Sou leitor das crônicas do cientista político e escritor português João Pereira Coutinho que o jornal Folha de São Paulo publica constantemente [coluna aqui]. Com a minha peneira, fiz uma seleção dos melhores textos publicados entre 2023 e 2024 e separei os 39 livros mencionados pelo escritor nessas crônicas. Segue abaixo a lista, com muitas obras em inglês e inéditas no Brasil (quase tudo inédito para mim também). Os links são para o site da Folha de São Paulo, com acesso restrito a assinantes.
“Leviatã”
Thomas Hobbes
“(...) será que Hobbes era um pessimista? (...) Se ficarmos no estado da natureza, onde a vida é ‘solitária, pobre, sórdida, brutal e curta’, não há motivos para festejar. Mas a mensagem de Hobbes contém o gérmen da ordem liberal posterior. O Leviatã existe porque os homens quiseram que ele existisse, ou seja, é uma criação humana, fruto do consentimento humano. Além disso, o seu fim é bastante limitado: garantir a paz e a segurança, nem que para isso tenha de ‘prender e arrebentar’, como dizia um antigo presidente brasileiro. O seu poder (quase) ilimitado procede desse fim. Hoje, rodeado por paternalismos de Estado em quase todas as áreas da minha vida, suspiro por uma versão democrática do Leviatã original: paz e segurança. O resto é comigo.”
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“Autocracia S.A.:
Os ditadores que querem dominar o mundo”
Anne Applebaum
“Eis o ponto de Applebaum: o autoritarismo do século 21 deve ser entendido como uma empresa multinacional que, em nome do poder e da riqueza, vai partilhando informações, pessoal, tecnologia e recursos. Só para ficarmos na Venezuela, veja só o cosmopolitismo do lugar: o dinheiro é russo; a tecnologia é chinesa; os jagunços são cubanos; até os tratores vêm da Belarus. Não é caso único. Na Rússia em guerra, por exemplo, os drones são iranianos; os mísseis são norte-coreanos; a defesa diplomática fica a cargo de vários países africanos na ONU; o gás e o petróleo são comprados, a preços amigos, pela China e pela Índia.”
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“Patriota”
Alexei Navalny
“(...) eleições livres; um sistema judicial independente; menos corrupção; o fim da censura. Assim escreveu ele a 17 de janeiro de 2024. Um mês depois, estava morto. Deprimente? Longe disso. Essa é a primeira surpresa do diário: o tom cômico, irônico, absurdo com que ele vai registrando os seus três anos de cárcere — do vizinho psicótico que grita dia e noite aos fantasiosos processos judiciais com que tentam enterrá-lo vivo na Sibéria. (...) Manter o humor na cadeia, sobretudo quando se é inocente, já é um feito. Experimente o leitor fazê-lo a norte do círculo polar Ártico, com 32°C negativos e sem perspectivas de liberdade. (...) Ter retornado à Rússia é um gesto contra o medo. Um exemplo. Um apelo. Mas é mais: no caso de Navalni, é a verificação empírica e pessoal de que somos capazes de suportar tudo, até o inominável, quando encontramos um sentido para as nossas provações (...) A mulher, os filhos: ele sabe que não estará mais nas fotos de família, nos aniversários, nas datas festivas. É impossível ler essas linhas e não sentir um buraco no peito. Mas essa ausência só é suportável, acrescenta Navalni, quando o sacrifício é feito em nome deles: para que possam um dia viver num país livre. (...) Falo de um ser humano em toda sua imperfeição e fragilidade que, apesar disso, arrisca tudo em nome da decência, da justiça ou da liberdade. Não para ele. Para os outros. Alexei Navalni é um desses casos.”
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“Faca: Reflexões sobre um atentado”
Salman Rushdie
“Não é preciso morrer para escrever uma obra-prima. Mas Salman Rushdie, dessa vez, exagerou: no dia 12 de agosto de 2022, enquanto discursava no palco de um anfiteatro, foi brutalmente esfaqueado por um criminoso de 24 anos. Sobreviveu, ninguém sabe como. E publicou agora o relato dessa quase-morte (...) Durante 33 anos, o escritor viveu sob a condenação à morte sentenciada pelo aiatolá iraniano Ruhollah Khomeini depois da publicação do livro ‘Os versos satânicos’. Meia dúzia de complôs foram tentados, e frustrados, contra o escritor durante esse tempo. (...) ‘Aqui está você’, pensou, com a resignação de um condenado. ‘Mas por que agora?’, perguntou, com terrível incredulidade. O passado não tinha já passado? Pelo visto, não. O criminoso lera apenas duas páginas do célebre livro. A radicalização acontecera no YouTube, assistindo a vídeos sobre Rushdie e suas alegadas heresias. Foi o que bastou. (...) O encontro é uma simulação literária e um dos grandes momentos do livro. Discutem ambos a crença e a descrença, Deus e os seus intérpretes, a sociedade laica e as suas tentações. No fim, Rushdie é levado a concluir, ou talvez a confirmar, a futilidade de qualquer conversa. Tudo é ressentimento no coração de um terrorista.”
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“The God Desire:
On Being a Reluctant Atheist”
David Baddiel
“O livro de David Baddiel é uma meditação divertida e sincera sobre as perplexidades de um ateu — alguém que, apesar de não conseguir acreditar em Deus, até gostaria que ele existisse em alguma capacidade. (...) se é o desejo que explica a crença na existência de Deus, o que dizer daquelas pessoas que acreditam nessa existência, embora preferissem que Deus não existisse, de fato? Infelizmente, Baddiel não aprofunda essa possibilidade disteísta, cujo potencial cômico é imenso. Afinal, haverá coisa mais divertida do que odiar o deus em que se acredita? (...) Pensando melhor, talvez haja sim: odiar um deus em que não se acredita, o que acaba por se tornar a atitude típica dos ditos machões ateus.”
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“Six in Bed: The Future of Love —
From Sex Dolls & Avatars to Polyamory”
Roanne van Voorst
“Você, leitor, já teve sexo com um robô? Já se apaixonou por um avatar? Já tomou um comprimido para se sentir tão apaixonado pela sua parceira como na noite em que a conheceu? E que tal alugar um rapaz ou uma moça para comparecer àquele compromisso familiar em que todo mundo pergunta se você já tem um namorado ou namorada? (...) É um título enigmático. Seis na cama? O poliamor, pelo visto, não é apenas um desafio ético. Também é um problema de espaço. Haverá camas para seis? E haverá quartos para camas de seis? (...) Até 2050, explica a antropóloga, 10% dos mais jovens terão tido relações com esses bonecos; muitos viverão com eles ‘maritalmente’, digamos. Vantagens? A possibilidade de termos um objeto sexual que corresponde aos nossos desejos mais exclusivos. Aquelas pernas. Aquele rosto. Aquela bunda. Aquela vagina (removível, de preferência, porque facilita a limpeza). As desvantagens estão no preço exorbitante, embora seja possível alugar um. (...) Amar um robô, um avatar digital ou um ser humano com ajuda farmacológica ainda transporta um leve aroma de familiaridade. Mas o futuro, explica Roanne van Voorst, também pertencerá aos ‘sologamistas’, que dispensam qualquer arranjo natural ou virtual, e aos assexuados, para quem ‘o prazer é momentâneo, a posição é ridícula e a despesa é medonha’, como dizia (mas não seguia) o prolífero Lord Chesterfield.”
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“La frénésie du bonheur:
Du bonheur différé au bonheur immédiat”
Luc Ferry
“(...) Todos somos histéricos, como afirma Luc Ferry, no seu último livro, ‘La frénésie du bonheur’, o frenesi da felicidade. Ainda não li a obra, mas a entrevista do filósofo ao Le Figaro abriu o apetite. A civilização, a nossa, só foi possível pelo altruísmo e pelo sacrifício, lembra ele. Ou, simplificando, pelo amor que fomos capazes de nutrir por aquilo que existe fora de nós — a família, os amigos, os compatriotas. A democracia, a liberdade, Deus, a razão. Qualquer coisa, exceto nosso umbigo. Hoje, somos definidos por um amor a nós próprios simplesmente ridículo e estéril. Luc Ferry fala mesmo de um conceito — a ‘autoparentalidade’ — que tem feito sucesso na França. O nome diz tudo: devemos ser filhos de nós próprios, amarmo-nos como amamos a descendência, incondicionalmente e de forma benevolente. Sou grotesco e ignorante? Tudo bem. Aos meus olhos, sou glorioso e perfeito.”
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“O populismo reacionário:
Ascensão e legado do Bolsonarismo”
Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro
“(...) O livro é uma notável explicação do fenômeno Bolsonaro, juntando no título dois conceitos-chave. Por um lado, o populismo do capitão apenas copia os populismos seus contemporâneos, apresentando o líder como o verdadeiro representante do povo contra elites predatórias e corruptas. Pela mesma lógica, o líder não pode aceitar a existência de instituições intermédias entre ele e as massas, razão pela qual o Judiciário ou a mídia são alvos óbvios da ira populista. Como é evidente, essa conceituação do ‘povo’ como entidade homogênea e pura é uma espécie de marxismo do avesso: também os marxistas olhavam para o ‘proletariado’ como um monólito no qual projetavam suas fantasias e aspirações. (...) Por outro lado, o bolsonarismo transporta o gene reacionário que é típico do antiliberalismo de direita. (...) A doença é a modernidade como um todo: o individualismo; a secularização da sociedade; o pluralismo político; o pensamento científico; e a democracia representativa, tida como incapaz de dar voz à ‘vontade geral’. A cura, sem surpresas, é a pré-modernidade como um todo: a defesa da comunidade nacional como dotada de uma alma ou de uma missão; a recristianização da sociedade até nos seus detalhes mais privados e pessoais; o antipluralismo militante (...); a adoração do pensamento mítico ou do irracionalismo anticientífico; e a defesa de um líder carismático e autoritário, capaz de estabelecer uma relação direta entre ele e as massas.”
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“Adventures in Democracy:
The Turbulent World of People Power”
Erica Benner
“(...) não estaríamos bem melhores com um governo de sábios, capaz de decidir cientificamente sobre os assuntos mais importantes do momento — guerra e paz, alterações climáticas, imigração etc. (...) Se a democracia produz Trump e outros do gênero, não seria melhor conceder o direito de voto a quem realmente entende do assunto? A resposta de Erica Benner é negativa. A admiração irrestrita pelos sábios ignora a matéria de que eles são feitos. Ignora que o excesso de confiança na razão pode produzir monstruosidades dogmáticas. Além disso, ignora também a natureza competitiva das elites intelectuais, que muitas vezes preferem o poder à verdade. (...) o que inquieta Benner é a posição daqueles ‘humanistas’ que defendem uma política de fronteiras abertas porque isso é vantajoso para eles. Os imigrantes, bem vistas as coisas, vêm para servir os nativos em trabalhos duros ou precários, mesmo quando têm formações acadêmicas diferenciadas. Não é estranho o silêncio desses ‘humanistas’ quando há médicos dirigindo táxis ou professores universitários trabalhando como operários da construção civil? (...) Ler Erica Benner é defender e respeitar a democracia pelas suas virtudes inegáveis.”
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“Liberty and Equality”
Raymond Aron
“No fim de longa e solitária carreira, Aron apresenta a defesa da democracia liberal e das três liberdades que a definem e que cabe ao Estado garantir. As liberdades pessoais são as primeiras. A liberdade de vivermos sem temer pela nossa integridade física, a liberdade de movimento dentro do nosso país e para fora dele, a liberdade de escolher uma profissão, de professar uma fé, de exprimir uma opinião sem temermos a guilhotina. As segundas são as liberdades políticas, presentes na hora de votar, de ser eleito, de protestar contra o poder instituído. As terceiras são as liberdades sociais — ‘direitos sociais’, para usar a expressão comum — que devem estar presentes na educação dos cidadãos, no tratamento das doenças, no auxílio à velhice.”
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“People Love Dead Jews:
Reports from a Haunted Present”
Dara Horn
“Da última vez que estive em Amsterdã, tentei visitar a casa-museu de Anne Frank. Não consegui. Os bilhetes estavam esgotados para os próximos meses. Leu bem, leitor. Meses. Segundo parece, o último refúgio da adolescente judia recebe mais de 1 milhão de visitantes todos os anos. A culpa é do diário, que já vendeu dezenas de milhões de exemplares em todo mundo. Mas a escritora Dara Horn, no seu perturbante “People Love Dead Jews” (...) [formula] a sua hipótese: as pessoas gostam de judeus, sim, mas apenas se eles já estiverem mortos. Aliás, para testar a sua hipótese, a escritora pede-nos para imaginarmos uma Anne Frank que, milagrosamente, sobrevivera ao Holocausto. E que, em plena velhice, estaria disposta a partilhar com o mundo as suas experiências em Auschwitz ou Bergen-Belsen. Haveria quem a escutasse, sem dúvida. Mas 1 milhão de pessoas todos os anos? Bilhetes esgotados durante meses? (...) O fascínio com Anne Frank explica-se pelo seu precoce desaparecimento. Mas também pela mensagem ‘inspiradora’ que ela deixou no seu diário: a crença de que a humanidade é essencialmente boa, apesar de ter sido essencialmente má para com ela. Por outras palavras: gostamos de Anne Frank, acusa Dara Horn, porque ela nos absolve de qualquer responsabilidade.”
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“On Settler Colonialism:
Ideology, Violence, and Justice”
Adam Kirsch
“Adam Kirsch responde: sem entender o conceito de ‘settler colonialism’, uma moda ideológica nas universidades ocidentais das últimas décadas, é impossível entender o clima de ódio em que vivemos. Originalmente (...) é uma teoria sobre os Estados Unidos, a Austrália ou o Canadá que procura mostrar a ilegitimidade estrutural desses países, que se construíram pela eliminação dos indígenas e pelo roubo das suas terras. No caso dos Estados Unidos, foram os colonos brancos, de origem europeia, os agentes do crime. No caso de Israel, o ‘colonialismo de assentamento’ teria sido exercido pelos judeus (...) sobre os palestinos ‘originais’. (...) O problema, repito, é numérico: os indígenas, na Austrália ou nos Estados Unidos, representam 3% da população total. Imaginar, só como hipótese, o retorno dos brancos à Europa e dos negros a África é tão delirante que mesmo os teóricos do ‘colonialismo de assentamento’ hesitam em defender tal coisa. Mas a hipótese não é apenas delirante. Ela parte de uma premissa errada, sustenta Adam Kirsch: a ideia de que é possível fixar no tempo quem são os povos ‘originais’ de um território. (...) A história é sempre mais complexa do que os ‘terríveis simplificadores’ imaginam. E o livro de Adam Kirsch relembra-nos essa complexidade para que os fantasmas do ressentimento e do ódio não tenham a última palavra em questões de justiça e paz.”
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“A noite”
Elie Wiesel
“(...) antes de publicar ‘A Noite’, essa meditação teológica sobre o silêncio e o abandono de Deus ante a tragédia do Holocausto, Wiesel tinha já publicado uma primeira versão da obra em ídiche. Em ‘E o Mundo Ficou em Silêncio’, a responsabilidade pelos crimes era atribuída a entidades mais terrenas, como os vizinhos, os colaboradores, os nazistas. Enfim, eu e você. O sucesso só aconteceu com ‘A Noite’. No fundo, gostamos de obras sobre o Holocausto, desde que elas tenham uma mensagem ‘positiva’. Essa é a razão, acrescento eu, pela qual as massas adoraram ‘A Vida É Bela’, de Roberto Benigni, e não ‘Filho de Saul’, a obra-prima de László Nemes.”
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“Authority and Freedom:
A Defense of the Arts”
Jed Perl
“Pobre Salman Rushdie: o escritor, que sempre defendeu a liberdade de expressão, perdeu um dos olhos depois do ataque que sofreu em Nova York, às mãos de um fanático. Mas ainda lhe restou o segundo para testemunhar, com horror, o ato de censura que uma editora do Ocidente operou nos livros de Roald Dahl (1916-1990). ‘Censura’, no contexto, é palavra branda. Aquilo é vandalismo cultural ao mais alto nível, digno do Talibã. Há frases inteiras que foram suprimidas e, ó beleza!, reescritas, só para não ofender a sensibilidade woke. (...) O caso de Roald Dahl é apenas o exemplo extremo de uma tendência que se foi aprofundando nos últimos tempos: a negação radical da autonomia da arte e a instrumentalização do artista para fins políticos ou ideológicos. Que esse artista esteja morto há mais de 30 anos só confere um tempero macabro ao abuso. É por isso que o livro de Jed Perl, um dos mais brilhantes críticos de arte americanos, é mais necessário que nunca. O título é ‘Authority and Freedom: A Defense of the Arts’. É o melhor ensaio que li em 2023.”
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“Amusing Ourselves to Death:
Public Discourse in the Age of Show Business”
Neil Postman
“A política americana está reduzida a isto: entretenimento. A ficção — e a lógica da ficção — contaminou a realidade. Vários autores já tinham alertado para o fenômeno. (...) Outro foi Neil Postman, em 1985. Seu livro, ‘Amusing Ourselves to Death’ (“Divertindo-nos até a morte”), ganha hoje contornos de profecia. A tese de Postman é uma refutação de George Orwell: não, George, o perigo para as democracias não vem de um poder tirânico, exterior, violento, que submete a sociedade ao Big Brother. O perigo vem do entretenimento permanente, tal como Aldous Huxley previu no seu ‘Admirável Mundo Novo’: a ideia demencial de que tudo — política, religião, academia etc. — deve seguir a mesma lógica do espetáculo.”
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“A era da IA e nosso futuro como humanos”
Eric Schmidt, Daniel Huttenlocher e Henry A. Kissinger
“(...) Como defendem os autores, há três tipos de relação que podemos estabelecer com as novas máquinas: podemos limitá-las; agir em parceria com elas; ou nos submeter. Não existe uma resposta pronta para todos os cenários. Haverá momentos em que a máquina terá um ascendente óbvio sobre os humanos — na detecção de doenças, por exemplo, e até na busca de certas farmacologias. Haverá outros momentos em que a inteligência artificial será mais um instrumento auxiliar da ação humana, como sempre aconteceu com as novas tecnologias. E haverá circunstâncias em que a última palavra deve ser a nossa, não a de um algoritmo qualquer. Seremos capazes de estabelecer essas diferenças?”
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“The Revolt Against Humanity:
Imagining the Future Without Us”
Adam Kirsch
“(...) Os trans-humanistas serão os nossos sucessores, da mesma forma que o Homo sapiens é o sucessor do macaco. Sim, esses seres do futuro poderão conservar alguns traços da nossa humanidade, mas serão uma versão infinitamente melhorada de nós. (...) Esse, pelo menos, é o cenário que Adam Kirsch pinta no seu livro “The Revolt Against Humanity: Imagining the Future Without Us” (A revolta contra a humanidade: imaginando o futuro sem nós, em tradução livre). Ainda não li a obra, mas o aperitivo que ele publicou na ‘American Scholar’ permite antecipar o amanhã. (...) Eis a tese: a Terra já não aguenta as predações dos pós-macacos (nós). (...) Nós, humanos, somos limitados, estúpidos e dramaticamente violentos. Mas os pós-humanos serão uma versão perfeita das nossas velhas carcaças. Para que viver até aos 80 se podemos chegar aos 800 ou até abolir a morte? Quem disse que temos só cinco sentidos quando podem existir mais cinco ou mais 50 ou mais 500? Quem disse que um Q.I. de 140 era de gênio quando é possível atingir os 1.400 e envergonhar esse débil chamado Einstein?”
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“A esquerda não é woke”
Susan Neiman
“(...) Susan Neiman concede que a esquerda woke participa das mesmas emoções da esquerda tradicional. A empatia com os marginalizados, a indignação contra os opressores, a vontade de corrigir erros históricos — tudo isso está lá. O problema é que a esquerda woke, para atingir esses objetivos, comete dois pecados capitais. O primeiro é abandonar as ideias tradicionais da esquerda. O segundo é adotar as ideias tradicionais da direita.”
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“A biblioteca de Estaline”
Geoffrey Roberts
“Um bom leitor é um ser omnívoro, que gosta de nadar onde não dá pé, movido por uma curiosidade vadia. A curiosidade de Hitler era nula porque os fanáticos são desprovidos de curiosidade ou imaginação. (...) Podemos dizer quase a mesma coisa sobre Stálin. Nos 70 anos da morte do tirano, resolvi espreitar a sua biblioteca através do livro recente de Geoffrey Roberts (...) Aconselho vivamente. Stálin vence Hitler em quantidade: teria 25 mil livros, periódicos e panfletos. Mas depois, quando vemos a lista, confirmamos que o mundo de Stálin era tão estreito como a sua cabeça. Tirando algumas concessões ao romance e à historiografia ocidental, a biblioteca é esmagadoramente soviética, ou seja, pós-1917. Poesia, nem vê-la (idem para Hitler). Em termos de idiomas, temos o russo e o georgiano, nada mais. (...) Originalidade? (...) Apenas uma: Stálin é talvez o único leitor que tinha na estante autores que mandara assassinar. Imagino que isso seja o sonho úmido de muitos críticos literários.”
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“Um ditador na linha”
Ismail Kadaré
“É uma história que sempre me intrigou: em junho de 1934, o camarada Stálin telefonou ao escritor Boris Pasternak. O motivo do telefonema era inusitado: o que tinha Pasternak a dizer sobre o poeta Osip Mandelstam, preso um mês antes por ter recitado um poema satírico sobre o tirano? (...) Na versão contada anos depois por Isaiah Berlin, a única que conhecia, Pasternak foi esquivo nas respostas: alegou não ser íntimo de Mandelstam e depois tentou mudar o tema da conversa para assuntos mais metafísicos. Stálin, antes de terminar abruptamente com o telefonema, criticou Pasternak por não defender o amigo. A história correu Moscou e Pasternak nunca verdadeiramente se perdoou. Mandelstam, torturado em 1934, acabaria por morrer no exílio em 1938. (...) Aprendo agora que essa não é a única versão. Existem, pelo menos, 13 versões, escreve Ismail Kadaré no seu derradeiro livro (...) Era inevitável que Kadaré, morto aos 88 anos, revisitasse esses três minutos de conversa entre Stálin e Pasternak. Na literatura europeia do nosso tempo, ninguém escreveu mais ou melhor sobre a relação entre o totalitarismo e a vida intelectual do que Kadaré.”
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“Sobre falar merda”
Harry G. Frankfurt
“(...) Frankfurt cita um personagem de romance que, a páginas tantas, diz ao filho: ‘Nunca diga uma mentira quando puder falar merda.’ Engraçado. Conheci um colega de faculdade que dizia algo de semelhante: ‘Quando não sei a verdade, deslumbro falando merda.’ Nos dois casos, a ideia é que falar merda é menos grave que mentir. Intuitivamente, talvez: um picareta pode ser mais engraçado que um mentiroso. Não para Frankfurt. A consciência de que ainda existe a verdade, mesmo que a violemos, está um degrau acima na escada do caráter.”
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“Os irmãos Karamázov”
Fiódor Dostoiévski
“Ninguém acreditou que Jesus era o filho de Deus quando ele passou pelo mundo da primeira vez. Por que motivo haveriam de acreditar se ele regressasse uma segunda? Como premissa para um romance, é uma bela ideia. Dostoiévski nos deu um aperitivo disso: em “Os irmãos Karamázov”, essa é a parábola que Ivan conta ao irmão para mostrar como a igreja estabelecida, ciosa do seu poder, jamais aceitaria o regresso de Jesus, mesmo que o reconhecesse como tal.”
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“Monsters: a Fan’s Dilemma”
Claire Dederer
“(...) a autora confessa: ama Polanski, ama Woody Allen. Também ama Doris Lessing e Joni Mitchell (aliás, foi graças a ela que soube dos abandonos maternais de ambas). Mas existe em todos esses nomes uma ‘mancha’ que é impossível apagar. Uma ‘mancha’ que é indiferente à nossa vontade. Claire Dederer tem até uma lista (...) onde vai anotando os autores que ama e que, em princípio, deveria odiar (...) A ‘mancha’ é uma disrupção da experiência estética, porque é impossível apreciar o trabalho desses criadores nos seus próprios termos. (...) O dilema do fã é um problema de amor, escreve ela. Amamos pessoas nas nossas vidas que não são recomendáveis. Por quê? Ah, por que. O coração tem razões que a razão etc. e tal. O mesmo acontece com nossos ídolos. (...) Que absurdo, Claire! Existe uma diferença entre as pessoas problemáticas que eu amo na vida e a vida problemática dos artistas que amo. Eu não tenho de viver com eles. Esse é o luxo do fã, não o dilema: por piores que sejam suas vidas privadas, interessa-me apenas o melhor que fizeram em público e para o público. No fim das contas, só isso perdurará. Daqui a 200 ou 300 anos, se ainda existir arte e olhos para apreciá-la, as condutas privadas de certos criadores terão a mesma importância para as gerações vindouras que os crimes de Caravaggio ou Benvenuto Cellini. Quais crimes? (...) Precisamente.”
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“O fim da história e o último homem”
Francis Fukuyama
“(...) talvez Fukuyama tenha sido imprudente nos festejos da primeira parte do título. O fim da história durou uma década. Ela regressou em força com os ataques terroristas do 11 de Setembro e nunca mais nos deixou. A democracia liberal não era a última e definitiva moda. Mas eu falo da segunda parte do título, usualmente esquecida. O último homem. Quem é esse ser que, já avisava Nietzsche, fará parte do habitat das democracias liberais? (...) É o homem anti-heroico por excelência, preocupado com a satisfação dos seus desejos e do seu bem-estar — e incapaz de pensar para além deles. Pedir sacrifícios a existências tão bovinas é uma impossibilidade. Além disso, o último homem tem as vantagens, ou as desvantagens, de habitar o fim da história. Ele consegue olhar para o passado, para o longo cortejo de batalhas e atrocidades, retirando a única lição possível: tudo foi em vão.”
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“Um Ocidente sequestrado:
Ou a tragédia da Europa Central”
Milan Kundera
“Se esse primeiro texto arrepia pela sua atualidade, que dizer do segundo, que dá título à coletânea? (...) Eis a catástrofe: apesar de, culturalmente, serem ocidentais, os povos da Europa Central foram remetidos, politicamente, para a Europa de Leste. Não apenas pelos novos colonizadores, mas pela própria Europa Ocidental, que se esqueceu desse membro da família ‘sequestrado’. (...) o ensaio de Kundera evoca, quase de imediato, o destino da Ucrânia diante da invasão brutal de Vladimir Putin. (...) Os ucranianos, como eles próprios afirmam vezes sem conta, não estão apenas a lutar pela Ucrânia. Também lutam pela Europa, ou seja, pela possibilidade de serem um dia parte de uma comunidade de nações onde a lei, a liberdade e o respeito pelos direitos dos indivíduos não sejam uma quimera. Nem todos os europeus os escutam. Ou os compreendem. Como se dizia durante a Guerra Fria sobre a Europa Central, a Ucrânia fica longe e sempre fez parte da órbita imperial da Rússia. São outra gente. Não são como a gente. (...) Quem fala assim já se esqueceu do privilégio em que vive, optando por cálculos mais imediatos sobre o conforto econômico ameaçado. A guerra é um ‘incômodo’, um ‘despropósito’, um ‘aborrecimento’. Pobrezinhos. Não saberão eles que o privilégio e o conforto só são possíveis porque há valores de liberdade e humanidade que os sustentam?”
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“After the Pogrom:
7 October, Israel and the Crisis of Civilisation”
Brendan O’Neill
“(...) Com os cadáveres ainda quentes e antes mesmo de Israel entrar em Gaza, o Ocidente ‘letrado’ falhou o mais importante teste moral desde o Holocausto. Como explicar isso? O jornalista Brendan O’Neill, em ‘After the Pogrom: 7 October, Israel and the Crisis of Civilisation’, dá uma ajuda. É a melhor tentativa de explicação que encontrei até o momento, até porque O’Neill parte da mesma perplexidade. Nas semanas seguintes ao 7 de Outubro, os crimes antissemitas subiram 1.350% em Londres quando comparados a 2022. Nos Estados Unidos, 400%. Na Alemanha, 240%. Na França, 100%. Perante crimes cometidos contra judeus em Israel, o instinto de muitos foi cometer mais crimes contra judeus espalhados pelo mundo. (...) Brendan O’Neill lembra os vetustos acadêmicos que defenderam isso mesmo: ‘descolonizar’ não serve apenas para escrever ensaios, derrubar estátuas, substituir Jane Austen por Alice Walker, afirmavam eles. Pelo visto, também serve para sequestrar, estuprar e matar civis indiscriminadamente. (...) O filósofo Jürgen Habermas, citado por O’Neill, escreveu um dia que grande parte do pensamento político contemporâneo é apenas ‘contrailuminismo vestido de pós-iluminismo’. Ou, simplificando, trevas e relativismo.”
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“Israelophobia: The Newest Version of the Oldest Hatred
and What to Do About It”
Jake Wallis Simons
“(...) para Simons, criticar Israel é legítimo; não existe nenhum estado que esteja acima da crítica. Assino em baixo. Os assentamentos na Cisjordânia, o irredentismo dos fanáticos que desejam um ‘Grande Israel’ entre o Mediterrâneo e o rio Jordão ou as pulsões populistas e iliberais de Binyamin Netanyahu com sua grotesca reforma judicial, tudo isso merece repúdio. O que não é legítimo é só criticar Israel com uma obsessão particular, ignorando o mundo ao redor. Isso é suspeito, camarada. Isso é antissemitismo, quer você esteja consciente ou não. Mas Simons tem outras perguntas para você. Como essa: ‘Diga um país que, historicamente falando, tenha uma ficha moral mais limpa que Israel.’(...) Uma vez mais, Simons não afirma que a ficha moral de Israel é limpa. Não é. Longe disso. Ele apenas convida o leitor a responder por que motivo Israel é o único país que, na linguagem da ‘israelofobia’, não tem ‘direito a existir’ por seus erros ou crimes. Se Israel não tem, quem tem? Os Estados Unidos? A China? O Irã? Os países árabes da região? Aliás, falando nisso, você consegue citar um país do Oriente Médio que tenha uma ficha mais suja que Israel? Um só? Ou, inversamente, você é capaz de citar algo de admirável em Israel?”
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“A mente trágica:
Guerras, regimes ditatoriais e anarquias –
Reflexões sobre o poder”
Robert D. Kaplan
“(...) Kaplan conheceu o Iraque de Saddam Hussein nos anos de 1980, como jornalista, e ficou horrorizado com aquela prisão a céu aberto. Conclusão: tudo servia para derrubar Saddam, até a crença infantil de que, depois do tirano, qualquer regime seria melhor. Essa ilusão durou até 2004, quando o próprio retornou ao país e encontrou um caos que era bem pior do que a ordem sufocante do passado. (...) A ideia de que os Estados Unidos podem consertar o mundo — em todo lado e ao mesmo tempo, como no filme — é uma violação da sensibilidade trágica, que o autor se penitencia por ter cometido. E por que motivo os políticos e os analistas de hoje têm pouca sensibilidade para o trágico? (...) A hipótese avançada por Kaplan, que ironicamente não se aplicaria a ele, passa pela falta de experiência real com as brutalidades da vida. (...) Os líderes de hoje, que cresceram na paz e na abundância, nem hesitam em começar guerras por escolha — a suprema forma de loucura, como lembrava Eurípedes, em ‘As Troianas’, pela boca de Cassandra.”
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“Self-Made:
Creating Our Identities
from Da Vinci to the Kardashians”
Tara Isabella Burton
“Foi a partir do Renascimento, explica a historiadora Tara Isabella Burton no seu ‘Self-Made’, que a experiência da individualidade ganhou raízes profundas que nunca mais nos abandonaram. Os artistas saíram do anonimato e ganharam nome e fama. Os filósofos imaginaram novas formas de organização social, capazes de respeitar essa individualidade revelada — e os revolucionários agiram em conformidade. Nasceram os dândis, nas sociedades aristocráticas da Europa — e o “self made man” nos Estados Unidos. Também nasceram os líderes carismáticos, que moldaram as massas a seu bel-prazer e as levaram ao abismo”
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“The Suffragist Peace:
How Women Shape the Politics of War”
Robert Trager e Joslyn Barnhardt
“(...) uma das conclusões mais perturbantes do livro é que as democracias masculinas não realizaram o sonho pacifista de teóricos como Thomas Paine ou Kant. Diziam eles, com aquele otimismo iluminista que também produziu a guilhotina, que o mundo ficaria mais pacífico quando os homens, todos os homens, pudessem escolher os seus governantes. No fim das contas, eram os homens, sobretudo os mais pobres, que marchavam para as guerras caprichosas de reis e rainhas. Seriam eles a exigir governos mais diplomáticos. (...) Azar. Os teóricos subestimavam o entusiasmo deles pela carnificina. Foi esse entusiasmo que deixou pasmos vários governantes ao longo do século 19 e até às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Sempre que um novo conflito aparecia no horizonte, havia euforia entre os machos. Na sombra dessa euforia, estavam as mães, as mulheres, as filhas. As cuidadoras dos estropiados. As indigentes. As viúvas. As órfãs. Não admira que as primeiras sufragistas, ao lutarem pelo direito de voto no século 19, tenham elegido a guerra e as suas consequências como um dos principais argumentos para terem uma palavra sobre os assuntos políticos. E, pelos vistos, tiveram, para melhor.”
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“Castélio contra Calvino,
ou uma consciência contra a violência”
Stefan Zweig
“(...) Os homens também estavam sob vigilância — do cabelo (nunca um risco ao meio) aos pés (nunca sapatos com presilhas douradas). De resto, estavam proibidos os teatros, os divertimentos, a dança, as festas populares. Até os nomes mais comuns, como Claude ou Amadé, foram riscados das pias batismais, por não constarem da Bíblia. A Genebra do século 16, tal como o Irã de hoje, era o túmulo da criatividade, da bondade e da compaixão porque Calvino, como um verdadeiro aiatolá, queria instilar no coração dos homens o terror a Deus. (...) O escritor Stefan Zweig, que escreveu um dos seus melhores livros sobre essa distopia (...) vai desfilando nessa obra os contornos tenebrosos de uma cidade, e de um tirano, que acabaria por atraiçoar o próprio espírito da Reforma.”
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“O triunfo da terapêutica”
Philip Rieff
“(...) nossos antepassados tinham as mesmas inquietações e misérias que nos afligem. Mas a cultura tradicional, no sentido amplo do termo, acolhia e dava significado a essa travessia inóspita. Philip Rieff não falava apenas da religião, embora ela fosse parte central da experiência humana e fonte de consolação. Falava da própria vida em comunidade, que exigia de cada um a capacidade de sair de si próprio para ter os outros em consideração. Só esse movimento exógeno satisfazia e realizava o ser. (...) O ‘triunfo da terapêutica’, com Freud e seguidores, quebrou esse movimento ao desmantelar a ordem tradicional que dava sentido à existência. O indivíduo passou a estar no centro do seu próprio drama existencial, sem o auxílio do velho patrimônio moral de outros tempos. Vantagens? Algumas, sim. A valorização do bem-estar pessoal, a literacia dos sentimentos mais profundos, as mil possibilidades da autoexpressão — tudo isso são conquistas preciosas que ampliaram nosso conhecimento e revolucionaram as artes e as letras no século 20. Mas a obsessão com o bem-estar, a intolerância aos sentimentos desconfortáveis e as frustrações da autoexpressão, que promete sempre mais do que entrega, confrontaram os contemporâneos com uma nova condição. Caminhar livremente, às vezes, também significa caminhar só.”
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“Sociopata: minha história”
Patric Gagne
“No fundo, milhões de leitores gostavam de ter uma patologia mental. Ou, para usar os termos científicos, uma ‘perturbação de personalidade antissocial’, tal como descrita por Patric Gagne, psicoterapeuta e sociopata, com livro de memórias no mercado. (...) A apatia emocional, a ausência de consciência moral, a indiferença perante a dor dos outros — tudo começou bem cedo. A que se seguiu a criminalidade — nada de horripilante, apenas furtos e vandalismo. Hoje, consciente de sua condição, Gagne consegue controlar os seus impulsos. Mas o momento revelador da entrevista acontece quando ela afirma que os ‘neurotípicos’ — gente sem perturbação — sentem uma curiosidade invejosa pela sociopatia. Por quê? Porque imaginam que é um estado gostoso, onde a culpa, essa invenção pequeno-burguesa, deixa de fazer sentido. Alguns chegam a confessar ideações homicidas, esperando encontrar compreensão. (...) Se calhar, está aqui o próximo best-seller, ‘A sutil arte de matar o próximo’. Alguma editora estaria interessada?”
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“On Wanting to Change”
Adam Phillips
“(...) A conversão, para cabeças que não toleram a dúvida, é sempre uma forma de substituição. Ou, nas palavras de Phillips, a conversão pretende sustentar aquilo que procura substituir. Não interessa se essa conversão é uma passagem da crença absoluta para a descrença absoluta (...) adaptando a dinâmica para o universo político, não interessa se falamos de um comunista que vira reacionário (muito comum) ou de um reacionário que vira comunista (raríssimo; nunca vi). O ponto fundamental é a natureza totalitária da certeza — e totalitária porque deseja submeter todos ao mesmo dogma. (...) As pessoas normais podem acreditar em Deus, não acreditar ou até não saber se acreditam ou não. Um crente, um ateu ou um agnóstico não pretendem que o mundo inteiro valide as suas opiniões. Um crente militante ou um descrente militante vai além: ele não se limita a viver as suas certezas e dúvidas no ‘fundo insubornável do ser’. Como escreve Adam Phillips, converter o descrente é o único antídoto para neutralizar a réstia de dúvida que ainda pode existir no próprio crente.”
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“Conservative Parties and the Birth of Democracy”
Daniel Ziblatt
“(...) a democracia só foi possível quando elites tradicionais permitiram. Ou, em linguagem prosaica, quando as elites chegaram à conclusão que tinham mais a ganhar do que a perder com o jogo democrático. (...) Nessa viragem, os partidos conservadores tiveram um papel instrumental como intermediários entre o mundo de cima e o mundo de baixo. Quando conseguiram que elites se transformassem em democratas, mesmo relutantes, a institucionalização da democracia teve chance de acontecer. O caso da Inglaterra, nos séculos 19 e 20, é exemplar. (...) Quando, pelo contrário, as elites se endureceram nos castelos e não tiveram intermediários à altura do desafio, a experiência democrática foi curta, caótica e rapidamente desceu aos abismos da ditadura. A Alemanha é o caso mais óbvio para o mesmo período: à mínima oportunidade de reverter os avanços democráticos da República de Weimar, a velha aristocracia tapou o nariz e até engoliu Adolf Hitler, na crença, sempre patética, de que o poderia controlar.”
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“The Good Life:
Lessons from the World’s Longest
Scientific Study of Happiness”
Robert Waldinger e Marc Schulz
“(...) Recentemente, o ‘Wall Street Journal’ divulgou o mais longo estudo alguma vez feito sobre o assunto. Começou em Harvard, em 1938, com centenas de participantes, todos rapazes, respondendo a questionários sobre o grau de satisfação com a vida. Nos anos seguintes, o estudo continuou a medir a felicidade dos rapazes, mas incluiu também as mulheres; com o tempo, alargou-se para os mais de 1.300 descendentes do grupo original. As conclusões estão no livro ‘The Good Life: Lessons from the World’s Longest Scientific Study of Happiness’ (...) Aqui vai um aperitivo: esqueça o jogging, a comida vegana, a meditação oriental. Esqueça também a riqueza, a fama e outras ilusões mundanas. Nesses quase 90 anos de acompanhamento constante, a principal conclusão é que a saúde e a longevidade são fortalecidas de forma dramática pelos amigos que somos capazes de manter. Se tivermos boas relações, o corpo e a mente agradecem. Inversamente, os mais solitários tiveram existências mais pobres e curtas, em média, porque a solidão é corrosiva para nossas pobres carcaças.”
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“The Innocence of Pontius Pilate:
How the Roman Trial of Jesus Shaped History”
David Lloyd Dusenbury
“(...) Que o diga o filósofo David Lloyd Dusenbury, que me tem acompanhado por estes dias com o seu magistral “The Innocence of Pontius Pilate: How the Roman Trial of Jesus Shaped History” (...) Tese de Dusenbury: o julgamento de Jesus, e a sua condenação à morte, acabou por definir a cultura política e legal da Europa e das Américas. Segundo Dusenbury, é no contexto desse julgamento que se opera a distinção fundamental entre o poder secular e a autoridade sagrada. (...) David Lloyd Dusenbury revisita a ‘vexata quaestio’ da inocência de Pilatos. Até que ponto o governador da Judeia romana tem as mãos limpas de sangue? (...) Na elegante e inteligentíssima definição de Dusenbury, não existem assassinos de Cristo no julgamento de Jesus porque a ‘dupla jurisdição’ da qual este homem falava era incompreensível para judeus e pagãos.”
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“Domínio:
O cristianismo e a criação da mentalidade ocidental”
Tom Holland
“(...) essa civilização nem sempre esteve à altura deles. Sua longa lista de barbáries — a Inquisição, as guerras religiosas, o tráfico de seres humanos etc. — é a prova definitiva de que a prática nem sempre cumpriu a teoria. Mas, como lembrava o historiador Tom Holland no seu ‘Domínio’, mesmo quando criticamos cada um desses crimes, é a linguagem cristã secularizada que usamos, não a ética do paganismo romano.”
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“Como Se Faz um Bebé?”
Anna Fiske
“(...) corri para a livraria. ‘Você tem algum livro que ensine como se fazem bebês?’, perguntei à moça. (...) ‘Um livro para adultos?’ Olhei a moça com uma mistura de pasmo e compaixão. ‘Eu acho que os adultos já sabem’, concedi. ‘Estou procurando um livro para crianças.’ (...) Havia. Escrito por Anna Fiske e apresentado como ‘bestseller internacional’, o título é ‘Como Se Faz um Bebé?’ e o conteúdo não desilude. Começa em tom humorístico, com perguntas ao leitor inocente. Os bebês fazem-se com químicos perigosos? Com martelo e pregos? Com a ajuda da cegonha? Ou será com espermatozoides e um óvulo? (...) Para meu espanto, ele já sabia dos espermatozoides e do óvulo. A questão decisiva estava em saber como os primeiros viajavam até ao segundo.”
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