe dar um beijo e um abraço.
(...) então Joseane foi morta por traficantes.
— Graças a Deus. Já não aguentava mais aquela menina em casa.
— Mas Dona Marina, e se seus filhos todos forem mortos?
— O que eu posso fazer? É até melhor.”
“(...) Dona Francisca, 76, que uma semana antes havia me perguntado se eu acreditava em Deus.
— Tenho minhas dúvidas — fui sincera, como sempre era diante dessa pergunta que eu mesma me fazia regularmente.
— Tem filho? — Dona Francisca perguntou.
— Não.
— Quando você tiver filho essa dúvida some.”
“— A gastronomia (...) é a única forma de arte que afeta, em cheio, todos os sentidos. A música atinge a audição, as artes plásticas atingem a visão; cada uma com o seu objetivo emocional, mas a gastronomia aguça tudo.
(...)
— E tem mais: (...) a comida é a única arte que você ingere de forma concreta.
— E depois coloca pra fora — completei.
Seu Soares chegou a se sentar no leito, tamanha a excitação.
— É por isso que os chefs de cozinha, hoje em dia, são grandes popstars. E tem mais uma coisa ainda.
— O que é? — perguntei, curiosa, me aproximando.
Ele pediu para que eu chegasse ainda mais pra perto, como se fosse me contar um segredo valioso. Fui pra bem juntinho e ele cochichou em meu ouvido:
— Ela mata a fome.”
“Luiz então disse que era algo que o hipnotizava. Não conseguia tirar os olhos enquanto o peixe estivesse vivo e, com o tempo, passou a acreditar que era uma forma de respeito, como se não desdenhasse daquele ser.
— Pescar era o meu trabalho, era o que eu sabia fazer, era o que eu fazia, mas sinto que não conseguia estar com um bicho à beira da morte e não ficar ali com ele, olhando no olho, tentando passar algum conforto e até pedindo perdão.
— Pro peixe? — perguntou Teresa, também interessada.
— A falta de ar é algo que sempre me aterrorizou. Esperava aquele fim de sofrimento do peixe para também aliviar o meu — respondeu, sem ar, pedindo oxigênio.”
“(...) uma senhora (...) tinha vindo da Síria nos anos 20, analfabeta. Cercada por familiares, no fim da vida a centenária mulher cantava em árabe, para espanto de todos, que nunca a tinham escutado falar na língua pátria. E contei também de outra senhora que, quando viu o neto ao lado do seu leito de morte, balbuciou alguma coisa que ninguém entendeu. Ela ficou esperando ele se aproximar para repetir. Todo mundo ficou esperando. Ele se aproximou. ‘Tu engordou’, disse ela. Foram suas últimas palavras.
— Isso tudo em três meses de trabalho? — Renato perguntou.
— Morre gente todo dia — respondi.”
“Zinho não conhecia Caymmi, ou conhecia pouco. Podia até conhecer algumas músicas que já faziam parte da cultura popular, mas não sabia quem era.
— Nunca ouviu uma música dele que diz ‘é doce morrer no mar’?
— Não.
Ainda olhando para o oceano à sua frente disse que o pai e o tio morreram no mar e que não teve nada de doce nisso.”
“— O problema do mundo é que nas escolas a ciência ensina que o ser humano nasce, cresce, se reproduz e morre.
— E isso está errado? — perguntei.
— Erradíssimo. Onde fica o amor nessa ciência?
Pelo silêncio que se fez e os sorrisos que se abriram na sala, percebi que aquele discurso era inédito.
— O que deveria ser ensinado é que a gente nasce, ama, cresce, ama, se reproduz, ama, morre e o amor continua.
Foi aplaudido por todos enquanto abria os braços e recebia abraços calorosos dos mais novos. ‘Um Corleone’, pensei.”
“(...) Renato explicou o que sentia: temia que qualquer coisa que dissesse, qualquer conversa que iniciasse — fosse o assunto futebol, música, cinema ou política — terminaria derivando para aquele final inevitável e cada vez mais próximo.
— Nenhuma das partes quer assumir que o fim está próximo. É um silencioso acerto de permaneceremos calados — disse ele sobre o acordo tácito que eu começaria a perceber ser comum nestes casos.
Uma semana antes de morrer, Seu Luciano, negando o destino, vetou a visita de um amigo de infância. ‘Vem da Alemanha pra me ver, por quê? É melhor esperar que eu melhore’.
— O amigo agora não vem e eles nunca mais irão se ver — lamentou o filho.”
“— Você se lembra das minhas amigas de infância? — perguntei à minha mãe, enquanto tomávamos café da manhã. — Será que estão vivas?
Havia beleza e tristeza naquilo. Algumas pessoas passam por nossas vidas, deixam suas marcas e vão embora para sempre.
— Se eu nunca mais as encontrar e não souber delas, qual a diferença, para mim, entrem estarem mortas ou vivas — assim como eu para elas, neste mundo de bilhões de pessoas? — questionei.
— Estar vivo é um milagre — disse minha mãe.”
Presentes no romance Tchau (2019), de Ricardo Cury, páginas 78-79, 127, 129-130, 218-219, 102, 119, 126, 94 e 198, respectivamente.
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