Quarenta e cinco passagens de Emmanuel Mirdad no livro de memórias O enigma de Mutujikaka — A jornada para escrever um romance
“(...) à noite desse domingo literário, não me sinto mais encurralado pela mediocridade do mundo; há beleza na sua feiura. (...) Corto as garras da solidão com a tesoura da arte.”
“O tempo é uma onda que circula em fragmentos. Frase bonita, né? Vou selecionar para o meu blog. Adoro! Eu sou um caça-frase. Um colecionador de passagens que nos impulsionam para além do óbvio. Os trechos que valem o investimento de tempo & dinheiro num livro. As pílulas que injetam aditivo à vida: contra o amortecimento do entretenimento e o pré-fabricado dos sistemas de opressão, há a boa literatura. Confesso: a minha leitura é um ato de peneirar; leio para encontrar os tesouros nas páginas, copiar & compartilhá-los na minha coleção no blog, que celebro como se fosse um tesouro, o acervo que encandeia o ser humano. (...) O hábito de caçar trechos me faz valorizar a frase. Há sempre uma que me arrebenta; e o resto é só cenário, escada ou preparação para que o seu efeito consiga impactar com potência. O enredo pode ser interessante, a linguagem, atraente, os diálogos, engraçados, mas de nada valem ao livro se não houver aquela frase bem-feita, um murro, uma facada, um empurrão no precipício, o ar que o mergulhador compartilha quando o do seu cilindro acaba. Resumo: a frase é o que me interessa na literatura [quando me envolvo com um enredo foda, surpreendente e incomum, transformo logo o sentimento para ‘tenho que adaptar ao cinema’, creditando o audiovisual como mais relevante; já a frase fodástica, é o êxito das letras]. (...) Quando estou a criar, e uma daquelas surge na forja: ô, sorte! Ê, felicidade! Ahhh, garoto... Xodós da vida.”
“A jornada para escrever um romance brota bem antes, duma ideia sem dono, inspiração ou plágio, talvez garimpada do além, por falta de provas na matéria — donde veio esse troço? Pode ser que uma pessoa aponte a assinatura dessa criação, a bradar o roubo, pois há sempre alguém a se esforçar pelo conflito, mas já me declaro inocente em qualquer tribunal: não há autoria em ideias, somente em produtos. A imaginação é da humanidade, consciente e inconsciente coletivo, cooperação da espécie.”
“Todo mundo é artista [quer ser ou se acha], quase ninguém é plateia. Todo mundo é um canal, não importa mais a mídia [não há mais filtro, tudo é adjetivo, elogio ou ofensa]. Todo mundo impõe a sua opinião, que se danem os especialistas [o arroto do “eu-eu-eu”]. Tudo é possível, viva a internet, que abriu as caixas de pandora no globo. Há muito o que ser consumido, e pouco tempo disponível. Como convencer o outro de que o seu produto vale o investimento? Nós, escritores, queremos ser lidos, que os livros sejam comprados, é preciso conquistar leitores que permaneçam. Como? (...) Gasto ‘oroboro baobá’ num ano de pandemia, sem o mínimo do mínimo de um lançamento presencial, custeado do bolso, tiragem minúscula, ausente das livrarias, sem nenhum recurso empregado na divulgação e promoção nas redes. Vixe! É outra gaveta, é claro: a sepultura. (...) E eu não ajudo com a parte ‘política’: não polemizo canalhices, não entro em conflito nos comentários, não pratico o discurso de extrema-direita que a esquerda festiva divulga de graça como se fosse espanto ou protesto [mas é estratégia para ser visto e receber interações: olha só, esse machista desgraçado (e exibe todo o conteúdo, valorizando o autor), que absurdo — e o gado de cá rende e compartilha esse assunto só para receber atenção também], não menciono os inimigos, não faço violências contra as maiorias [mulheres, negros, indígenas e LGBTQIA+] na internet ou na vida analógica, não sou lambe-botas de milicianos genocidas, nem de messias brancos que se colocam como porta-vozes da maioria só para manter o seu projeto pessoal de poder. Político, para mim, é funcionário. E me cansa reiterar o óbvio. Ou seja, eu sou um tédio, e tédio não vende.”
“Relembro o padre poeta Daniel, pernambucano de Timbaúba: ‘Nada aprendi na vida senão esta lição: que sou provisório e de passagem’. Bonito, faz efeito. Somos provisórios, é o óbvio. E, ao estarmos de passagem, o banco é o do passageiro. (...) O livre-arbítrio é uma ficção.”
“Terça, 04 de outubro, apê 703-B, concluo o capítulo-xodó, que vinha planejando & escrevendo desde o final de setembro, batizado de ‘O ritual em Madagascar’, um dos trechos mais longos de ‘oroboro baobá’ [assim como ‘O baba na aldeia’ e ‘A saga dos ancestrais de Bartira’], que me orgulho muito de ter feito.
É controverso, pois expõe o ser humano como uma vítima do divino [os gregos há tempos registraram essa violência] e traz a essência da reflexão proposta pelo romance: que somos todos usados como fantoches pelas ‘divindades’ [livre-arbítrio é uma farsa anestesiante], sem nenhum direito a acessar a verdade [inventando as nossas ‘verdades’ como muletas para os buracos e abismos interiores], expostos às mais diversas injustiças e violências, forçados a seguir como zumbis-formigas, drogados por um ego que ilude e mantém a Matrix. E eu ainda escrevo o superxodó da reflexão de Mensawaggo, que resume a proposta:
‘(...) perante os desígnios da verdade inacessível, não há nada manifesto, material e incorpóreo, que não seja uma marionete; até a própria divindade Mutujikaka, a guardiã, membro do panteão, tem que obedecer às fórmulas do que não se identifica, traduz, nomeia. Mensawaggo reflete: a fecundação, gestação, o parto e extravio dos recém-nascidos, à revelia dos desejos e opiniões da jovem malgaxe, enfeitiçada, violada, apartada dos filhos e destituída das memórias do processo — considerado inaceitável e passível de punição, do ponto de vista dos valores morais e das leis dos seres humanos —, têm uma função, irremediável, incompreensível e desgraçadamente necessária’.
Socorro!”
“‘Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite’, e eu na literatura, Lulu: começo a escrever o último capítulo [da 1ª parte] de ‘Muralha — O goleiro que nunca tomou gol’. Em dois parágrafos, faço reflexões sobre o protagonista num trecho ‘ensaísta’, ambientado na voz do narrador, e incluo o xodó ‘Eu sou o que eu faço’, a premissa que guia a construção do personagem desde o começo para mim. É como me incluo no protagonista: eu sou o que eu faço. Se perder o fazer, eu não existo. Descaradamente me boto no livro. Quem nunca?”
“(...) Materializar a ideia: um goleiro que não toma gol. Pode? (...) Oxe! Não só pode, como deve. O professor Compagnon provoca: ‘La littérature, pour quoi faire?’. Praquê literatura, dizaê... No caso da ideia que me sacode, uma ideia de doido, literatura para fazer existir a impossibilidade de um fenômeno. Se a realidade supera a ficção nas mais bizarras maluquices e violências cotidianas, saravá o nosso Brasil surreal, muitas vezes ela não supre a necessidade do ir-além. Então, devo criar o goleiro que não toma gol. ‘Essa ideia é boa!’, me apego. Pois bem, dona literatorta, esse é o meu projeto, tome intento: há um goleiro negro que não toma gol nem no treino. #receba mundo!”
“(...) gravo, no jardim da Pousada Convento do Carmo, um depoimento em vídeo para o projeto ‘Memórias de Leitura’, da Fundação Pedro Calmon. Eternizo: ‘Sou escritor e me considero principalmente um leitor. E eu fico tão contente quando encontro outros leitores, porque é explorar o universo, é encostar nas estrelas, é visitar as árvores mais belas do mundo, mergulhar nos rios, no fundo dos oceanos, ir em galáxias distantes e ir na profundidade de cada ser humano existente, sentir a empatia por pessoas tão diferentes de mim, que ao mesmo tempo são tão próximas, já que estamos todos conectados. Então a leitura é a celebração da civilização para mim, o momento em que você compreende o ser humano e se recheia de dúvidas e questões que refletem na própria vida.’ (...) Duvido, logo existo.”
“Sou bisneto de Miguel, um coronel de cacau, o chefe da família Alves Dias, mais conhecido como ‘Miguel do Ouro’, bisavô por parte de mãe [o seu sobrenome não sobreviveu até mim]. Das histórias que guardo dele, de fontes diversas dos parentes: mascate de ouro, rouba o burro da família e se faz fazendeiro de cacau em Ilhéus; descendente de negros e mestiços, implacável coronel de muitos jagunços, sofre preconceito na ‘alta’ sociedade por ser o rico de pele mais escura. Do seu imenso patrimônio, torrado por vários herdeiros [um deles, playboy por toda a vida, preferido por ser o único filho com pele clara (o ‘loiro’), queimava dólares para acender charutos & bebia uísque no lugar de água], ainda resta, para nós, o apê 703-B e um imóvel rural, por enquanto. O edifício da rua Flórida, nº 264, leva o nome do coronel Miguel, pois aí ficava o seu casarão da Graça, em Salvador, antes de ser vendido & demolido.
Estou no apê 703-B e observo o seu espaço; onde moro, descanso, trabalho, me divirto, transo, leio, alimento o espírito e a carne, é posse da família somente pelo privilégio da herança do coronel [óbvio que a manutenção do apê, não, mas a compra & escritura, sim]. O restinho da sua fortuna, que escorreu até chegar a nós, a permitir que eu tenha facilidade para escrever os meus livros, sem ter de me preocupar com o aluguel ou ser despejado. É sábado, 21 de março, e eu decido reciclar algumas das histórias de Miguel [vagão de trem só para a sua família, filhas banhadas em bacia de ouro, consulta no Rio de Janeiro] no passado do novo Marceleza, que passa a ser descendente de um coronel inventado, sem nome [o que interessa é o sobrenome que funda a instituição da sua família], em que carrego na tinta da violência e exploração: uma representação da tradicional riqueza de tantas famílias brasileiras, de origem escusa e exploratória que, ao longo das gerações, vai se ‘purificando’, casando com outras famílias ricas [faço a conexão Bahia-Minas nessa parte também], a preservar e a ampliar o patrimônio. Escrevo todas essas novidades no romance e me satisfaço [é um dos xodós prediletos de ‘oroboro baobá’; sinto-me realizado em criar um exemplo da herança maldita da maioria dos brasileiros ricos (e falidos também)].”
A versão digital e a impressa
Putz! O eu-Poliana assume, e passo a acreditar que em Portugal terei uma boa carreira, serei reconhecido e valorizado, e encontrarei profissionais à altura da maneira como trabalho. O melhor: sem nenhuma base para isso. Não faço a menor ideia de como é o mercado por lá, se há leitores, consumidores para a minha obra, patrocinadores para os meus projetos. Entretanto, como a ‘terra prometida’ do prêmio LeYa é dourada e impecável [se Itamar ganhou, eu também posso], entupo-me do ópio da projeção e fujo do cotidiano das trevas brasileiras, repletas de ignorância, fake news, violência e camisas amarelas da sigla a berrar pelo fim da democracia.”
“Ruy profetiza: ‘Com o tempo, só os mortos sobrevivem’. Olho para os mortos da minha estante. Deduzo: escrevo para permanecer. E ao ler, permaneço o outro.”
“Lembro do pernambucano Cristiano, que se definiu numa orelha: ‘é leitor’ — ele não listou os livros publicados, nem prêmios e/ou títulos, o marketing de sempre. Um escritor que se resume como leitor. E basta. Arretado! Ele tem razão. É muito melhor ler do que escrever. E você só pode ser um escritor se for um leitor. Ler, ler, ler. Muitas & variadas leituras. É a dica que sempre repito quando me perguntam como publicar um livro: leia.
A seção ‘Leituras’ é a principal do meu blog, a que eu mais me empenho em produzir conteúdo, o precioso acervo da literatura que consumo. Enquanto uns ostentam viagens, festas, roupas, filhos, eu me orgulho de exibir o êxito dos escritores: seleciono e copio os melhores trechos das leituras que faço, publico no blog & divulgo nas redes, tanto para promover o interesse pelo autor, obra e pelo hábito da leitura, quanto para divulgar autores não tão conhecidos e promover a venda de exemplares das obras divulgadas. O principal intento é espalhar doses homeopáticas de literatura por aí. (...) A jornada para escrever um romance só é possível com a leitura. A cada livro, muitos passos, à frente ou recuo, para nunca estagnar.”
“(...) Durante a jornada para escrever o meu 1º romance, a celebrar a sorte de estar vivo e trabalhando, eu leio livros, ouço músicas e assisto a filmes. É a fonte das mil inspirações, tríade que me sustenta como artista. Eu danço, medito, escrevo e sobrevivo ouvindo reggae. E o que há de negritude em ‘oroboro baobá’ é originário do que aprendi com Bob Marley & The Wailers. No Brasil, se não fosse a Legião Urbana, eu não teria aprendido a tocar violão e não seria compositor; é o que de fato me fez querer ser artista. Reconheço: se eu não fosse legionário, não teria escrito os meus livros. Não existiria ‘oroboro baobá’ sem Renato. E ser roqueiro me faz celebrar o produto mais incrível criado & realizado pelo ser humano: a música. Coleciono álbuns, canções, artistas e bandas. Amo divulgar a música nas redes, promovê-la para o mundo. Ser roqueiro me faz consumir as artes e me gabarita como escritor profissional. (...) Literatura, música e cinema. (...) É o que me faz escrever ‘oroboro baobá’.”
“Catorze de janeiro. Um ano atrás, na madrugada de uma festa, o oroboro se anuncia ao romance: a cobra que engole o próprio rabo vai para a capa. Giramundo, giramundo, catorze de janeiro, de novo. Um ano depois, descarto as opções pesquisadas e, às 15h40, defino que o oroboro vai para o título. Mas não a sua representação comum, com animais [cobra ou dragão], e sim um oroboro vegetal. Uau! Yeba! (...) Uma interpretação nova para o símbolo milenar. Uma árvore no lugar da cobra. As raízes encontrando os ramos, ao invés da boca mordendo a cauda. A conexão evoca mais o encanto do que a autofagia. Os tempos se entrelaçam e não se devoram. E a Renala se anuncia: o baobá é a árvore milenar, icônica como um símbolo. Firmo, com o gosto, na 16ª tentativa, o título definitivo para o romance: ‘oroboro baobá’ [fruto do capricorniano 14 de janeiro]. Com caixa baixa, todo em minúscula, para ter o efeito ‘palíndromo’ mais exposto, pois tudo o que forma o círculo é da mesma hierarquia, nem maior, nem menor, sem o grito da caixa alta, sem a formalidade da gramática, na paz & fluidez das minúsculas.”
“Ano novo na área, com ‘sangue no olho’, eu e Marcus corremos atrás de viabilizar vários projetos. Ao fazer o nosso brainstorm, Marcus se interessa pela realização de uma festa literária na sua cidade natal. Porém, por trabalhar só com música, não temos aptidão alguma com o universo literário [eu ainda não era um escritor profissional]. Resolutivo, sugiro convidar alguém do meio para ser sócio na festa. O engano: não precisava oferecer participação; apenas consultoria ou curadoria bastaria, contratando ou no esquema parceria para receber quando o evento acontecesse. Putz! Inexperiência, às vezes, pode comprometer uma vida [cuidado!]. Marcus topa, e eu convido um escritor, então presidente da Câmara Baiana do Livro [achávamos que esse cargo seria útil para abrir portas no meio]. Vou além na ingenuidade: por achar ser ético convidar para realizar o projeto a pessoa que teve a ideia ‘fazer uma festa literária em Cachoeira’, proponho sociedade também a Lobão. Marcus concorda. Fomos pixotes: não há autoria em ideias, somente em produtos. A ideia é do mundo [muitas vezes, ouvi de outros escritores e realizadores que também pensaram em fazer uma festa literária na Bahia, e em Cachoeira; perdi as contas — sempre com aquela pontada de inveja ‘por que não fiz antes?’], a execução é que depende do know-how, da assinatura, do estilo, da expertise que é possível ser valorizada, a consolidação como marca, a posse do objeto: há propriedade em projetos/produtos, não em ideias.”
“Estou em Salvador, é verão de 2022 na Bahia, a pandemia do SARS-CoV2 cancela mais um Carnaval na sequência [inimaginável pensar que, no Brasil, haveria uma época em que a maior festa do planeta não fosse realizada] e, no apê 703-B, escrevo estas memórias, auxiliado por um ventilador, ligado no máximo, colado em mim. É quente com céu azul. É quente com o cacau caindo. E é quente reler esses trechos do mestre Nelson. Reflito: como é necessário reler os livros que nos encantam! Tenho colegas que já me alertaram: a releitura é mais importante que a leitura. Acho que eles têm razão. Viro a cadeira e observo os meus. Tenho muito mais vontade de retornar à casa do que adquirir novos exemplares. Por que diabos alguém vai comprar um livro meu? A contemporaneidade é sempre pior. O mestre Setaro sentencia: ‘Não se deve fazer mais nada e se rever o que já foi feito’”.
“(...) colho as gentilezas das pessoas que acessam ‘oroboro baobá’, no feed ou nos Stories. Ahhh, como é bom esse flagra... A gente escreve sozinho e bota no mundo sem saber o rumo. Será que vão ler? Será que vão gostar? Será que... [e mil versões]. Daí, a gentileza de estar na cabeceira, de ser lido, abrevia os medos. Mas a gente [o autor e o editor] quer mais: e aí, o que acharam? Aí, bênção, é demais... Tá pronto pra ouvir ‘achei uma merda’? (...) eu não escrevi ‘oroboro baobá’ pensando no público. Aliás, qual é o público? Não me interessa enquadrá-lo. Escrevi o meu 1º romance tentando realizar a obra artística de uma maneira satisfatória, em respeito à sua história, de acordo com o que aprendi com a literatura, nos livros que li, nos papos, dicas e orientações que ganhei de presente de outros escritores, na convivência com os colegas e professores da palavra durante a Flica e na rotina da vida [e também com os artistas de outras áreas], no consumo de música e audiovisual, na herança e ensinamentos da minha família, amadas & amigos. (...) Agora, não sou hipócrita ou bobo, e o público que me interessa são os leitores que expressam as suas opiniões. Preciso saber: o que acharam de ‘oroboro baobá’? Romance pronto, que se dane a solidão. Comunidade, diz aí. Tô pedindo demais, e daí? É muito silêncio, pessoas... O livro é lançado e logo morre. E eu tô prontaço pra ouvir ‘achei uma merda’ e similares. Unanimidade é a glória da opressão, e eu só quero contar com a liberdade. Podem detestar à vontade. E, se a sorte permitir que vocês realmente gostem do livro, compartilhem & indiquem, por favor, pois é o combustível para que eu escreva a próxima obra. (...) A repercussão de um livro garante o próximo.”
“(...) o meu livro ‘O grito do mar na noite’ é publicado pela baiana Via Litterarum. Trabalho como assessor de imprensa do lançamento (...) e o resultado é excelente [muito pelo mérito de ser então sócio & coordenador geral da Flica]: uma página inteira do jornal Correio, matéria no A Tarde, G1, TVE Revista, Soterópolis, Educadora FM... Massa! O lança vai bombar! Quiii.... Apenas uma pessoa vai ao evento por conta da divulgação; só ela é desconhecida [uma gaúcha], todos os demais são escritores, amigos, família, namorica, sogrica... Onde estão os leitores?”
“É impossível tapar as lacunas. Não tem como ler tudo o que é preciso. É muito conteúdo, clássicos e contemporâneos, nacionais e estrangeiros, e ainda há os amigos, com livros bons e ruins. Não sou de lamentar a falta de tempo; prefiro celebrar as surpresas. Tudo no seu tempo, não dizem assim?”
“(...) estou lendo o romance ‘O conto da aia’, da maga canadense Margaret, que influencia a jornada oroboro, donde peneiro essa frase BRUTAL, a que melhor define o quanto que os homens são seres desprezíveis e descartáveis [estou incluso também], na tradução da Anadeiró: ‘Um homem é apenas a estratégia de uma mulher para fazer outras mulheres.’ (...) ‘O conto da aia” torna Margaret famosa no mundo, muito por causa do sucesso da série adaptada do romance [opa, também quero!]. É outro exemplo necessário, brado de alerta: precisamos ficar vigilantes para não permitir que o totalitarismo subjugue a civilização [Caêtemos todos: ‘É preciso estar atento e forte!’]. Nunca apoie quem louva torturadores e militares, pega em armas e não em livros, acredita no uso da força mais do que nas leis, pratica crimes em nome de Deus ou do partido. O próximo, no pau-de-arara, pode ser você. E a sua família, também.”
“‘Nos perderemos entre monstros da nossa própria criação’, já bem-disse o Renato no pipôco da Legião. De volta a Salvador, estou em 25 de julho, cuja importância maior é o nascimento do escritor e professor Mayrant. Merece uma digressão, tome-lhe aba: ao ler ‘Pés quentes nas noites frias’, durante o 1º semestre na Facom-Ufba, penso: ‘quero escrever assim’. Só virei contista por causa do impacto dessa leitura. Só fui contista por causa de Mayrant; querendo impressioná-lo, imitá-lo, superá-lo. Graças às leituras e releituras da obra do professor, e dos muitos livros indicados por ele, como os mestres Tchekhov e Buzzati, que pude escrever ‘Olhos abertos no escuro’ [e todos os demais livros que escrevi e escreverei], dedicado a Mayrant, com 30 epígrafes dele abrindo cada um dos meus contos. ‘A nudez esclarece as pessoas’, a melhor delas. O título ‘Olhos abertos no escuro’ foi extraído do conto ‘Gravidade’, do melhor livro de Mayrant: ‘O inédito de Kafka’ [que é uma refazenda de ‘Pés quentes nas noites frias’; bom demais rever & reescrever, não é?]. Peneiro: ‘sempre tem alguém que faz antes de nós o que pensamos fazer’. Bravo, professor, mas você, fã de futebol, criador de personagens e tramas com o esporte, autor de ‘O gol esquecido’ [‘Assombrava-me a afirmação de que o que acontece já aconteceu. De que o presente foi, o futuro é, e o passado será. De que o que se diz já foi dito’], não criou o goleiro que não toma gol. Eu fiz antes, hehe.”
“O octogenário escritor e jornalista Hélio participa da estreia da Flica em 2011, numa mesa com Mexia, poeta e crítico português. Em Cachoeira, somos apresentados, e o gentil senhor me dá o recém-lançado ‘Melhores contos’, com seleção do crítico Seffrin. Acho bonita a capa em tons de rosa, afirmo que vou ler com gosto e agradeço o presente [na dedicatória, Hélio oferta ‘a Mirdad, grande coordenador da I FLICA de Cachoeira’], envergonhado por nunca ter lido uma linha sequer do convidado da festa — passei por isso muitas vezes; a sorte: nunca fui constrangido pelos autores, que sempre souberam que não se deve perguntar ‘já leu?’ a ninguém, ainda mais se referindo à própria obra.
(...)
‘Melhores contos’ me presenteia com mais: do também cinematográfico ‘Mar de Azov’, peneiro uma frase para ser o meu lema: ‘Ser homem é assumir a realidade’. Yeba! Que frase! Boto na capa do meu Facebook, saio por aí, repetindo a rodo. ‘Ser homem é assumir a realidade’ me impacta até hoje. Uso a frase como epígrafe nos meus livros ‘O grito do mar na noite’ e ‘O limbo dos clichês imperdoáveis’. E ela continuará ressoando pelo resto do que me resta de vida.
É o verbo mais corajoso que existe: assumir. ‘Assuma a sua porra, rapaz’ é algo que sempre cobro. Eu assumo o que faço, assumo a realidade e faço. Sem historinha. Sem enrolação. Sem mentira. Assumir não como excepcional. Assumir como óbvio. Assumir é civilização. Civilizar o ser humano é assumir a realidade. Hélio sintetizou o que o meu pai me ensinou. E é o que tento ensinar por aí. Assuma a sua porra!
Eu assumo: não sei escrever um romance!”
“‘Mayombe’ é o romance mais importante a influenciar a jornada oroboro. Sou fã do protagonista: o comandante Sem Medo. É um daqueles nomes perfeitos que alguém eterniza [como eu queria ter um personagem chamado Sem Medo, mas Pepetela gastou essa ficha]. É um grande líder, firme, corajoso, companheiro e irônico, mordaz em críticas ao partido que segue, expondo o que interessa: a coerência (...) E ele ainda transa com a mulher do amigo e tenta convencê-la a voltar para a relação [já vivi algo parecido, só que o corno não era um conhecido; na cama de um motel, entre transas & gozos, suados e a recuperar o fôlego, nus & agarrados, advoguei pelo rapaz e aconselhei para que ela insistisse na relação, porque o amava] (...) A 3ª edição da Flica fervilha de gente pelas ruas. Numa mesa da Pousada Convento do Carmo, centro de Cachoeira, comecinho da noite, tenho um momento de fã a sós com o mestre, que autografa quatro romances seus para mim. Não seguro a tietagem: elogio ‘Mayombe’ e tento saber quem é a pessoa que inspirou a criação do protagonista. Pepetela me revela: Sem Medo é a reunião dos melhores homens que ele conheceu na guerra [o escritor & professor pegou em armas e lutou com o MPLA pela independência de Angola]. Sou fascinado por ‘Mayombe’; é um dos livros que quero adaptar ao cinema, pois renderá um filmaço. O romance trata de um grupo de guerrilheiros em prol da libertação, mas também apresenta um triângulo amoroso & delicioso.”
“Uau! Bravo! Não é a coisa em si que eu amo, e sim a sugestão de infinito. Que sacada! E, assim como ‘Ser homem é assumir a realidade’ de Hélio e ‘Nunca amar o que não vibra, nunca crer no que não canta’ de Orides, ‘Não é o mar que amo, é o infinito que ele sugere’ de Daniel é um lema para a vida, que poderia ser tatuado na minha pele.”
“Dos livros lidos durante o processo de escrita de ‘oroboro baobá’ entre 2012 e 2020, o que eu considero como o mais importante para a minha formação como leitor e escritor e a influenciar a jornada oroboro é “Todas as crônicas”, da mestra Clarice (...) A pernambucarioca nascida Хая de passagem pela Ucrânia não é uma entidade filosófica como Mensawaggo, mas tem as suas reflexões sobre o mistério: ‘A verdade do mundo é impalpável’. (...) Fizeram de Clarice um meme. Quase compro a camisa com a sua imagem e um ‘Foda-se’ assinado ‘por ela’. Inventaram tanta merda e botaram na conta da lindeza. Ô, mulher bonita! Até quando feia, era bonita. Volto: dos que circulam nas redes, um que leio em ‘A descoberta do mundo’ é o predileto [adoro encontrar os memes nas leituras; é o único modo de validá-los]: ‘Sou tão misteriosa que não me entendo’. Sim, sim, ela escreveu isso numa crônica. Ponho-me no lugar dos leitores do Jornal do Brasil lá no final dos anos 1960. Imagine acordar num sábado e acompanhar os textos de Clarice, semana a semana? Ô, inveja. Deve ser a mesma alegria de acompanhar as postagens da aeronauta Ângela nas redes. (...) É, baby, a centenária é um feito único na literatura brasileira. ‘Agora eu conheço esse grande susto de estar viva, tendo como único amparo exatamente o desamparo de estar viva’, ela escancara a todos nós. Sagitariana de 1920, mãe de dois filhos, esposa e ex de um diplomata sortudo, sussurra nos meus ouvidos: ‘é difícil apurar a pureza: às vezes no amor ilícito está toda a pureza do corpo e alma, não abençoado por um padre, mas abençoado pelo próprio amor’. Criada até a adolescência como uma nordestina do litoral, traz o Oceano Atlântico em muitos dos seus textos, romances, contos ou crônicas, marcada pela maresia”
“2018. Entre janeiro e março, divulgo dez posts com os 394 versos que considero os melhores do ‘Umbigo’, que influencia a jornada oroboro, um poema-odisseia de 84 páginas [com mais de 2 mil versos] criado por Nicolas, uma figuraça do cerrado brasileiro. Que disposição, que criatividade, que porrada! Foi livro de cabeceira por semanas, li aos poucos, devagar, para não acabar. Versos psicodélicos, sociais, filosóficos, sarristas, surreais, ecológicos, ácidos, literários, hilários e porradas punks, ouro puro. (...) Onze da manhã. Abro o original do romance e reviso os trechos das entidades em diversos capítulos. Estranhamente, sinto o cheiro do mar nos meus ouvidos; é o ‘Umbigo’ que singra no hemisfério esquerdo do cérebro: ‘minha poesia é a brisa do mar invadindo juazeiro do norte (...) minha poesia é a umidade da Amazônia que você sente no interior da paraíba (...) minha poesia é como uma árvore florida por onde você sempre passa e nunca a vê’. (...) À noite, enquanto leio o jornal Rascunho, penso na inutilidade do que faço ante as desgraças do mundo [‘minha poesia só cria porque tem alguém trabalhando e preparando o almoço’]. O poeta Nicolas acende uma vela no cerrado, e a luz vagalumeia pela Bahia: ‘minha poesia pode ser uma porcaria, mas nunca elogiou josef stalin como fez pablo neruda nem elogiou adolf hitler como fez ezra pound (...) minha poesia é a pedra no estilingue do menino palestino morto com um tiro na cabeça (...) minha poesia é um índio que vai dormir no ponto de ônibus mas leva extintor de incêndio’. (...) vou inscrever o romance no Prêmio Sesc de Literatura 2018; mais uma vez, cumprirei a meta. ‘E daí?’, parece que Nicolas fez um estrago na minha autoestima. Este verso é mortal: ‘minha poesia nada significa para quem tem fome’. E no Brasil há fome demais, filme de terror. (...) Preciso musicar ‘Umbigo’. Reunir os versos prediletos e compor uma canção punk sem refrão [‘minha poesia respeita os mortos/ quanto mais mortos melhor’] e a duração de um rock progressivo, que flerte com o forró e o reggae, atazane o juízo, para tocar numa rave em Pratigi, paralelo à praia, dentro do mar, sem roupa, a triscar no universo”.
“De volta à infância. Pela manhã, aulas no primário da Escola Castro Alves, na orla central de Ilhéus. À tarde, no Jardim Savoia, sozinho no meu quarto, pós-lição, a brincadeira da vez: escrever partidas imaginárias de futebol num caderno, com escalação e placar, inventando nomes, tabelas, troféus. Páginas e páginas. Conquisto um prêmio: o dedo do ‘foda-se’ torto e encalombado, até morrer. (...) No videogame, costumo jogar cartuchos de futebol, do Atari ao Playstation — não tive esse console, só a locadora Italic Vídeo para me suprir, pagou-jogou num comercial do meu bairro em Salvador, e eu, adolescente, gasto um tempo danado só para elaborar cada jogador do time, caraterísticas físicas, nomes, habilidades, etc. Ahhh, habito esse movimento, o doido, de criar para ir além do óbvio, reformatar o formato, a cabeça para fora do lodo, imprimir uma marca nas marcas da sociedade.”
“O mundo presencia o fim formal do Império Britânico, com a devolução de Hong Kong para a China. É julho, e a sexta 18 se apresenta em Salvador, também. Ao folhear as páginas da revistinha ‘Sucessos’, com cifras de músicas para tocar ao violão, o título ‘Juventude à Vácuo’ me fisga. Mais ainda: a banda é Não Religião. Foda! Num esquema ‘do it yourself’ [‘faça você mesmo’, a filosofia oitentista do DIY punk], meto a mão e saio tocando os acordes e cantando a letra do jeito que me dá na telha, pois não conheço a banda, nunca escutei a música e vai demorar para ter internet em casa. Deixo o violão na cama, pego o caderno que uso no Colégio PhD e escrevo ‘Vastidão’, um poema lisérgico, meio nonsense, sobre um cirurgião, com poderes espirituais, invocado a resolver problemas no corpo de um paciente — penso em prestar vestibular para Psicologia no ano que vem. Logo bate uma vontade de cantar o troço. Violão em punho, e eu não sei como criar a harmonia. Travo. O jeito é plagiar: copio os acordes de ‘Juventude à Vácuo’. Porém, ao invés de espancar as cordas como um punk faria, boto para soar um basicão de pop rock, ritmado, e canto por cima o poema ‘Vastidão’.
A menos de três meses dos dezessete, 1997, nasce a minha 1ª composição. Fico alucinado na última nota, adolescente que não se cabe; finalmente descubro uma coisa para preencher o vazio, que cobre de ilusões o buraco da existência. Aleluia! Existe algo em que eu possa acreditar, que dá sentido às cores da vida e evita o suicídio. Nunca mais tocar violão à revelia. Eis a meta: compor as minhas músicas, materializar e exorcizar as minhas angústias. Não é que o cirurgião invocado traz a vastidão de sentidos para me firmar vivo?”
“(...) mergulho na galáxia de dentro. Que vício! Uma descoberta para toda a vida, que coincide com o despertar do romancêro; na mesma época, entusiasmo total pela sonoridade dos islandeses & pelo trabalho de escritor. Sigur Rós, no embalo da sincronia, torna-se a trilha para escrever o livro ‘oroboro baobá’; sem o som élfico, não teria escrito uma linha sequer do meu 1º romance. Junto com Bob Marley & The Wailers, Legião Urbana, Pink Floyd e Radiohead, forma o panteão sagrado do que há de mais importante na música para mim. (...) Sigur Rós me serve de porta para o gênero ‘post-rock’ [e o ‘ambient’ também], que desconhecia até então. Fã das habitações psicodélicas erguidas pelo Pink Floyd, é outra gratíssima descoberta, pois o post-rock é o que há de melhor para criar a ambiência de claustro que o ato de escrever literatura exige. A partir da Sigur Rós, me jogo numa obsessão de cinco anos pesquisando e divulgando 600 bandas do gênero na série ‘Música para Escrever’, publicada no meu blog, donde me torno fã da japonesa MONO, da neozelandesa Jakob e da norte-americana Hammock [que também são trilhas dessa jornada, temperos no caldeirão de ‘oroboro baobá’].”
A biografia do romance e o romance
“(...) a fotógrafa e designer Sarah oferece o seu presente ao romance: ela aceita lê-lo no meu celular, a cada capítulo que produzo. (...) É um processo muito importante para mim, porque, além de ouvir as suas impressões e críticas [aprendi muito sobre o feminismo com Sarah, o que me influenciou no desenvolvimento de personagens e nas escolhas do enredo], eu posso ler o original em outro dispositivo e detectar erros e problemas, praticamente uma revisão editorial. Trabalhar de dia, levar a produção para a leitura com Sarah à noite, anotar as mudanças e, no dia seguinte, efetuá-las no original. Um método que se repetirá até novembro, gravado na memória como um dos momentos mais especiais da jornada oroboro.”
“Quinta, 29 de setembro, entardecer no apê 703-B. Depois de rever os trechos da Mopmadogara, crio o nome para a personagem que é a divindade: Mutujikaka, a guardiã [até então presente no romance como uma manifestação de Oxumaré]. Considero o fonema /K/ o mais poderoso da fala humana. Acredito que muito da popularidade da festa literária em Cachoeira vem da força da sua marca: Flica, o fli enlevado pelo fonema /K/. Então, decido que o nome da divindade vai terminar com dois ka-ka, dando um balanço como se fosse um repique. E é o ritmo que me faz escolher o ‘mutu’ para abrir, o ‘ji’ como ponte, e o ‘kaka’ para encerrar: ‘mu-tu’ traz o interior, o chão, dois toques no surdo; ‘ji’ é a boca a preparar a abertura, o canal que transporta o ar à saída, um toque no aro do surdo; ‘ka-ka’ é a expiração, a afirmação que se prolonga na atmosfera, dois toques no repique.
(...)
Sinto prazer em escrever sobre a guardiã Mutujikaka: aparece inserida nas águas, emoldurada pelo arco-íris, olhos com pupilas ovais de preto-intenso mergulhadas em vermelho-sangue (...), veste apenas um saião verde bordado com símbolos desconhecidos da humanidade, não mostra os pés, nem abre a boca, e a pele emana vibrações, traçada de linhas semelhantes a cursos de rios. Inspirado, mando ver nesse xodó: ‘(...) pressente a presença da divindade Mutujikaka, a guardiã, que habita o espaço entre as palavras, a distorcer o tempo e moldar as dimensões, resguardando a integridade das linhas do destino equacionadas pelo mistério’. (...) É preciso permanecer como enigma.”
“(...) quem será Montanha então? Lembro do incômodo de Elieser em 2015. Um goleiro que pega tudo não pode ser humano. Ehhh... isso aê, meu amigo, você está certo! Montanha não é humano. Montanha é Deus! Na real, melhor ainda: Montanha é Deusa! (...) Yeba! Transformo o goleiro na Mutujikaka em 02 de julho. É tudo fantástico, sobrenatural, pantera do realismo mágico. Então, revejo todas as passagens de Montanha, para buscar coerência na mudança para a divindade guardiã. (...) Uma deusa em campo. E ninguém pode tocá-la.”
“Domingo, 09 de setembro, a ficha finalmente cai. A divindade Mutujikaka não é a personagem principal. Assim como Miwa não era, nem Muralha. Não há personagem principal. Todos os personagens são marionetes, ou seja, todos são coadjuvantes. Assim como na vida, não há protagonismo. Tudo obedece à verdade inacessível. Bingo! É isso! Yeba! A premissa ‘filosófica’ se impõe. Então, nesse 9+9=18, modifico o título para ‘Tudo o que nos forma é hoje’ [a 15ª versão], pois ‘a sina’ que é o principal na obra [o movimento, o destino, o código da Matrix, etc.].”
“Em junho, decidi vincular Bartira e Benivalda à Dona Tonica: elas teriam um mesmo ancestral, que foi escravizado e transportado da África ao Brasil. Hoje, 03 de agosto, começo a criá-lo [intuo que ele deva vir do Congo]. No apê 703-B, pesquiso sobre o Reino do Kongo, a escravidão em Minas Gerais e nomes africanos. Batizo o ancestral: Mbamba. Construo a sua personalidade, a família, o trabalho como mineiro; pesquiso também sobre o tráfico de escravos, as rotas e portos. Escrevo o capítulo sobre a escravização de Mbamba, a destruição do seu lar, morte de familiares e amigos, e o bizarro transporte até Luanda. É cruel, gera raiva e tristeza, um retrato da macabra história que tanto vitimou e machucou. Considero o trecho com qualidade literária e o que mais me emociona é: ‘No jantar, força-se a engolir o alimento que o manterá de pé, a resistir às lágrimas que escorrem e se misturam ao conteúdo da tigela de barro, e tenta honrá-lo; é preciso caminhar quando amanhecer, e será por elas, as suas amadas, das quais provavelmente nunca mais saberá qualquer notícia’. (...) A imaginação inaugura para o romance os descendentes de Mbamba, ancestrais de Dona Tonica, Benivalda & Bartira, e crio a ideia dos dois ramos, o que tem sucesso e o que passa dificuldades, na quinta 04. E só. Mbamba, que é bom, nenhuma linha a mais; o começo do capítulo é uma pancada e me exige uma pausa. Escravizar seres humanos é muito, muito bizarro.”
“As memórias vibram de novo: entre 2009 e 2010, trabalhei como produtor da Educadora FM, uma época muito rica de aprendizado musical. Vários feras na rádio, e eu parecia uma esponja, absorvendo o máximo que podia. Beto, um dos colegas da minha sala, guitarrista e criador do BaianaSystem, produzia um programa muito especial, chamado Rádio África [desde 2007, voltado exclusivamente para a produção musical africana], que me deu acesso a artistas africanos que me tornei fã, como os malineses Salif e Habib, entre outros. Graças ao trabalho de Beto, Magano e Sankofa, muita gente ganhou esse presente também.
Pois foi o amigo Beto quem me apresentou o álbum ‘Civilização & Barbarye’ (2006), não de um artista africano, e sim de um percussionista argentino, radicado na Bahia, que dedicou a sua arte à pesquisa dos ritmos afro-baianos: Ramiro. Na penúltima faixa desse álbum, a sincronia me revelou um presente: o tema instrumental ‘Mbira’ [composição de Ramiro e do também percussionista argentino Santiago]. Que beleza! Fui magnetizado na hora! Viciei! Berimbaus psicodélicos, um climão transcendental, mântrico, e umas gotas percussivas a fundir o meu astral com o universo. Que instrumento ‘líquido’ era esse? Parecia uma kalimba, que eu já conhecia. Não. Era um instrumento africano, que dava nome à composição: mbira. Pois o tema dos argentinos me abriu a cabeça e eu passei a assistir a vários vídeos com o uso da mbira.
Corta para 2016. Março. Algo me relembra Ramiro [faleceu em 2009, vítima de um câncer, aos 45 anos]. Então, publico no blog ‘Mbira, uma música cinematográfica’, em homenagem a esse tema que amo. Ou seja, o instrumento volta a ficar em pauta. Corta para hoje, segunda 6/6/16. No embalo de africanizar os personagens, depois de Maria virar Miwa, modifico o nome do seu filho José para Mbira. Que alegria! Um filho com nome de instrumento! Seja bem-vindo, Mbira!”
“Asbac, às sete da manhã da sexta 12, na última raia da piscina [o meu lugar de sempre], cabeça dentro d’água na função das séries [atualmente, 2,5 mil metros em 1h de aula], penso no que fazer com Miwa, Mbira e Mkini... um estalo acontece: Mbira é Mbamba! Bingo! Yeba! É isso! (...) o filho da filha adotada é quem dá origem à avó. Oroboro! Mbamba é o semideus Mbira, filho só de Miwa, neto de Mutujikaka, levado ao passado por Mensawaggo para ser adotado numa família congolesa [escravizado no Brasil, compra a sua liberdade, prospera e é o ancestral das mulheres negras do romance]. Oroboro! Enquanto Miwa está desaparecida, Dona Tonica, Benivalda e Bartira criam o menino, sem saber que ele é a ascendência comum delas, quem semeia no Brasil a herança da divindade. Oroboro! Além da revelação de Montanha ser Mutujikaka, tem mais uma para surpreender: Mbira é Mbamba. (...) Fico eufórico dentro d’água, nado mais rápido e com mais vontade. Daí, outro estalo acontece: Miwa vai se encontrar, quando estiver mais velha, com a sua mãe biológica em Madagascar. É isso! A jovem malgaxe que é a mãe da senhora turista. Oroboro! Está definida a conclusão da história para Miwa; mais conexão, tudo se acertando, viva! A sensação é a mesma de quando eu brincava de videogame e o mapa de uma nova fase se abria. Yeba! É o círculo final do enredo de ‘oroboro baobá’.”
“Pousada Convento do Carmo, quarto 105, o mesmo em que Sarah fez a foto que usei como capa em ‘Olhos abertos no escuro’. Após relutar bastante, desde o começo do ano, finalmente decido, dentro do banheiro, sentado na privada: adiós, Muralha... É o 2º e último adeus ao nome que originou o romance ‘oroboro baobá’. Quando voltar a Salvador, vou modificar o personagem para Montanha, para evitar comparações com o goleiro do Flamengo, de prenome Alex, o Muralha que foi convocado para jogar pela sigla, em setembro passado. (...) Seja bem-vindo, Montanha! Arriba! Começa com ‘m’, tem a mesma divisão de letras que Muralha [passou no teste do brado tribal: MON-TA-NHA!] e um significado mais belo: é uma forma do nosso planeta e não uma criação humana para dividir; porém, perco o sentido de que Miwa, traumatizada, se isola dentro de Muralha [quando esse enredo mudou, não houve mais perda, e Montanha se cristalizou como melhor opção para ‘oroboro baobá’]. (...) A muralha desmorona. E a montanha desponta após os escombros.”
“(...) decido: nada de abandonar o romance [ufa!]. Farei mudanças no enredo, e a principal é separar Miwa de Montanha. E Sarah me ajuda a não abandonar o romance, mais uma vez. (...) Como não havia abordado o delicado tema de uma mulher agredida transfigurada pelo trauma num corpo masculino [e as implicações psicológicas envolvidas nesse processo] com a seriedade devida, utilizando-o apenas como dispositivo narrativo, indiferente, opto por não desenvolvê-lo no romance; caso fizesse, iria me distanciar muito do que já havia sido escrito — também acho que quem deveria escrever sobre esse tema é uma mulher ou uma pessoa trans. Ou seja, a grande surpresa de ‘Miwa — A nascente e a foz’ [o goleiro não é o filho Mbira nem o irmão Mkini, e sim a mãe/irmã Miwa] vai para a lata de lixo da história.”
“Ser coordenador da Flica me faz analisar o mercado. Penso: ‘ninguém tá escrevendo romance na Bahia, é um filão!’. Como um comerciante que escolhe o ponto mais vantajoso para abrir uma farmácia, decido escrever um romance. Mais drama: que conquiste muitos leitores e comentários nas redes, ganhe prêmios e seja adaptado para as telas, e se torne uma referência na literatura contemporânea. O produtor assume o controle e impõe: eu preciso ser romancista. O cabra que só costuma ler conto, poesia e crônica. (...) Romancêro.”
“(...) Estou curioso para saber a opinião de uma leitora que não é escritora nem é da área da Cultura, ou seja, o público-alvo ideal para um autor: alguém que entra numa livraria [ou num site] e compra uma obra porque tem esse hábito de consumo, e não porque está prestando favor a um colega [ou na intenção de que o outro compre o seu livro] ou tem interesse em agradar para obter alguma vantagem.”
“Eu passo 2019 vibrando pelo sonho português, esperançoso pela mudança de vida que virá (...) Em outubro, dias ansiosos pelo resultado, ainda mais depois de saber que havia dois brasileiros na final do prêmio: durmo mal, acordo de madrugada, estômago ataca, fico irritadiço, nervoso, mal-humorado, enfim.
Nem soube do anúncio do júri, numa terça ordinária, 29 de outubro. É a namorada Litza que, na manhã seguinte, com muita delicadeza, avisa-me que o júri escolheu não premiar romance algum [a 7ª derrota do romance num prêmio literário]. Entro correndo no site da LeYa e a decisão até hoje me dói: ‘as obras concorrentes não correspondem aos parâmetros de qualidade literária exigidos pelo Prémio’. Afff... que desgraça! O pior é que nem tenho como saber se o meu romance chegou à final [do que adianta? Caso tenha passado, ‘oroboro baobá’ não correspondeu aos parâmetros exigidos pelos portugueses]. #receba
A esperança de 2019 é destruída. Sonhe, mizifio, que Murphy lhe acorda com um ‘não’. Você não tem qualidade literária suficiente para materializar o sonho português. Kuéin! A melhor estratégia de fugir do Brasil é implodida. Agora, só na aventura de não ter porra alguma a lhe garantir na Europa. E aí, vai encarar? Cadê a coragem, se a cara tá na lama? É bom saber que, onde você não está, tá pouco se fudendo para a sua existência. Quem manda sonhar?”
“(...) tenho vontade de conhecer o trabalho do paranaense Snege, que está com a obra ‘fora de catálogo’, ou seja, indisponível. Porém, os sebos cobram preços exorbitantes para os únicos livros disponíveis, usados a ouro. Que merda, hein?! Penso: porra, eu quero ser lido depois de morto, não quero ficar ‘fora de catálogo’! Amplio: quer saber, que se dane o livro — ninguém valoriza, é caro para ser produzido e não vende, e você ainda recebe míseros 10% pelo trabalho todo que teve de fazer, sustentando o promotor [editora] e o vendedor [livraria]. Firmo: o meu único compromisso é com a obra. (...) A partir de agora, os meus livros serão editados por mim, com o PDF da obra disponibilizado para download, as páginas salvas como imagens carregadas no blog via posts e também na minha página de escritor no Facebook, tudo de graça, livre e independente, para que a obra permaneça acessível enquanto o Google existir, para além da minha morte, das decisões de herdeiros ou do desinteresse de editoras.”
“A ironia: o livro mais importante [lido fora dos dias de trabalho no processo de escrita] a influenciar a jornada oroboro é um livro de poesia. Eu amo: poemas me fazem produzir um romance! Ruy ironiza: ‘Diremos outra vez as mesmas palavras e elas serão novas, embora tenha havido o que houve e saibamos o que sabemos’. Os versos de ‘Estação infinita e outras estações’ me inspiram, e Ruy proseia como poeta: ‘O deserto. Logo verás como é vasto. Ainda mais que o mar; e ainda mais que tudo; tão longo e largo e profundo; composto pelo abismo que há entre o homem e o homem’.
Numa manhã de sábado, 18 de maio, eu vou para o seu lançamento na livraria LDM, no térreo do cine Glauber, em frente à Praça Castro Alves, centro histórico da capital da Bahia. Não desconfio que a então obra reunida do poeta & professor Ruy vai se tornar o melhor livro lido nos anos 10, que causa um impacto atômico em mim [e na minha obra], uma referência para toda a vida.”
“Certa feita, passo o olho na tevê. Pai assiste a um jogo, que deve ser do campeonato brasileiro. O uniforme de um dos times é rubro-negro. Eu, moleque fissurado pela coleção da Enciclopédia Abril, donde decorava mil informações sobre os países do mundo, sou cooptado pela estética do vermelho e preto, como se fosse a minha bandeira, as cores que representam o meu lugar no planeta. ‘Qual é o nome desse time, meu pai?’. (...) Flamengo. Até morrer. Aprendo a ser. E ele nunca reclamou. Haja amor em Ildegardo. Sempre.”
Foto do autor: Maíra Rebouças
Presentes no livro de memórias “O enigma de Mutujikaka — A jornada para escrever um romance” (Penalux, 2022), de Emmanuel Mirdad, páginas 54, 84, 12, 320-321, 34, 198-199, 53, 14, 275-276, 106-107, 290-291, 61, 58-59, 96, 279-280, 64, 86, 314 e 319, 132, 167, 245, 21-22, 31-32, 73-74, 184, 286 a 288, 256 + 258 a 260, 27, 16-17, 52, 148, 196-197, 228, 273, 171-172, 163, 247-248, 204, 224, 11-12, 215-216, 293-294, 238-239, 57 e 23-24, respectivamente.
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