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Canalha!, de Carpinejar — Parte 02

Carpinejar
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"É triste encontrar um livro autografado no sebo. O desconsolo de ser recusado pelos pais biológicos. A dedicatória ingênua acreditando na leitura, alheia ao desprezo que lhe será reservada. A data e os nomes evidentes, mal sabendo que seriam revendidos como artigo anônimo. O volume repudiado volta idoso e frágil às livrarias, sem a arrogância de lançamento, aguardando a adoção em nome do preço baixo"


"Nada mais implacável do que perder a casa por falta de pagamento e baixar o olhar, impotente, aos filhos enquanto o oficial de justiça e os policiais empurram tudo para fora. No despejo, a única honra possível é recolher suas coisas antes dos estranhos (...) Não importa o grau de instrução, na dívida se é um iletrado. Um inconsequente. Um irresponsável. O devedor pede desculpa já no café da manhã. Nada mais implacável do que não contar com uma sombra familiar para repartir a inquietação (...) Nada mais implacável do que recuar produtos na esteira no mercado, escolher entre o essencial e o essencial, para chegar a um valor suportável"


"Quem censurou a casca de amendoim não entende o tamanho da ansiedade do intervalo entre o primeiro e o segundo tempo. Não tem filhos para repassar a arte de quebrar amendoim durante o ano. É uma arte sucessória, para que a criança não passe vergonha ao enfrentar as nozes no Natal. Quem censurou a casca de amendoim não entende a gravidade de uma derrota no domingo para regressar ao trabalho na segunda-feira. É necessário amassar o pão antes que o Diabo o faça"


"A verdade humilha. Para fugir dela, jura-se pelos amigos, familiares, por Deus e por tantos santos para convencer da mentira. É uma persuasão sem caráter, desesperada. Não haveria problema de jurar por si, porém não é suficiente. Mente-se pelo bairro inteiro para escapar da responsabilidade. Aquela declaração sincera que não aconteceu se converte em um sequestro. Além da ausência de franqueza, será preciso explicar o fato de botar tanta gente jurada em risco"


"Sua morte não me torna importante, nem sublinhará o que passamos juntos. Mas sua morte me transforma repentinamente em seu familiar. A morte tem disso: de aproximar telepaticamente quem se viu uma ou duas vezes. A morte é a intimidade que deveríamos ter criado em vida"


"Pantufas são fraldas geriátricas nos dedos"


"As mulheres têm o direito de deslocar sua data de nascimento; elas são as idades que imaginam"


"Enquanto me provocam, estou certo de que estamos bem. Posso ser consultor amoroso fora de casa; dentro de casa sou o último a ser consultado. Em minha família, são todos contra mim, inclusive eu"


"A poesia não pergunta sua ocupação, ela pousa"


"A megera é incapaz de falar ‘Tudo bem?’; logo, pergunta ‘O que foi?’"


"Ai de quem surgir de repente apertando o interfone e interromper o sono, a janta e o jogo de futebol "Como é que não ligou?", reclamarão os anfitriões. Ele será massacrado de indiretas ou provocará uma discussão de casal ou os residentes fingirão que não há ninguém (...) Ai de quem desejar pedir ajuda e conselho, ai de quem contrai uma pontada súbita de desespero e parte com suas pernas ingênuas em direção ao endereço de um nome mais leal. Ai de quem depende dos olhos nos olhos de uma companhia para se ouvir melhor. Ai de quem sofre de um amor separado e de solidão no fim de semana e está prestes a se matar. Antes os amigos ajudavam com os problemas, hoje os amigos são vistos como os problemas"



Trechos extraídos do livro de crônicas "Canalha!" (Bertrand Brasil, 2008), de Carpinejar.

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