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Dez passagens de Jorge Amado no romance Capitães da Areia

Jorge Amado


“[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava ‘meu padrinho’ e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar. A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava. Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto. Depois encontrou os Capitães da Areia (...) Não tardou a se destacar porque sabia como nenhum afetar uma grande dor e assim conseguir enganar senhoras, cujas casas eram depois visitadas pelo grupo já ciente de todos os lugares onde havia objetos de valor e de todos os hábitos da casa. E o Sem-Pernas tinha verdadeira satisfação ao pensar em quanto o xingariam aquelas senhoras que o haviam tomado por um pobre órfão. Assim se vingava, porque seu coração estava cheio de ódio.”


“[Nhozinho França] manda que Volta Seca vá andar no carrossel. E o menino toma o cavalo que serviu a Lampião. E enquanto dura a corrida, vai pulando como se cavalgasse um verdadeiro cavalo. E faz movimentos com o dedo, como se atirasse nos que vão na sua frente, e na sua imaginação os vê cair banhados em sangue, sob os tiros da sua repetição. E o cavalo corre e cada vez corre mais, e ele mata a todos, porque são todos soldados ou fazendeiros ricos. Depois possui nos bancos a todas as mulheres, saqueia vilas, cidades, trens de ferro, montado no seu cavalo, armado com seu rifle. (...) Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado, uma estranha comoção o possui. Vai como um crente para uma missa, um amante para o seio da mulher amada, um suicida para a morte. Vai pálido e coxeia. Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola. Só vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza. Já não vê os soldados que o surraram, o homem de colete que ria. Volta Seca os matou na sua corrida. O Sem-Pernas vai teso no seu cavalo. É como se corresse sobre o mar para as estrelas, na mais maravilhosa viagem do mundo. Uma viagem como o Professor nunca leu nem inventou. Seu coração bate tanto, tanto, que ele o aperta com a mão.”


“(...) Muitas vezes já fizera aquilo: penetrar em casa de uma família como um menino pobre, órfão e aleijado e neste título passar os dias necessários para fazer um reconhecimento completo da casa, dos lugares onde guardavam os objetos de valor, das saídas fáceis para uma fuga. Depois os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite, levavam os objetos valiosos, e no trapiche o Sem-Pernas gozava invadido por uma grande alegria, alegria da vingança. Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. Olhavam-no sempre como a perguntar quando ele iria. E muitas vezes a senhora que se comovera com a sua história, contada na porta em voz soluçante, e o acolhera, mostrava evidentes sinais de arrependimento. Para o Sem-Pernas elas o acolhiam de remorso. Porque o Sem-Pernas achava que eles eram todos culpados da situação de todas as crianças pobres. E odiava a todos, com um ódio profundo. Sua grande e quase única alegria era calcular o desespero das famílias após o roubo, ao pensar que aquele garoto esfomeado a quem tinham dado comida quem fizera o reconhecimento da casa e indicara a outras crianças esfomeadas onde estavam os objetos de valor.”


“(...) Durante aqueles oito dias os Capitães da Areia continuaram malvestidos, mal alimentados, dormindo sob a chuva no trapiche ou embaixo das pontes. Enquanto isso, o Sem-Pernas dormia em boa cama, comia boa comida, tinha até uma senhora que o beijava e o chamava de filho. Se sentiu como um traidor do grupo. Era igual àquele doqueiro do qual fala João de Adão cuspindo no chão e passando o pé em cima com desprezo. Aquele doqueiro que na greve grande se passara para o outro lado, para o lado dos ricos, furara a greve, fora contratar homens de fora para trabalhar nas docas. Nunca mais um homem do cais apertou sua mão, nunca mais um o tratou como amigo. E se para alguém o Sem-Pernas abria exceção no seu ódio, que abrangia o mundo todo, era para as crianças que formavam os Capitães da Areia. Estes eram seus companheiros, eram iguais a ele, eram as vítimas de todos os demais, pensava o Sem-Pernas. E agora sentia que os estava abandonando, que estava passando para o outro lado. Com este pensamento se sobressaltou, sentou-se. Não, ele não os trairia. Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia. Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo. E nunca nenhum a havia traído do modo como o Sem-Pernas a ia trair. Para virar menino mimado, para virar uma daquelas crianças que eram eterno motivo de galhofa para eles. Não, não os trairia. Teriam bastado três dias para ele localizar os objetos de valor da casa. Mas a comida, a roupa, o quarto, e mais que a comida, a roupa e o quarto, o carinho de dona Ester tinham feito que ele passasse já oito dias. Tinha sido comprado por este carinho como o estivador fora comprado por dinheiro. Não, não trairia. Mas aí pensou se não ia trair dona Ester. Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem. O Sem-Pernas ia trair essa lei, ia pagar o bem com o mal. Lembrou-se que das outras vezes, quando dava o fora de uma casa para ela ser assaltada, era uma grande alegria que o invadia. Desta vez não tinha alegria nenhuma.”


“(...) O carrossel armado no capim da praça da Matriz estava parado fazia uma semana. Nhozinho França esperava a noite de sábado e a tarde de domingo para ver se fazia algum cobre para arribar para um lugar melhor. Mas na sexta-feira Lampião entrou na vila com vinte e dois homens e então o carrossel teve muito que trabalhar. Como as crianças, os grandes cangaceiros, homens que tinham vinte e trinta mortes, acharam belo o carrossel, acharam que mirar suas luzes rodando, ouvir a música velhíssima da sua pianola e montar naqueles estropiados cavalos de pau era a maior felicidade. E o carrossel de Nhozinho França salvou a pequena vila de ser saqueada, as moças de serem defloradas, os homens de serem mortos. Só mesmo os dois soldados da polícia baiana que lustravam as botas na frente do posto policial foram fuzilados pelos cangaceiros, assim mesmo antes que eles vissem o carrossel armado na praça da Matriz. Porque talvez até aos soldados da polícia baiana Lampião perdoasse nessa noite de suprema felicidade para o bando de cangaceiros. Então eles foram como crianças, gozaram daquela felicidade que nunca haviam gozado na sua meninice de filhos de camponeses: montar e rodar num cavalo de madeira de um carrossel, onde havia música de uma pianola e onde as luzes eram de todas as cores: azuis, verdes, amarelas, roxas e vermelhas como o sangue que sai do corpo dos assassinados.”


“(...) uma grande parte dos Capitães da Areia dormia no velho trapiche abandonado, em companhia dos ratos, sob a lua amarela. Na frente, a vastidão da areia, uma brancura sem fim. Ao longe, o mar que arrebentava no cais. Pela porta viam as luzes dos navios que entravam e saíam. Pelo teto viam o céu de estrelas, a lua que os iluminava. (...) meninos, moleques de todas as cores e de idades as mais variadas, desde os nove aos dezesseis anos, que à noite se estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte e dormiam, indiferentes ao vento que circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva que muitas vezes os lavava, mas com os olhos puxados para as luzes dos navios, com os ouvidos presos às canções que vinham das embarcações (...) Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi desta época que a cidade começou a ouvir falar nos Capitães da Areia, crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem e destes mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho trapiche. (...) Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.”


“(...) É pra falar no tal do reformatório que eu escrevo estas mal traçadas linhas. Eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa ver o tal do reformatório para ver como são tratados os filhos dos pobres que têm a desgraça de cair nas mãos daqueles guardas sem alma. Meu filho Alonso teve lá seis meses e se eu não arranjasse tirar ele daquele inferno em vida, não sei se o desgraçado viveria mais seis meses. O menos que acontece pros filhos da gente é apanhar duas e três vezes por dia. O diretor de lá vive caindo de bêbedo e gosta de ver o chicote cantar nas costas dos filhos dos pobres. Eu vi isso muitas vezes porque eles não ligam pra gente e diziam que era para dar exemplo. Foi por isso que tirei meu filho de lá. Se o jornal do senhor mandar uma pessoa lá, secreta, há de ver que comida eles comem, o trabalho de escravo que têm, que nem um homem forte aguenta, e as surras que tomam. Mas é preciso que vá secreto senão se eles souberem vira um céu aberto. Vá de repente e há de ver quem tem razão. É por essas e outras que existem os Capitães da Areia. Eu prefiro ver meu filho no meio deles que no tal reformatório.”


          “— É Pirulito... — disse Sem-Pernas.
          Pedro Bala ficou olhando. Encolheu os ombros:
          — Que adianta?
          Sem-Pernas olhou:
          — Não dá de comer...
          — Um dia vai ser padre também. Tem que ser é tudo junto.
          Sem-Pernas disse:
          — A bondade não basta.
          Completou: 
          — Só o ódio...
          Pirulito não os via. Com uma paciência e uma bondade extremas ensinava às crianças buliçosas as lições de catecismo. Os dois Capitães da Areia saíram balançando a cabeça. Pedro Bala botou a mão no ombro do Sem-Pernas.
          — Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta.”


          “Agora levavam Aninha para sua casa. A noite em torno era tormentosa e colérica. A chuva os curvava sob o grande guarda-chuva branco da mãe-de-santo. Os candomblés batiam em desagravo a Ogum e talvez num deles ou em muitos deles Omolu anunciasse a vingança do povo pobre. Don’Aninha disse aos meninos com uma voz amarga:
          — Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre não pode dançar, não pode cantar pra seu deus, não pode pedir uma graça a seu deus — sua voz era amarga, uma voz que não parecia da mãe-de-santo Don’Aninha. — Não se contentam de matar os pobres a fome... Agora tiram os santos dos pobres... — e alçava os punhos.
          Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si. Os pobres não tinham nada. O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos céus, onde Deus seria igual para todos. Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo. No reino do céu seriam iguais. Mas já tinham sido desiguais na terra, a balança pendia sempre para um lado.”


“(...) os mais velhos, os que eram desde há anos os chefes do grupo, estavam rapazolas, começavam a ir para seus destinos. Professor já fora, fazia quadros no Rio de Janeiro. Boa-Vida se desligara aos poucos do trapiche, toca violão nas festas, vai aos candomblés, arma fuzuê nas quermesses. É mais um malandro na cidade. Seu nome já é conhecido até nos jornais. Como os outros vagabundos, é conhecido pelos investigadores de polícia, que sempre estão de olho nos malandros. Pirulito é frade num convento, Deus o chamou, nunca mais saberão dele. Agora é o Gato que parte, vai arrancar dinheiro dos coronéis de Ilhéus. O Querido-de-Deus certa vez disse que Gato enricaria. Porque a vida na rua, no abandono, fez de Gato um jogador desonesto, um vigarista, um gigolô de mulheres. Não demorará que os outros partam. Só Pedro Bala não sabe o que fazer. Dentro em pouco será mais que um rapazola, será um homem e terá que deixar para outro a chefia dos Capitães da Areia. Para onde irá? Não poderá ser um intelectual como Professor, cujas mãos só viviam para pintar, não nasceu para malandro, como Boa-Vida, que não sente o espetáculo da luta diária dos homens, que só ama andar vagabundando pelas ruas, conversar acocorado nas docas, beber nas festas de morro. Pedro sente o espetáculo dos homens, acha que aquela liberdade não é suficiente para a sede de liberdade que tem dentro de si. Tampouco sente o chamado de Deus, como Pirulito o sentiu. Para ele as pregações do padre José Pedro nunca disseram nada. Gostava do padre como de um homem bom. (...) Quer qualquer coisa que não sabe ainda o que é, e por isso se demora entre os Capitães da Areia.”


Presentes no romance “Capitães da Areia” (Companhia das Letras, 2008), de Jorge Amado, páginas 38-39, 70, 124-125, 130-131, 64-65, 28-29, 18, 236, 97 e 244-245, respectivamente.

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