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Estranhos e assustados, de Hélio Pólvora — Parte 03

Hélio Pólvora
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad


"Aparecida era do mar. Gostava de olhar o mar, horas seguidas, sentada num rochedo ou na areia, joelhos dobrados, a cabeça pousada nos joelhos. Suponho que tirava sabedoria de seus mudos diálogos com o mar – mas o que esperava, afinal, que o mar lhe segredasse? Se nos escuta, coisa de que duvido, o mar nada responde, porque simplesmente existe, e sua existência tem provavelmente a idade da Terra e enche uma eternidade de monólogos. Quanto muito o mar lhe dirá: 'Não me pergunte, que de nada sei. Apenas sei que sou imemorial'. Aparecida voltava sempre com um doce sorriso de seus enlevos marinhos. Ou o mar lhe segredara algo em língua inaudível, ou a sabedoria estava apenas nela, e precisava apenas que uma onda a lambesse, para vir à tona"


"A noite é uma tela negra, sem bordas nem fundo, e que de súbito se enche de movimento: imagens lentas, arrastadas, inaudíveis — um cinema sem som. Cenas em vagarosa sucessão que o idealizador do tempo e o arquiteto da memória se esqueceram de animar"


"Viu que o rosto dele enrijecia, os lábios se contraíam, de súbito lívidos pelo assomo da angústia. Insistiu: 'Temos visitas'. A mão esquerda sobre o peito sugeria penitência, embora já no desempenho da parte mais pesada da recepção: oferecer o melhor cômodo e as melhores camas, os mais alvos lençóis, cozinhar e servir pratos de resistência, bem temperados, bem apresentados. Um longo aborrecimento"


"Pelo repinicar das sinetas se conhece a tropa (...) na sua débil marcha, parece flutuar, assume formas esgarçadas de assombração. Elas são dez, quarenta, noventa. Cruzam e recruzam a região cacaueira da Bahia, desde o século passado, e não param de entregar cacau seco. Ainda não pararam, condenadas estão às estradas firmes e aos atoleiros e mata-burros da nossa lembrança (...) na ausência dos vultos de mais de cem anos, dos burros que viajam noite e dia sem parar, com as seis arrobas nas cangalhas, em marchas que duram cinquenta, cem, cento e vinte anos, ouvimos então os gritos: estalos de relhos, roçar de cordas e cilhões apertados, o alarido jubiloso das sinetas, o trovão dos cascos em solo duro, os gritos dos tropeiros. É a débil tropa que, agora desencarnada, persegue a sua sina de carregar cacau na trevosa memória grapiúna"


"O imaginário se robustece em ilhas paradisíacas. O Mal é o contrapeso de que se precisa para medir uma felicidade insuspeitada"


"Voltou à poltrona, sepultou-se outra vez e pensou nos livros que tinha comprado a crédito. Gostava de abri-los com a espátula e então cheirar as páginas onde se uniam à lombada, em ângulo e vórtice idênticos ao supremo sacrário que as mulheres guardam na junção das coxas e ventre. — Sabes abrir? Desperto, tentou apegar-se a resíduos de sua realidade. — Perdão?"


"A procissão expulsava do rosto dos enfermos a sombra sinistra da morte (...) viam Papa-Mel, o emissário da Morte, passar atado a um pau. E pensavam, esses enfermos crônicos, em restos de vida, na velhice chegando tranquila sem a presença de Papa-Mel sentado na calçada à espera de que a morte empunhasse a foice para então entrar na casa do defunto, banhar e vestir o defunto e carpir. Chorava mais e talvez com maior sentimento do que a família inteira"


"De onde estava, da janela em que me havia debruçado para saudar o dia, eu avistava Aparecida. Diante dela e à minha frente o mar parecia remansoso, exausto, como se acabasse de parir com dores: o suor lhe vinha sob forma de espuma escura que ele depositava, fervente, na areia. Parada, mão na boca, Aparecida era um instantâneo fotográfico de alguém colhido à beira do pânico ou do pântano"



Trechos presentes no livro de contos "Estranhos e assustados" (Casarão do Verbo, 2013), de Hélio Pólvora.

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