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80 anos de Ildegardo Rosa: a despedida e o poema

Ildegardo Rosa, meu pai, o Mestre Dedé


Vinte e dois de outubro, 1 ano atrás. A minha família pode ter a benção de estar presente no dia mais feliz da vida do meu pai, Ildegardo Rosa, o Mestre Dedé, no Rio de Janeiro.

Nesta data, 1 ano atrás, ele fez 80 anos portando uma coroa de pelúcia que eu mesmo coroei na sua vasta cabeça de sergipano. E, no melhor estilo desprendido, quase livre da Matrix e da pedra que nos prega ao chão, vivenciou o "que rei sou eu?" e fez diversas palhaçadas, contando piadas e causos, dançando, vibrando, e recitando o poema "80 anos" que lhe pedi que fizesse (na sua obra, ele fez o poema dos 30 e dos 60, e concordou que chegar aos 90 seria quase impossível – premonição) semanas antes da comemoração maravilhosa.

Menos de dois meses depois, a pedra virou vento e ele partiu da matéria. Os seus 80 anos, na verdade, foi uma inesquecível despedida.

Parabéns, meu pai, felicidades e muito amor! – porque é difícil perder um hábito tão delicioso quanto este de emitir tal frase carinhosa.




Vinte e dois de outubro, 1 ano atrás. Meu pai, o Mestre Dedé, no dia mais feliz da sua vida, lê para a sua família um dos seus últimos poemas. Transcrevo abaixo:


80 anos
Ildegardo Rosa

Segundo
o calendário dos homens
hoje faço 80 anos.

Catingueiro/sergipano
dos Campos do Rei Real
que na barriga da mãe
se escondeu na igreja matriz
pra meu avô – cabra macho
escorraçar os cangaceiros de Lampião.

Assim contou minha bisavó.

Esses 80 anos
no acontecer de minha vida
onde o tempo nunca existiu
mas apenas a duração
sempre presente no eterno agora
onde fui uma célula
um feto
uma criança
um jovem
um adulto
agora sou um idoso
e que apenas será
uma lembrança esfumaçada
onde aconteceram
alegrias e brincadeiras
dores e sofrimentos
angústias e prazeres
quedas e subidas
solidariedade e decepção
loucuras e mirações
persistência e barreiras
buscando uma saída, um caminho
nessa ilusão ou talvez um absurdo
que chamamos de vida.

Aqui estou neste agora
neste presente sem tempo
onde ao menos
pude descortinar o Véu de Maya
pelo acontecer do AMOR
que muito dei e muito recebi
O amor dos meus antepassados
O amor dos meus pais
O amor dos meus irmãos
O amor dos meus sobrinhos
O amor da minha amada
O amor dos meus filhos
O amor dos meus netos
O amor daqueles que me amaram
e que ainda muito me amam
e eu a todos amo também

Hoje faço 80 anos
onde eu sou uma ilusão
ou um quase nada
diante da imensidão
do Universo manifesto
emanado da Força Suprema
da qual sou partícipe
na minha existência mutante
nesse enigmático cotidiano
peregrino destemido
em cumprir sua misteriosa missão!

Comentários

Rounds disse…
Bela homenagem. Belo poema.

Grande abraço.
Anônimo disse…
quase nada diante do universo e uma imensidão de amor nessa existência <3 obrigada pelos poemas, pelo fabuloso uso das palavras e por tocar esse coração jovem e sonhador

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