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Quinze passagens de Clarice Lispector no romance A maçã no escuro



“(...) se em um instante se nasce, e se morre em um instante, um instante é bastante para a vida inteira.”


“(...) Por mais liberdade que tivesse, ele só poderia criar o que já existia.”


“— Pois é, disse ela concordando apenas para não ficar só, porque quando falava a verdade encontrava a súbita muralha dos outros se defendendo. (...) — Depois que eu acabar de falar, você me desconhecerá ainda mais: é sempre assim que acontece — quando a gente se revela, os outros começam a nos desconhecer.”


“(...) Na verdade, concluiu então muito interessado, apenas imitara a inteligência, com aquela falta essencial de respeito que faz com que uma pessoa imite. E com ele, milhões de homens que copiavam com enorme esforço a ideia que se fazia de um homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a ideia que se fazia de mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforço sobre-humano a própria cara e a ideia de existir; sem falar na concentração angustiada com que se imitavam atos de bondade ou de maldade — com uma cautela diária em não escorregar para um ato verdadeiro, e portanto incomparável, e portanto inimitável, e portanto desconcertante. E enquanto isso, tinha alguma coisa velha e podre em algum lugar inidentificável da casa, e a gente dorme inquieta, o desconforto é a única advertência de que se está copiando, e nós nos escutamos atentos embaixo dos lençóis. Mas tão distanciados estamos pela imitação que aquilo que ouvimos nos vem tão sem som como se fosse uma visão que fosse tão invisível como se estivesse nas trevas que estas são tão compactas que mãos são inúteis. Porque mesmo a compreensão, a pessoa imitava. A compreensão que nunca fora feita senão da linguagem alheia e de palavras.”


“(...) Nada há de tão destruidor de palavras ditas quanto o sol que continua a queimar. Ficaram em silêncio, dando-se tempo de esquecer. Por um pacto tácito esqueceriam aquela coisa um pouco feia que acontecera. Ambos não eram moços e tinham alguma experiência: certas coisas a pessoa tinha que ter a hombridade de não notar, e ter a piedade de nós mesmos e esquecer, e ter o tato de não perceber — se se quisesse impedir que um momento de compreensão nos cristalizasse, e a vida se tornasse outra. Ambos não eram moços, e eram prudentes. Assim, pois, depois da explosão, mantiveram-se calados como se nada tivesse acontecido porque ninguém pode viver do espanto, e ninguém podia viver à base de ter vomitado ou ter visto alguém vomitar, eram coisas a não se pensar muito a respeito: eram fatos de uma vida.”


“Ali, enfim familiar, toda revelada para ele, o homem a examinou. Ela não seria bonita, se uma pessoa não a amasse. Mas tinha a beleza que se vê quando se ama o que se vê. Toda mãe de filha feia deveria prometer-lhe que ela seria bonita quando a sabedoria do amor esclarecesse um homem, pensou ele. Ao redor das pupilas escuras de Ermelinda, por exemplo, Martim viu um círculo levemente âmbar, o que sem amor escaparia. Viu também que o nascimento dos cabelos na nuca era mais suave, e esses fios curtos demais para se prenderem na trança pairavam em luz no ar. Nos braços os pelos claros douravam a moça como se ela não pudesse ser tocada. Uma vez amada, ela era de rara delicadeza e beleza. Ele olhou-a curioso, simpático. Ela era capaz de fazer a felicidade de um homem; mas estranhamente tivera que enganá-lo com truques até fazê-lo feliz, e só então é que lhe mostrara que não o enganara e que a felicidade que lhe dava era real.”


“(...) quando um homem dormia tão no fundo passava a não ser mais do que aquela árvore de pé ou o pulo do sapo no escuro. (...) A essa altura já se havia habituado à música estranha que de noite se ouve e que é feita da possibilidade de alguma coisa piar e da fricção delicada do silêncio contra o silêncio. Era um lamento sem tristeza. O homem estava no coração do Brasil. E o silêncio fruía a si mesmo.”


“(...) Ocorreu-lhe que, ao falar com ele, poderia sem querer deixar escapar o que ela era, e o homem então perceberia quanto ela precisava dele, e por isso não a quereria mais, como acontece com as pessoas. À simples possibilidade dele nunca vir a gostar dela, Ermelinda se arrepiou solitária, olhou os pássaros que voavam. Seu trabalho junto ao homem foi sempre tão delicado, e exigiu tanta precisão, que ela não o saberia fazer se apenas o decidisse ou se lhe mandassem fazê-lo. Era um labor de infinita cautela, onde um passo mais e o homem jamais a amaria, onde um passo a mais e ela mesma talvez deixasse de amá-lo: ela protegia ambos contra o erro. E às vezes mais parecia proteger ambos contra a verdade.”


          “— Um dia amei um homem. Depois deixei de amá-lo. Não sei por que o amei, não sei por que deixei de amá-lo.
          Martim, preocupado com o alemão, não soube o que retrucar e então perguntou:
          — E depois você se tornou amiga dele?
          E se assim ele perguntou é porque estava desamparado e precisava de amizade.
          — Não, disse ela olhando-o devagar. Não. A amizade é muito bonita mesmo. Mas o amor é mais. Eu não podia ter amizade por um homem que eu tinha amado.
          — E depois? perguntou ele com uma angústia cujas raízes ele próprio ignorava.
          — Depois, disse ela, depois eu chorava de tristeza, até sem dor. Eu pedia: me faça sofrer por amor! Mas nada acontecia, eu estava de novo livre.
          — E não era bom estar livre?
          — Era como se os anos tivessem passado e eu visse num rosto que antes tinha sido tudo para mim, eu visse nesse rosto aquilo de que é feito o amor: de nós mesmos. E era como se até o amor mais real fosse feito de um sonho. Se isso é ser livre, então eu estava livre.”


“E lá era bom. Lá nenhuma planta sabia quem ele era; e ele não sabia quem ele era; e ele não sabia o que as plantas eram; e as plantas não sabiam o que elas eram. E todos no entanto estavam tão vivos quanto se pode estar vivo: esta provavelmente era a grande meditação daquele homem. Assim como o sol brilha e assim como o rato é apenas um passo além da grossa folha espalmada daquela planta — esta era a sua meditação.”


“Livre, pela primeira vez livre, que fez Martim? Fez o que pessoas presas fazem: amava o vento áspero, amava o seu trabalho nas valas. Como um homem que tivesse marcado o grande encontro de sua vida e jamais chegasse porque se distraísse leso examinando folhinhas verdes. Era assim que ele amava e se perdia. E o pior é que amava sem ter uma razão concreta. Apenas porque uma pessoa que nascia, amava? e sem saber para quê. Agora que criara com suas próprias mãos a oportunidade de não ser mais vítima nem algoz, de estar fora do mundo e não precisar mais perturbar-se com a piedade nem com o amor, de não precisar mais castigar nem castigar-se — inesperadamente nascia o amor pelo mundo. E o perigo disso é que, se não tomasse cuidado, ele teria desistido de ir adiante.”


“(...) ela sabia que ele não compreendia, sabia que só existiam sucesso e fracasso, e entre estes dois nada existia, e que por isso ela jamais sairia do limbo para provar que através da frase sobre as rainhas a poesia tomaria o seu sutil ímpeto; e como sabia que jamais provaria aos outros a graça infinita que pode se levantar em voo de uma frase simples, então ela, que só acreditava no sucesso, não acreditou na própria veracidade do que sentia”


“(...) quem sabe se o essencial não foi destinado a ser compreendido, se somos cegos por que insistimos em ver com os olhos, por que não tentamos usar estas nossas mãos entortadas por dedos? Por que tentamos ouvir com os ouvidos o que não é som? E por que tentamos, de novo e de novo, a porta da compreensão? O essencial é destinado apenas a se cumprir”


“(...) Embaraçadamente entregue ao recurso de si mesmo, parecia tentar usar o próprio desamparo como bússola. Experimentou calcular se estaria perto ou infinitamente longe daquilo que acontecia em algum lugar. Mal parava, e de novo o silêncio do sol se refazia e o desorientava. (...) Era uma atmosfera de júbilo. De vazio e vertiginoso júbilo, como acontece inexplicavelmente a um homem no alto de uma montanha. Ele nunca estivera tão perto da promessa que parece ter sido feita a uma pessoa quando esta nasce. Estupidificado, ele abriu várias vezes a boca como um peixe. Parecia ter atingido aquela coisa que uma pessoa não sabe pedir. Aquela coisa a que obscuramente ele só poderia dizer: consegui. Como se tivesse provocado o mais fundo de uma realidade imaginada. Às vezes a pessoa estava tão ávida por uma coisa, que esta acontecia, e assim se formava o destino dos instantes, e a realidade do que esperamos: seu coração, ansioso por bater amplo, batia amplo. E como para um pioneiro pisando pela primeira vez em terra estranha, o vento cantava alto e magnífico.”


“(...) A verdade nunca é aterrorizante, aterrorizantes somos nós.”


Presentes no romance “A maçã no escuro” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 130, 374, 209-211, 35-36, 309, 208, 11 e 19, 140, 224-225, 100, 162-163, 294-295, 378, 54-56 e 357, respectivamente.

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