Pular para o conteúdo principal

Cinco passagens de Carlos Barbosa em Beira de rio, correnteza

Carlos Barbosa – Foto daqui


"Gero passeava o olhar do pai para o irmão, ambos cabisbaixos, silenciosos e tristes, enquanto a mãe retirava os pratos da mesa e servia o café a fumegar no bule. O amor familial, às vezes, veste trajes funéreos, escava fossos tremendos e dispara galope em direções opostas, quando tudo que ambiciona é estender braços e olhares sobre uma mesa de jantar e deixar escapar a verdade que o encorpa, pois todo o resto desimporta à sua existência incondicional. Gero não sabia que diante dele, pai e filho tornavam-se dois homens parelhos sentados à mesma mesa de uma mesma casa, ou seja, tornavam-se uma impossibilidade."


"O rio trazia vida, sempre. A correnteza levava vidas. O rio propiciava riquezas. A correnteza as destruía. O rio era o caminho, a correnteza era a perdição. O rio era abençoado, e a correnteza, proibida. (...) Era assim a correnteza: aqui não existia, ali arrastava com violência. Ao encontrar um obstáculo, ela que até aquele ponto era suave ninho tomava-se então de fúria repentina e rugia, levantando águas, fazendo o contorno em espumas, arrancando, balançando, trincando, arrastando, matando. (...) Gero assim soube que a correnteza era uma entidade cheia de força e vontade. À distância, era lisa e bela; de perto, ao ser tocada com a mão, ou pé, agitava-se lâmina fina e cortante; de dentro dela, sentia-se sua força bruta, arrojada e violenta."


"A impressão de mundo que Gero construía, a partir de sua família, semelhava a um violão e suas cordas. Umas careciam das outras para produzir melodia harmoniosa, mas precisavam estar afinadas, sempre e sempre afinadas. Com uma diferença brutal: aqui, a corda rompida não podia ser substituída. Não se tirava Toninho da gaveta e se ajustava na tarraxa da casa. A corda rompida na família representava um túmulo no cemitério, a lembrar sua falta na canção diária, defeituosa. E nem mesmo isso Toninho deixara. As pontas da corda rompida ficaram penduradas em total desamparo. Tornara-se vazio assombroso, ausência completa."


"Como conseguira escapar da boiada não passava por sua cabeça, era algo remoto, incidente de pouca monta, a não ser por ter se constituído em motivo do encontro com a moça ao saltar para dentro do quintal. Nesse aspecto não se detinha. Remava era das mãos para os seios, dos seios para os cabelos, dos cabelos para a boca, da boca para a escuridão de seus próprios olhos fechados, e dessa escuridão para o sentir repetido do hálito da moça em suas feridas. E remava de volta, a bater cada lembrança com delicadeza na lâmina daquele dia para não respingar para fora da cama, para não ser ouvido sequer pelos fantasmas, muito menos pelos pais no quarto ao lado."


"(...) Zé Dugogue desceu a primeira vez, como dizem os barranqueiros. Subiu, olhos esbugalhados, boca aberta, braço direito alevantado a apontar algum dos seus navios atracado em nuvem. Bateu braços. Desceu a segunda vez, agora em meio ao vozeio decrescente da turba em cima do cais e as providências que alguns assistentes da beirada do rio adotavam. Uma canoa foi empurrada para a água. Três deles remaram na direção de Zé Dugogue, que subira de novo, agora com os dois braços alevantados como se pretendesse alcançar alguma âncora estelar. A canoa aproximava-se dele quando desceu pela terceira vez, a vez última, assim dita e sabida, da qual não se retorna, pois até para se morrer afogado é necessário cumprir regra trídua, uma ao Pai, outra ao Filho e mais uma ao Espírito Santo."



Presentes no romance "Beira de rio, correnteza" (Bom Texto, 2010), de Carlos Barbosa, páginas 45, 21/25, 67, 39-40 e 122-123, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão...

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Seleta: Nirvana

A “ Seleta: Nirvana ” destaca as 80 músicas que mais gosto da banda norte-americana (entre covers e autorais), presentes em 12 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Nevermind ”, “ MTV Unplugged in New York ” e “ In Utero ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 12 álbuns participantes desta Seleta 01) Lake of Fire [MTV Unplugged in New York, 1994] 02) Where Did You Sleep Last Night [MTV Unplugged in New York, 1994] 03) The Man Who Sold the World [MTV Unplugged in New York, 1994] 04) Heart-Shaped Box [In Utero, 1993] 05) Come as You Are [Nevermind, 1991] 06) Smells Like Teen Spirit [Nevermind, 1991] 07) Drain You [Nevermind, 1991] 08) Lithium [Nevermind, 1991] 09) In Bloom [Nevermind, 1991] 10) Plateau [MTV Unplugged in New York, 1994] 11) Oh Me [MTV Unplugged in New York, 1994] 12) Jesus Doesn't Want Me for a Sunbeam [MTV Unplugged in New York, 1994] 13) Something in the Way [Nevermind, 1991] 14) You Know You're Right [Nirvana, 2002] 15) Rape Me ...