“(...) não ia mais trabalhar como datilógrafa, tinha outros dons. Mr. Clairson que se danasse. Ia era ficar mesmo nas ruas e levar homens para o quarto. Como era boa de cama, pagar-lhe-iam muito bem. Poderia beber vinho italiano todos os dias. Tinha vontade de comprar um vestido bem vermelho com o dinheiro que o cabeludo lhe deixara. Soltara os cabelos bastos que eram uma beleza de ruivos. Ela parecia um uivo. (...) Aprendera que valia muito. Se Mr. Clairson, o sonso, quisesse que ela trabalhasse para ele, teria que ser de outro bom modo. (...) Quer saber de uma coisa? deite-se comigo na cama, seu desgraçado! e tem mais: me pague um salário alto por mês, seu sovina! (...) Tinha certeza de que ele aceitaria. Era casado com uma mulher pálida e insignificante, a Joan, e tinha uma filha anêmica, a Lucy. Vai é se deliciar comigo, o filho de uma cadela.”
“(...) foram os três para cama: Xavier, Carmem e Beatriz. Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres. (...) Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra. (...) A noite (...) foi memorável para os três. De madrugada estavam exaustos. (...) Xavier trabalhava muito para sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às vezes enganava a ambas com uma prostituta ótima. Mas nada contava em casa pois não era doido. (...) Os três na verdade eram quatro, como os três mosqueteiros. (...) Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste. (...) Um dia contaram esse fato a Xavier. (...) Xavier vibrou. E quis que nessa noite as duas se amassem na frente dele. Mas, assim encomendado, terminou tudo em nada. As duas choraram e Xavier encolerizou-se danadamente. (...) Durante três dias ele não disse nenhuma palavra às duas. (...) Mas, nesse intervalo, e sem encomenda, as duas foram para a cama e com sucesso.”
“Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:
— Quando é que passa?
— Passa o quê, minha senhora?
— A coisa.
— Que coisa?
— A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
— Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
Olhou-o espantada.
— Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
— Não importa, minha senhora. É até morrer.
— Mas isso é o inferno!
— É a vida, senhora Raposo.
A vida era isso, então? essa falta de vergonha?
— E o que é que eu faço? ninguém me quer mais...
O médico olhou-a com piedade.
— Não há remédio, minha senhora.
— E se eu pagasse?
— Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
— E… e se eu me arranjasse sozinha? o senhor entende o que eu quero dizer?
— É, disse o médico. Pode ser um remédio.”
“Viver tem dessas coisas: de vez em quando se fica a zero. E tudo isso é por enquanto. Enquanto se vive. (...) Trabalhei o dia inteiro, são dez para as seis. O telefone não toca. Estou sozinha. Sozinha no mundo e no espaço. E quando telefono, o telefone chama e ninguém atende. Ou dizem: está dormindo. (...) A questão é saber aguentar. Pois a coisa é assim mesmo. (...) Que faço? telefono a mim mesma? Vai dar um triste sinal de ocupado, eu sei, uma vez já liguei distraída para o meu próprio número. Como acordo quem está dormindo? como chamo quem eu quero chamar? o que fazer? Nada: porque é domingo e até Deus descansou. Mas eu trabalhei sozinha o dia inteiro. (...) Quero alegria, a melancolia me mata aos poucos. (...) Quando a gente começa a se perguntar: para quê? então as coisas não vão bem. E eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas ‘por enquanto’.”
“Ele chorou um pouco. Era um belo homem, com barba por fazer e abatidíssimo. Via-se que havia fracassado. Como todos nós. Ele me perguntou se podia ler para mim um poema. Eu disse que queria ouvir. Ele abriu uma sacola, tirou de dentro um caderno grosso, pôs-se a rir, ao abrir as folhas. (...) Então leu o poema. Era simplesmente uma beleza. Misturava palavrões com as maiores delicadezas. Oh Cláudio — tinha eu vontade de gritar — nós todos somos fracassados, nós todos vamos morrer um dia! Quem? mas quem pode dizer com sinceridade que se realizou na vida? O sucesso é uma mentira.”
“(...) a filha teve gangrena na perna e tiveram que amputá-la. Essa Jandira, de dezessete anos, fogosa que nem potro novo e de cabelos belos, estava noiva. Mal o noivo viu a figura de muletas, toda alegre, alegria que ele não percebeu que era patética, pois bem, o noivo teve coragem de simplesmente desmanchar sem remorso o noivado, que aleijada ele não queria. Todos, inclusive a mãe sofrida da moça, imploraram ao noivo que fingisse ainda amá-la, o que — diziam-lhe — não era tão penoso porque seria a curto prazo: é que a noiva tinha vida a curto prazo. (...) E daí a três meses — como se cumprisse promessa de não pesar nas débeis ideias do noivo — daí a três meses morreu, linda, de cabelos soltos, inconsolável, com saudade do noivo, e assustada com a morte como criança tem medo do escuro: a morte é de grande escuridão. Ou talvez não. Não sei como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei. Quem sabe se não tão escura. Quem sabe se é um deslumbramento. A morte, quero dizer.”
“Foram armadas. O quarto estava escuro. Elas faquejaram erradamente, apunhalando o cobertor. Era noite fria. Então conseguiram distinguir o corpo adormecido (...) O rico sangue (...) escorria pela cama, pelo chão, um desperdício. (...) sentaram-se junto à mesa da sala de jantar, sob a luz amarela da lâmpada nua, estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina. As duas estavam suadas, mudas, abatidas. Se tivessem podido, não teriam matado o seu grande amor. (...) E agora? Agora tinham que se desfazer do corpo. O corpo era grande. O corpo pesava. (...) Então as duas foram ao jardim e com auxílio de duas pás abriram no chão uma cova. (...) E, no escuro da noite — carregaram o corpo pelo jardim afora. Era difícil porque (...) morto parecia pesar mais do que quando vivo, pois escapara-lhe o espírito. Enquanto o carregavam, gemiam de cansaço e de dor. (...) Puseram o grande corpo dentro da cova, cobriram-na com a terra úmida e cheirosa do jardim, terra de bom plantio. Depois entraram em casa, fizeram de novo café, e revigoraram-se um pouco.”
“O noivo, que se chamava pelo nome de família, o Bastos, ao que parece morava, ainda no tempo da noiva viva, morava com uma mulher. E assim com esta continuou, pouco ligando. (...) Bem. A mulher teve ciúmes e enquanto Bastos dormia despejou água fervendo do bico da chaleira dentro do ouvido dele que só teve tempo de dar um urro antes de desmaiar, urro esse que podemos adivinhar que era o pior grito que tinha, grito de bicho. Bastos foi levado para o hospital e ficou entre a vida e a morte, esta em luta feroz com aquela. (...) A virago, chamada Leontina, pegou um ano e pouco de cadeia. (...) De onde saiu para encontrar-se — adivinhem com quem? pois foi encontrar-se com o Bastos. A essa altura um Bastos muito mirrado e, é claro, surdo para sempre, logo ele que não perdoara defeito físico. (...) O que aconteceu? Pois voltaram a viver juntos, amor para sempre.”
“Lembrei-me de uma coisa engraçada. Uma amiga que tenho veio um dia fazer a feira aqui defronte de minha casa. Mas estava de short. E um feirante gritou-lhe:
— Mas que coxas! que saúde!
Minha amiga ficou danada da vida e disse-lhe:
— Vá dizer isso para aquela que o pariu!
O homem riu, o desgraçado.
Pois é. Sei lá se este livro vai acrescentar alguma coisa à minha obra. Minha obra que se dane. Não sei por que as pessoas dão tanta importância à literatura. E quanto ao meu nome? que se dane, tenho mais em que pensar.”
“Mas sou sagitário e escorpião, tendo como ascendente aquarius. E sou rancorosa. Um dia um casal me convidou para almoçar no domingo. E no sábado de tarde, assim, à última hora, me avisaram que o almoço não podia ser porque tinham que almoçar com um homem estrangeiro muito importante. Por que não me convidaram também? por que me deixaram sozinha no domingo? Então me vinguei. Não sou boazinha. Não os procurei mais. E não aceitarei mais convite deles. Pão pão, queijo queijo. (...) Detesto pedir favor. Não telefono para mais ninguém. Quem quiser que me procure. E vou me fazer de rogada. Agora acabou-se a brincadeira.”
Presentes no livro de contos “A via crucis do corpo” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 19, 20 a 22, 51-52, 43 a 45, 36, 53-54, 25-26, 54-55, 47 e 48, respectivamente.
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