Pular para o conteúdo principal

Cinco passagens de Marcus Borgón no livro O pênalti perdido

Marcus Borgón – Foto: Fernando Lopes


"Nome: Beleléu
Posição: Lateral-direito
Altura / Peso: 1,59m / 55kg
Ponto forte: Muito feio, assusta os adversários
Ponto fraco: Sensível, se abala quando é chamado de feio"


"– Qual é o nome dele mesmo, Luizinho?
Luizinho deu uma risada sarcástica. Eu fiquei sem entender.
– Geflalisco.
(...)
Vai saber o que passa na cabeça de um pai na hora de registrar o filho com um nome desses. (...) Luizinho me explicou que o nome dele foi construído para homenagear os avós: Geraldino e Flaviana, por parte de pai; Lindalvo e Francisca, pelo lado materno. É o tipo de nome que deveria vir com uma nota explicativa. O indivíduo que carrega uma homenagem dessas deve ter vontade de amaldiçoar toda a sua árvore genealógica. Luizinho me disse que a vergonha era tanta que ele se recusava a falar o próprio nome. Na casa dele, deram um jeito de abreviar e amenizar o estrago, chamando-o de Lisco. Só que o irmão caçula, quando começou a falar, não conseguindo pronunciar corretamente o apelido, chamava-o de 'Lixo'. Em vez de corrigirem o pirralho, todos passaram a imitá-lo. 'Lixo' foi oficializado. E o pior é que ele preferia ser chamado assim. Julgava menos constrangedor do que aquele ajuntamento de avós em forma de nome / palavrão."


"A minha mudança para o Conjunto Deodoro da Fonseca significou não só uma alteração de endereço e status social, mas, principalmente, uma mudança de comportamento. Tive que aprender a lidar com o contato mais direto, frequente e invasivo dos meus novos vizinhos. No conjunto, como existem apartamentos térreos, as pessoas chegam sem a menor cerimônia na janela alheia. Olham para dentro da casa e se convidam para entrar. Eu não era acostumado a receber amigos em casa. Nem ter meu nome gritado lá de baixo. Quando menos percebi, eu não só tinha absorvido, como reproduzia naturalmente aquele tipo de comportamento. Zeladores, porteiros e interfone são elementos dispensáveis. Só servem como obstáculo nas relações pessoais, concluí."


"No primeiro treino, um menino que eu não conhecia apareceu e se dispôs a ficar como goleiro do time reserva, já que só contávamos com Lixo para a posição. Luizinho brincou, dizendo que eu e esse goleiro reserva tínhamos sido separados no berçário. Então me dei conta que era o tal Calango, de quem tanto falavam. (...) Eu olhei bem para ele, buscando encontrar a propalada semelhança entre nós. Ele tinha uma cabeça desproporcional ao resto do corpo. Olhos esbugalhados, que pareciam prestes a saltar do rosto. O pescoço emergia do meio do peito. O nariz era semelhante ao de um papagaio. E as pernas, absurdamente arqueadas. Naquele instante compreendi que toda comparação é injusta. Uma das partes sempre sairá insultada."


"Apesar de tudo, eu acusava sua ausência. Com ele por perto, me sentia mais protegido. Estranho pensar assim, uma vez que era justamente ele quem mais me amedrontava. Sua impaciência frequentemente se transformava em gritos e agressões."



Presentes na novela "O pênalti perdido" (P55, 2016), de Marcus Borgón, páginas 32, 25-26, 18, 35 e 27, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d