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A vontade de liberdade é mais forte do que o terror dos tiranos, de João Pereira Coutinho [org. Emmanuel Mirdad]


Este é um quase livro de crônicas do cientista político e escritor português João Pereira Coutinho, uma seleção dos melhores textos publicados na sua coluna na Folha de São Paulo entre 2023 e 2024, que tive o prazer de organizar em 2025.

“A vontade de liberdade é mais forte do que o terror dos tiranos” poderia ser impresso e lançado, mas não será. As crônicas seguem abaixo, na ordem que elaborei para o original engavetado, com os links para a Folha de São Paulo, com acesso restrito a assinantes.


Na virada do ano, fico imaginando como será a vista para cá embaixo
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“Nada do que é humano nos é estranho, para citar outra frase latina. Vemos as mesmas ilusões, as mesmas esperanças, os mesmos planos para a vida. As mesmas contingências que alteram, ou acabam, com os planos. O envelhecimento. A doença. A morte, em tom cômico ou trágico, tanto faz. E os filhos que chegam. E os filhos que partem. E os filhos que retornam — ou não. Histórias de amor que prometiam tanto e falharam tanto. Solidão. Arrependimentos. Ou nem por isso: segundas oportunidades. Depois, o tempo dá um salto e vemos tudo outra vez — na mesma sala, no mesmo espaço, no mesmo canto do mundo. A natureza humana é o supremo clichê. (...) excetuando um asteroide mal-humorado ou uma guerra nuclear, 2025 será igual a 1925, e a 1825, e a 1125. Do ponto de vista da eternidade. Basta instalar uma câmera na minha sala, ou na sala do leitor, e espreitar para o passado, para o presente e para o futuro. (...) Vejo pela lente a selva, os primeiros arruamentos, as primeiras iluminações. As primeiras paredes, janelas, coberturas. Vejo os meus antepassados, ou os seus antepassados, com a sensação única de que eram únicos, vivendo na vertigem do tempo, cultivando projetos, lamentando o que fizeram ou não fizeram. Vejo-me a mim, vejo você, alentado ou deprimido com as forças das pequenas coisas, como alentados ou deprimidos serão os homens que ainda não chegaram para habitar a mesma sala, para a destruir, para a reconstruir, para a destruir de novo. (...) Em 2025, do ponto de vista da eternidade, continuaremos a mesma espécie mesquinha, calorosa, raivosa, sonhadora, amedrontada ou corajosa. Vamos amar, ferir quem amamos, acalentar sonhos, destruir sonhos. Tudo vai mudar, nada vai mudar. O novo ano é o velho ano que será igual a todos os novos anos.”

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Sim, o poeta tinha razão: ou amamos ou morremos
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“Baltazar Lemos, 60, natural de Curitiba, decidiu morrer. Explico melhor. Ele, um cerimonialista de luto com certa experiência em preparar e testemunhar o funeral dos outros, decidiu organizar um funeral só para ele. Fingiu doença, fingiu morte, fingiu velório — tudo publicitado pelas redes sociais, claro — e esperou para ver quem aparecia. (...) Vieram amigos. Vieram familiares. E até veio o próprio Baltazar, para agradecer aos presentes. Não sei se saltou do caixão para causar maior impacto, mas quero muito acreditar que sim. Os presentes não gostaram da brincadeira. Consta até que houve insultos e agressões físicas dentro da capela. Creio que a família cortou relações com ele. (...) Li tudo isso na imprensa. É bom demais para ser verdade. Mas, acreditando na história, posso enviar um abraço fraterno ao nosso Baltazar? Também eu, pobre homem, tenho essa curiosidade mórbida desde a mais tenra idade. Quantos serão, afinal, prestando suas homenagens? E quantos vão contar piadas, soltar risinhos cínicos, fazer comentários impróprios sobre minha aparência amarelada?”

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Países mais ricos e livres da Europa são monarquias constitucionais
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PS: Só selecionei o item 2 da crônica e cortei o outro

“Honestamente, sempre soube separar as águas e não exijo que um grande criador seja um modelo de santidade. Nem sequer um cidadão decente. Para essas matérias, há a polícia e os tribunais. Se assim não fosse, os livros que amo, e os filmes, e os quadros, e os discos, tudo isso seria enviado para a fogueira. Como lembrava o inestimável Millôr Fernandes, ‘como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem’. (...) A vida de um criador só me interessa se ela ajudar na compreensão da obra.”

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Perdoo artistas que são monstros, mas não monstros artísticos
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“(...) que diriam essas leitoras se eu, seguindo o raciocínio delas, argumentasse que não é possível ler os romances de Doris Lessing ou escutar as canções de Joni Mitchell depois de sabermos que a primeira abandonou os dois filhos na África para seguir uma carreira literária em Londres e a segunda entregou a filha para adoção? Será que essas condutas privadas, apesar de não terem a mesma gravidade dos crimes imputados a certos machos, também ‘mancham’ suas obras? Ou a conta do patriarcado aguenta tudo — e os abandonos de Lessing e Mitchell são até heroicos? (...) Repito minha posição de princípio: continuo assistindo, de sorriso no rosto, os filmes de Polanski ou de Woody Allen; leio, de alma leve, os livros de Doris Lessing; e nunca me passaria pela cabeça deixar de escutar os discos de Joni Mitchell. Deve haver algum distúrbio neuronal em mim para que a obra, e só a obra, seja objeto da minha atenção. (...) a experiência estética é sempre uma experiência relativa e, agora que penso nisso, não sou um exemplo de imperturbabilidade artística. Leni Riefenstahl, a diretora de cinema do Terceiro Reich, é aclamada por seu talento formal? Sou incapaz de o apreciar: a mensagem, de tão odiosa, contamina tudo. Uma contradição? (...) Não creio. Se Polanski filmasse apologias da violação, por mais belas que fossem, minha repulsa seria igual. Eis, talvez, a chave da minha arte poética: perdoo artistas que são monstros, mas não monstros artísticos.”

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Em 2523, esses cinco hábitos vão horrorizar nossos descendentes
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“Somos cegos para o óbvio. Não interessa se somos cultos, informados, cosmopolitas. A cegueira é permanente. Como lembrava George Orwell, não há nada mais difícil do que ver o que está mesmo na frente do nosso nariz. (...) o que dirão os nossos descendentes, daqui a 500 anos, sobre coisas óbvias, até normais, que não provocam hoje grande sobressalto. (...) existe sempre o ‘preconceito progressista’ de acreditar que a humanidade só tem um caminho: melhorar. Não compro essa fantasia. Prefiro a visão cética de um outro compatriota meu, o poeta Teixeira de Pascoaes, para quem o bem e o mal evoluem ao mesmo tempo, como se ambos fossem a sombra um do outro. O século 20 dobrou a esperança média de vida. O século 20 produziu o Gulag. (...) suspeito que esses cinco hábitos serão lidos em 2523 com um arrepio de horror: 1) Comer animais. (...) 2) O estigma da loucura. (...) 3) Dirigir automóveis. (...) 4) Sexo reprodutivo. (...) 5) Workaholics. (...) Nossos filhos vão perguntar como foi possível termos abolido a escravidão para nos tornarmos escravos de nós próprios.”

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Um dia um robô jogará melhor que Pelé, mas não será Pelé
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“(...) como garantir que um avanço tecnológico será, por definição, um avanço moral? Os trans-humanistas partem sempre do pressuposto de que os homens-máquina exibirão as nossas virtudes em grau superior. Mas nunca admitem que os nossos vícios podem conhecer igual upgrade. (...) o que para os trans-humanistas são males intoleráveis (a morte, por exemplo) pode representar, pelo contrário, qualidades importantes de uma existência feliz. Sem a sombra do fim, será que existiria alguma urgência para viajar, criar, amar, procriar, experimentar? Duvido. Como lembrava o filósofo Bernard Williams, o tempo infinito traz um tédio infinito. Já imaginou passar os dias na praia, bebendo um chope para sempre com um amigo de lata? (...) que graça tem resolver um problema matemático, escrever um romance ou bater um recorde olímpico porque alguém implantou em nós um chip caprichado? Não é o resultado que nos interessa; é o processo que conduz ao resultado, aquilo que Aristóteles designava por ‘florescimento’.”

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É evidente que Rocky Balboa nasceu e morreu na Filadélfia
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“O táxi avançou pelas ruas e, ao longe, como uma grande visão do paraíso, lá estava o museu. Mas não era o recheio que me interessava. Não eram os quadros pintados por Cézanne, Rodin e Pollock. Era aquela escadaria exterior, que nos meus sonhos era imponente, imensa, interminável e que eu queria subir, correndo, dois degraus de cada vez, ou três, até chegar no cimo e, com a cidade aos meus pés, levantar os braços como o lutador Rocky Balboa. (...) O sucesso foi imediato, mas acabou sendo também uma maldição. É o próprio quem o confessa, com um humor inteligente e melancólico: a privacidade evaporou-se, a família ficou esquecida, outros filmes vieram e foram sem deixar rastro, artisticamente falando. E a vida tornou-se uma busca desesperada por aquele primeiro momento, único e irrepetível, porque única e irrepetível era a fome que o movera. Uma fome tão imensa que criação e criatura passaram a habitar o mesmo mundo. O nosso mundo. Rocky Balboa nasceu e morreu na Filadélfia, tão certo quanto dois mais dois é igual a quatro.”

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O turismo horroriza os pedantes, mas é o único petróleo por estas bandas
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“Sou filho de professores. Setembro era o mês de todos os recomeços. Eu voltava para a escola, eles também, e o meu pai dizia que nunca se envelhece realmente quando somos professores. ‘O tempo passa’, explicava ele, ‘mas em setembro todos os alunos voltam a ter a mesma idade’. Ser professor era partilhar dessa eternidade. (...) O meu pai já cá não está, mas é nele que penso, todos os anos, quando entro na sala e encontro novos rostos com os mesmos 18 anos. Embora alguns deles me pareçam familiares. ‘A sua cara não me é estranha’, digo então, surpreso e intrigado. (...) O aluno sorri e responde: ‘O senhor foi professor do meu pai’. (...) Bye-bye, eternidade.”

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Diário da Europa: Veneza é mais importante que seu rosto sorrindo para a foto
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PS: Só selecionei o primeiro trecho e cortei os demais

“(...) o amor de nós próprios tem implicações políticas sérias. Lutar pela democracia, pela decência, pela dignidade implica um movimento exógeno. Implica sairmos de nós próprios para lidarmos com o mundo hostil que existe lá fora. A incapacidade de o fazermos é um brinde para déspotas de todo tipo, que contam sempre com a nossa autoindulgência para devorarem o que resta da liberdade. (...) ‘No combate entre você e o mundo, apoie o mundo’, escreveu Kafka num dos seus aforismos. Tradução possível: o mundo é mais importante que as fantasias do seu ego.”

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Apesar de lidar com Holocausto, filme é sinistro pela ausência de drama visível
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“Quando lemos memórias ou testemunhos dos filhos de nazis ilustres, um traço é comum: os pais eram pessoas encantadoras. Gentis. Disponíveis. Afetuosas. Divertidas. E o trabalho, se a palavra ‘trabalho’ tem sentido, raramente entrava nas conversas. As crianças só sabiam que o pai tinha uma posição importante no Reich e que a mãe era o suporte emocional do seu marido, como boa dona de casa ariana. Claro que, a certa altura, o mundo colapsa. E a pergunta da descendência ecoa para o resto das suas vidas: como era possível serem um encanto em privado e monstros em público? (...) Sempre assim foi: o mal é uma questão de hábito. (...) Jonathan Glazer, com “Zone of Interest”, vai ainda mais longe, filmando apenas a banalidade dos carrascos ou dos cúmplices, indiferentes ao horror que existia dentro dos campos. E quando Glazer se aventura para o interior desse território proibido, é apenas para reforçar a impossibilidade de filmar o que aconteceu 80 anos atrás. Tudo o que vemos é o atual museu de Auschwitz e o trabalho das suas funcionárias, aspirando o chão e limpando as vitrines onde se acumulam os despojos das vítimas — sapatos, malas etc. — antes de os turistas chegarem. (...) É uma poderosa metáfora: por mais fértil que seja a imaginação humana, em Auschwitz só entramos como turistas.”

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Salman Rushdie mostra que inveja dos fanáticos é mais forte que suas crenças
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“‘Os homens tendem a ter as crenças que se adequam às suas paixões’, escreve Rushdie, citando Bertrand Russell. ‘Os homens cruéis acreditam num Deus cruel e usam essa crença para desculpar a sua crueldade. Só os homens bondosos acreditam num Deus bondoso e seriam bondosos em qualquer caso.’ (...) O criminoso é irrelevante, conclui o autor. O criminoso é ninguém. Perdoá-lo ou não, odiá-lo ou não, entender seus motivos ou não — tudo isso é conferir ao inominado (nunca lemos o nome do criminoso no livro) uma dignidade, ou uma atenção, que ele não merece. O que resta, então? Para Rushdie, continuar. A verdadeira vitória é poder continuar amando, escrevendo, vivendo, mesmo que a felicidade possível exiba as cicatrizes de um passado que não se esquece. Continuar, em suma, é responder à violência com a arte — e talvez seja isso que perturbe tanto os fanáticos: a incapacidade para saírem do mundo estreito e violento em que vivem, transfigurando seus medos e fracassos em algo de belo e duradouro. (...) A inveja dos fanáticos é mais forte que suas crenças ou sentimentos.”

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Não estou nem aí
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“(...) Por experiência própria, confirmo que quanto mais rudimentar é uma pessoa, mais histérica ela se torna na defesa da sua sucata mental. Onde existe verdadeiro conhecimento — e o conhecimento contém sempre algo de aberto e provisório — não há motivo para alarme só porque uma mosca caiu na sopa. (...) O dogmático é aquele que declara guerra às moscas. O diferente é o ateu — para o crente. É o crente — para o ateu. É o progressista — para o reacionário. É o reacionário — para o progressista. Ironicamente, e apesar de se odiarem em público, um não consegue viver sem o outro. Um não existe sem o outro. (...) Mas o indiferente é bem pior. Como é possível que exista alguém que boceja quando eu estou disposto a dar a minha vida por uma certeza? Como tolerar esse desrespeito pela minha vaidade? O indiferente termina a conversa antes mesmo de ela começar. O indiferente não dá troco. O indiferente não pode ser refutado, como Pascal percebeu ao escrever sobre o cético — e perigoso — Montaigne. A expressão brasileira ‘não estou nem aí’ capta na perfeição essa ausência ofensiva. (...) Se eu não pertenço a uma patrulha, nem estou interessado nas utopias coletivas que elas defendem, que caminho me resta? Resposta do autor: o caminho da solidão rural, do anonimato urbano ou do exílio voluntário, como sucedeu a incontáveis indiferentes.”

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Sinto desconforto físico quando alguém me pretende converter
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“(...) Não interessa se falamos de religião, política ou ‘lifestyle’. Sinto um desconforto físico quando um benemérito entra na minha vida, na nossa cabeça e nos nossos hábitos sem ter sido convidado ou procurado. E, ultrapassando os limites, impinge a sua mercadoria. (...) As sociedades contemporâneas estão dominadas por esses beneméritos. Governos, especialistas, ideólogos ou cartomantes que determinam como devemos viver, trabalhar, morrer. O que devemos pensar, condenar, dizer, censurar. E comer, e beber, e sonhar. Nosso mundo sofre de ‘incontinência judicativa’, como dizia o filósofo português Paulo Tunhas, que contava uma história a respeito. Um dia, um mendigo pediu-lhe um cigarro. Paulo acedeu. O mendigo, saboreando o fumo, sentenciou: ‘O senhor não deveria fumar. Faz mal à saúde’. (...) A conversão é o contrário de uma conversação, escreve Adam Phillips. Conversando damos ao outro a liberdade. A vontade de o converter é uma vontade de domínio — e, como no filme, de destruição. Durante a Guerra Civil Norte-Americana, ao definir o seu conceito de democracia, Abraham Lincoln escreveu: ‘Tal como não quero ser escravo, também não quero ser senhor de escravos’.”

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Tudo compreender não é tudo perdoar
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“(...) o tipo de relativismo que parte da diversidade para afirmar, destemido e orgulhoso, que não existem valores morais universais. Nós fazemos as coisas à nossa maneira. Os outros fazem as coisas à maneira deles — e não existe forma objetiva de verificar quem tem razão. (...) Fato: nós podemos condenar uma sociedade que lapida mulheres adúlteras ou corta os membros superiores de quem rouba. Mas até a condenação será relativa: a única coisa que podemos afirmar é que nós, aqui no nosso canto, não fazemos as coisas dessa forma. Para nós, lapidar mulheres ou decepar ladrões é errado. Mas, no fundo, não temos o direito de impor nossos valores (imperialistas, racistas, paternalistas?) a outras culturas. Mas será mesmo assim? Ou existem certos valores que têm validade universal quando está em causa a essencial dignidade dos seres humanos? (...) tudo compreender não é tudo perdoar, ao contrário do que defendem os relativistas. Sim (...) sou capaz de compreender como foi possível a escravidão ou o Holocausto. Sou capaz de entender como certos valores — o racismo, o antissemitismo, o eugenismo — podem produzir certos resultados. Mas nada disso desculpa moralmente essas sociedades. (...) O que é válido para o Ocidente é válido para qualquer continente, país, região ou lugarejo onde existam seres humanos submetidos à violência e ao abuso. Exceto se partirmos do pressuposto de que nem todos os seres humanos são iguais. Ironicamente, acreditar nessa falácia é repetir os velhos vícios que sempre justificaram a opressão dos mais fracos.”

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Piadas de mau gosto
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“No fim das contas, é a frustração que habita o coração dos tiranos. Embriagados pelo poder, rodeados de lisonjas e mentiras, eles temem e invejam o talento dos criadores livres. E sabem, inconscientemente que seja, que não será a história a julgá-los; serão os risos da plateia quando seus cadáveres forem expostos sem máscaras.”

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Maledicência e força bruta numa pequena comunidade
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“(...) cenários naturais, idílicos, intocados pela mão humana, que normalmente têm o condão de me enfadar de morte. Aguento o campo durante um dia, talvez dois. Ao terceiro, olhando para a paisagem, faço minhas as palavras de Benchley e murmuro: ‘Se essas montanhas falassem, muito nos aborreceriam.’ (...) Sou um homem de cidades. Não as idealizo. Conheço a solidão, a angústia, os mil vexames da vida urbana. Mas também conheço aquilo que só a cidade permite: o anonimato, a individualidade, o encanto do fortuito. E a possibilidade de nos reinventarmos uma vez, duas, dez, sem o olhar intrusivo da pequena comunidade.”

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Para a escritora Dara Horn, as pessoas só gostam de judeus mortos
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“(...) a hipótese de Dara Horn — as pessoas só gostam de judeus mortos e bondosos — também conhece suas exceções. Os judeus podem estar vivos, desde que sejam gênios, admite ela. Que o diga o jornalista Varian Fry, que em 1940 e 1941 partiu para Marselha com o fino propósito de salvar a ‘civilização europeia'. Como? Ajudando na fuga de centenas de escritores, artistas ou cientistas perseguidos pelos nazistas. De Hanna Arendt a Marcel Duchamp, de Max Ernst a Claude Lévi-Strauss, de André Breton a Marc Chagall, a lista é longa. Mas não será também uma forma elitista de eugenia intelectual? Salvemos os gênios, deixemos os outros para trás? A pergunta acabaria por perseguir Varian Fry até o fim dos seus dias. (...) a Europa volta a mergulhar no ódio antissemita com uma fúria assustadora: estrelas de Davi pichadas nos prédios, ataques a lojas, agressões a judeus na rua, uma mulher esfaqueada em Lyon e a suástica pintada na porta de sua casa. Dizem que o motivo é a guerra em curso entre Israel e o Hamas. Motivo ou pretexto? Obviamente, pretexto: o antissemitismo começou logo a borbulhar com as primeiras notícias dos massacres... em Israel. (...) Os ataques em curso não são contra ‘sionistas’, votantes de Netanyahu, fanáticos religiosos que apoiam os assentamentos ilegais ou genocidas antipalestinos. São ataques contra judeus só pelo fato de serem judeus.”

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Milhões de pequenos ditadores querem que o mundo os espelhe
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“O caminho para a tirania começa assim: pela elevação do subjetivismo a arma de arremesso contra aqueles de que não gostamos. Esse subjetivismo é comum nos ditadores, que prendem, torturam e matam os seus inimigos, reais ou imaginários. Hoje, o subjetivismo pode ser exercido por milhares, milhões de pequenos ditadores que, em nome dos seus ‘sentimentos’, querem que o mundo seja um espelho fiel deles próprios. (...) O problema desse pensamento totalitário é que os ‘sentimentos’ são, por definição, voláteis. O que para mim é um insulto, para outro é uma piada. O que para mim é uma piada, para outro é uma tortura psicológica irreparável. O clima de litigância permanente que a nova lei inaugura, com metade do país querendo calar a outra metade, é a imagem mais próxima do inferno. Ou do manicômio. (...) Um país que promove a espionagem cívica e a delação virtuosa já não é uma democracia liberal; é um covil de ratazanas onde a franqueza e a confiança foram reduzidas a pó. (...) os autores da lei padecem de uma alucinação comum aos fanáticos do nosso tempo: a crença de que a história lhes pertence. E que serão eles, sempre e sempre, a definir os temas proibidos. Mas a história é volúvel e nada garante que a lei que eles usam contra os ‘inimigos’ do momento não será um dia usada contra eles.”

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“Mug shot” de Trump é um simulacro de ficção
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“(...) o que ele escreve sobre a televisão é mil vezes amplificado pelo mundo virtual, onde tudo é abreviado e caricaturado até à insanidade. Antigamente, a pergunta ‘você precisa que eu faça um desenho?’ era um insulto, uma forma de tachar o outro de imbecil por não compreender certas ideias ou conceitos. Hoje, fazer desenhos é uma obrigação e, em certos casos, a coisa mais sofisticada de que somos capazes. Uma imagem vale por mil palavras? Então um ‘meme’ vale por uma biblioteca inteira de história ou de filosofia. Se esse ‘meme’ refletir, ou evocar, as convenções do drama que a TV e o cinema popularizaram, melhor ainda: há um efeito de reconhecimento que faz as delícias das plateias. (...) Donald Trump é um mestre nesse jogo e o roteiro do filme já está sendo escrito: um homem perseguido pelo sistema, ameaçado com a cadeia, mas capaz de uma última luta para vencer seus inimigos. (...) são vistas como um filme, ainda que inconscientemente, por seus apoiantes e adversários. Os primeiros querem ver a continuação da saga porque não há nada mais excitante que uma vingança. Os segundos também, para sentirem o frêmito de verem o vilão derrotado no final. Ambos são incapazes de ver naquela imagem o que ela simplesmente é: um simulacro de ficção, uma paródia, uma caricatura de uma caricatura de uma caricatura.”

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Não será o beijo uma submissão aos caprichos das classes opressoras?
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“(...) são as elites, com mais tempo para os amassos, que acharam boa ideia juntar lábios com lábios e línguas com línguas. (...) Virou moda e, como normalmente acontece durante os processos civilizadores — obrigado, Norbert Elias —, espalhou-se pelo resto do pessoal. (...) Em sociedades mais igualitárias, como os maasai ou os hadza da região subsaariana, beijar é prática incomum. Pode ser até estranho ou repulsivo, já que a boca também serve para preparar o alimento que será dado às crianças. (...) Vivemos tempos de guerrilha ideológica (...) um repúdio pelas práticas e pelos valores de nossos antepassados, em especial quando tais práticas e valores foram impostos pelas elites. Nada escapa às guilhotinas: o conhecimento racional, as obras de arte, a própria linguagem usada no cotidiano. Uma hipótese aterradora: não será o beijo (...) uma submissão aos caprichos das classes opressoras? E, se assim for, não seria aconselhável abandonar o beijo e encontrar formas mais autênticas de expressar sentimentos? (...) Exemplos não faltam. Os esquimós esfregam os narizes. Já os maoris esfregam seus narizes e suas testas. Na Polinésia, há tapinhas na barriga do outro. Em certas regiões africanas, são as próprias barrigas que se tocam. E depois temos os casos da Papua Nova Guiné (...) em que é sinal de respeito beijar o mamilo da mulher do chefe. Também é possível apertar o pênis de um nativo — ou, então, depositar o nosso próprio órgão genital na mão dele, como uma prova de confiança. (...) Qualquer dessas opções poderia substituir o beijo do imperialismo eurocêntrico em homenagem à riqueza antropológica de povos tachados de ‘periféricos’ ou ‘primitivos’.”

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Aeroportos no Natal fazem lembrar lutas de galos ou zonas de desastre
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“Os aeroportos no Natal lembram zonas de desastre, com os refugiados dormindo no chão, nos bancos, sobre as mesas. Esses são os refugiados com sorte. Os azarados têm dois quilômetros até ao portão de embarque. E dez minutos para o fazer. Inicia-se uma corrida em que estamos dispostos a tudo: atropelar mulheres e crianças, espancar turistas relaxados que caminham pela esquerda, gritar com velhinhos e cadeirantes. Nesses momentos, entendemos como genocídios acontecem na história. (...) Mas é Natal. O voo está atrasado. Lavado em suor e com duas vértebras deslocadas, ainda tenho uma réstia de lucidez para uma pergunta filosófica: se o voo está atrasado, como explicar a fila para entrar no avião inexistente? (...) O avião aterra. A aeromoça anuncia: ‘Por favor, fiquem nos vossos assentos e mantenham os cintos de segurança afivelados enquanto o sinal estiver aceso.’ Obediente, o pessoal solta o cinto e se levanta. Abrem-se os compartimentos de bagagem por cima dos assentos e há maletas, malinhas, mochilas que caem sobre várias cabeças. Uma delas, por coincidência, a minha.”

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Ser um “gentleman” não é questão estética, mas chamamento ético
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“(...) No fim das contas, e como ele confessa no momento mais importante do filme, a sua ambição sempre foi ser um ‘gentleman’. E por ‘gentleman’ entenda-se: cultivar a atitude certa, usar a indumentária certa. Usar a armadura certa, em suma, para se proteger da vida como ela é. (...) Só a morte, a proximidade da morte, ensinará ao sr. Williams que existe um outro sentido para a palavra ‘gentleman’: é ser capaz de fazer o que está certo, o que é decente, o que é humano, sobretudo quando todos os outros se mostram incapazes da tarefa, perdidos no mesmo labirinto de aparência e afetação. Pela primeira vez na vida, o sr. Williams entende que ser um ‘gentleman’ não é uma questão estética; é um chamamento ético, uma forma de liberdade interior. A felicidade, mesmo na morte, só é possível assim.”

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Nunca nos sentimos tão desenvolvidos e, ao mesmo tempo, tão vulneráveis
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“(...) cada época histórica transporta sempre o melhor dos tempos e o pior dos tempos (...) A Antiguidade deu-nos a filosofia grega e a legalidade romana; além da escravidão e dos inocentes jogados às feras. O Renascimento deu-nos Leonardo e Michelangelo; mas também as guerras religiosas e a Inquisição Espanhola. Até a Idade Média participa dessa ambiguidade. O crescimento demográfico e a peste negra, as primeiras universidades e as cruzadas — tudo conviveu no mesmo tempo e, às vezes, no mesmo espaço. O agricultor da Idade Média desconhecia os rótulos com que os vindouros acabariam por classificar a sua época. Mas uma coisa é certa: os medos desse agricultor são os nossos porque tudo muda, exceto a natureza humana. (...) Os medievais tinham medo da sua impotência perante uma natureza que não controlavam. Nós também temos. Os medievais tinham medo do outro, do estrangeiro, do desconhecido — e razões não faltavam. Dos vikings aos povos godos, sem esquecer os sarracenos, o outro podia não ser uma visita amigável. Os temores com as migrações, que têm levado a extrema-direita ao poder na Europa, também transportam essa memória histórica. Os medievais tinham medo da doença, sobretudo das epidemias sazonais que dizimavam povoações inteiras. Nós? Nunca fomos tão hipocondríacos.”

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Hipócritas gentis infantilizam minorias porque elas são um bom negócio
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“As editoras, devidamente chefiadas por brancos, não admitem que um negro escreva livros sem os clichês do gueto. Querem linguagem chula, querem crack, querem rappers. Querem pobreza, querem polícia, querem mortes. Como diz o agente porto-riquenho, ‘querem se sentir absolvidos’. (...) Ellison despreza esse fascínio mórbido dos brancos. É uma nova forma de exploração que persiste em reduzir os negros a uma caricatura tão insultuosa como as caricaturas dos tempos das leis de Jim Crow. ‘Eu nem acredito em raça’, diz ele. ‘O problema é que todos acreditam’, responde o agente. Thelonious medita nessas últimas palavras. E, só por piada, escreve o tipo de livro que faz sucesso entre os ‘racistas do bem’. Sob pseudônimo, claro, porque o homem tem uma reputação a preservar. Bingo! Uma grande editora faz uma proposta milionária para comprar os direitos. A piada virou coisa séria. O que fazer? (...) O agente, numa das melhores sequências do filme, põe três garrafas de uísque Johnnie Walker sobre a mesa. E explica: existe Johnnie Walker Red, Johnnie Walker Black e Johnnie Walker Blue. Ele, Thelonious, será sempre um Johnnie Walker Blue, o melhor, o mais caro. Mas as massas, para matarem a sede, compram Johnnie Walker Red, mais barato. Que mal tem ser um Johnnie Walker Red de vez em quando? (...) O livro é publicado com o belíssimo título de ‘Fuck’. Bestseller imediato. Hollywood vem a seguir.”

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A sutil arte de matar o próximo
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“(...) Na década de 1980, a fome na África, sobretudo na Etiópia, levou figuras como Bob Geldof ou Harry Belafonte a mobilizarem esforços homéricos para salvarem os famintos. Canções foram gravadas. Concertos foram organizados. Milhões de dólares foram enviados para o continente. Mas fenômenos como a Band Aid ou a USA for Africa nunca perderam o seu tempo para questionar as origens políticas da fome que combatiam. (...) No caso da Etiópia, a catástrofe humanitária era, em grande medida, responsabilidade do regime de Mengistu Haile Mariam e da guerra civil em que ele mergulhou o país. Se juntarmos à guerra a coletivização forçada da agricultura promovida por Mengistu, com o deslocamento forçado de meio milhão de pessoas — uma estimativa conservadora —, entenderemos melhor as imagens obscenas das crianças esqueléticas que horrorizaram o Ocidente. (...) Os milhões de dólares teriam aliviado as condições infernais de muitas delas. Mas persiste hoje — nos trabalhos notáveis de Dambisa Moyo e de David Rieff — a acusação de que esse dinheiro, nem sempre usado para fins humanitários, serviu sobretudo para prolongar a guerra e, por consequência, a fome. (...) Qual a moral da história? Os bons sentimentos, às vezes, redundam em péssima política.”

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O jogo democrático
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“(...) preferem oferecer defesa da democracia que valoriza, precisamente, os méritos da decisão coletiva. Para começar, os preconceitos que se atribuem às massas também são partilhados pelos ‘especialistas’, defendem os autores. Se assim não fosse, as nossas sociedades não estariam no estado em que estão. Por outro lado, estudos empíricos permitem concluir outra coisa: as massas podem não ser capazes de chegar, por geração espontânea, às decisões mais luminosas. Mas são capazes de identificar as más soluções, desde que exista espaço para um debate informado e livre. A democracia ainda é a pior forma de governo, excetuando todas as demais. (...) o principal mérito da democracia não está na sabedoria dos democratas, que sempre presumi que fosse pequena. O mérito da democracia está no fato de permitir a gestão dos descontentamentos sociais sem derramamento de sangue. A ideia foi popularizada por Karl Popper e eu assino embaixo: pode não ser a forma mais poética de defender a democracia, mas é talvez a mais realista. E, já agora, a mais amparada pela história. (...) Os resultados da eleição nem sempre são os mais desejáveis. Mas a pergunta que importa é saber qual seria a alternativa. Excluir metade do povo que não pensa como você? Entregar as rédeas da charrete para os entendidos? Parabéns. Você conseguiu a receita imbatível para o caminho de uma guerra civil.”

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A democracia só sobrevive num país de democratas
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“É uma velha e difícil questão: como é que uma democracia se defende de partidos ou candidatos antidemocráticos? Permitindo que eles existam e possam vociferar as suas mensagens? Ou banindo esses dois espécimes para que o sistema não seja alvo dos seus ataques — e, no limite, destruído por dentro? (...) não me repugna que uma sociedade estabeleça, na sua lei fundamental, os valores que defende e dos quais não abdica. Se, por exemplo, a constituição proíbe discursos que incitam ao ódio racial, caberá depois aos tribunais superiores proibir partidos ou candidatos que praticam esse esporte. Coisa diferente é haver um comitê de sábios que decide, de forma casuística, quem pode ou não participar no jogo. (...) a democracia só sobrevive num país de democratas. No limite, é indiferente saber se as leis ou as instituições são robustas e decentes. A questão é pré-política e lida com a educação de um povo para as virtudes democráticas. Se a maioria não possui essas virtudes, desprezando a liberdade, o pluralismo, o compromisso e a civilidade, a manutenção da democracia será tão improvável como a manutenção de uma ditadura onde a maioria as tem em excesso.”

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Oposição venezuelana luta também contra Putin, Erdogan, Xi...
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“(...) a ideologia ainda serve de verniz para justificar a ‘multipolaridade’ do mundo pós-Guerra Fria. Mas, raspando esse verniz, a principal preocupação dos líderes do conglomerado é afastar dos seus rebanhos qualquer tentação democrática. Você sabe: aquelas ideias perigosas como ‘transparência’, ‘direitos humanos’, ‘separação de Poderes’, ‘liberdade de expressão’, ‘multipartidarismo’ e outras fantasias que só atrapalham o abuso e a pilhagem. (...) É isso que explica o arco-íris de regimes que fazem parte da multinacional autocrática. Tem para todos os gostos: comunistas, capitalistas, nacionalistas, monárquicos, teocratas. O negócio é mais importante que as filosofias. E, naturalmente, há falsos democratas também, que ajudam a compor o quadro nas lavanderias do Ocidente. São aqueles que ‘não fazem perguntas’, escreve Applebaum, com ironia. (...) São os banqueiros ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que cai em certas contas. São os agentes imobiliários ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que compra propriedades em Londres ou na Riviera Francesa. São os empresários ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que compra as suas empresas. São os clubes de futebol ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que traz jogadores a preços estratosféricos para alegria das torcidas. E são os governos ocidentais, claro, que colocam nas mãos da China ou da Rússia a sua segurança energética ou tecnológica.”

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Eis o paradoxo: a cabeça de um conspiracionista só acredita no inacreditável
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“(...) perversamente, gosto de alimentar a paranoia deles (são sempre ‘eles’; as mulheres, mais inteligentes, não costumam figurar nessa comédia). Falo de guerras, crises econômicas, dramas políticos domésticos. Uso fatos, evidências, registros históricos. Para tudo isso, os meus conspiracionistas têm uma explicação original, deliciosamente imbecil e absolutamente sigilosa: ninguém pode saber o que só eles sabem (caso contrário, os enfermeiros podem chegar a qualquer momento, imagino). (...) Se, pelo contrário, eu próprio fabrico uma conspiração (minha última investida foi tentar convencer um familiar que a roupa interior que importamos da China contém químicos que tornam inférteis os ocidentais), o conspiracionista medita um pouco e recebe de braços abertos essa pérola de informação. No fundo, é isso que alimenta o ego do conspiracionista: o sentimento poderoso de que pertence a uma elite iluminada que não se confunde com as inteligências rasas de quem habita o planeta Terra.”

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Prometeu agrilhoado
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“Decolamos. O choro começou. (...) Em pânico, fui ao bolso do blazer para resgatar os fones. Primeiro choque: foram para o porão, junto com a mala. Segundo choque: ainda só tinham passado dez minutos. (...) Suor. O início promissor de uma dor de cabeça. Felizmente, havia álcool. Bebi. Pedi para repetir. Repeti. Mas o choro, que agora era mais cavo, mais gutural, pairava sobre a cabine. (...) Olhei para trás. Tentei, por todos os ângulos, vislumbrar os responsáveis pelo pandemônio. Sem sucesso. Uma floresta de cabeças indistintas. (...) Levantei-me. Fui em direção ao banheiro e, passando pelos assentos do meu desassossego, encontrei uma jovem mãe, beirando os 30, com uma expressão desesperada, mas compassiva. Nos seus braços, não havia nenhum bebê: apenas uma criança de oito ou nove anos, um menino, contorcendo-se como um animal ferido, o olhar contemplando o vazio do teto, soltando bramidos de terror e incompreensão. (...) Era ele quem estava acorrentado a um pesadelo interminável. O pesadelo da sua enfermidade. A mãe, tentando segurar-lhe os braços, mantinha a boca encostada ao seu ouvido, repetindo palavras vãs e exaustas.”

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As histórias de Paris e da cegonha já não funcionam faz tempo
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“Meu filho quis saber como se fazem bebês. Tem 9 anos. As histórias de Paris e da cegonha já não funcionam faz tempo. Nunca funcionaram, razão pela qual optei sensatamente pela verdade: homens e mulheres apaixonam-se, dão muitos beijos, seus corpos produzem muito calor — e o bebê cresce na barriga da mãe. (...) Esta explicação térmica aguentou alguns anos, mas também gerou angústias: se ele beijasse uma menina na escola e sentisse calor no processo, eu seria avô? Tranquilizei-o. ‘É preciso mais que calor’, acrescentei, na esperança de encerrar o assunto. ‘Mas o que?’, insistiu ele. (...) Ficamos ambos em silêncio, contemplando o par amoroso, e eu vejo alguns cabelos meus em queda suave à frente dos meus olhos. (...) ‘Era o que eu pensava’, respondeu ele, como se tivesse confirmado uma hipótese que o fascinava há algum tempo. E depois, com a mesma leveza de espírito com que leu a revelação sagrada, saiu correndo para o pátio onde o esperava uma brincadeira qualquer.”

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Já fico contente se aquilo que não me matar me ensinar algo
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“(...) Que tipo de pessoa eu seria se nada de ruim me tivesse acontecido na vida? Seria o mesmo sem as minhas desilusões, meus fracassos, minhas doenças e meus mortos? (...) Uma pessoa a quem nada de ruim tivesse acontecido seria, basicamente, uma pessoa a quem nada de bom teria acontecido. Ela estaria privada dos instrumentos emocionais para avaliar o seu estado, a sua história, a sua identidade. Mas as infelicidades da vida não são apenas importantes para que possamos reconhecer e valorizar as eventuais felicidades. Elas servem também como lição e aviso para não as repetirmos como se fosse sempre a primeira vez. (...) Haverá pensamento mais lúgubre do que imaginar alguém que repete sempre o mesmo erro porque incapaz de se lembrar dos erros cometidos antes e de aprender com eles? Não se trata aqui de evocar o conhecido clichê de Nietzsche de que aquilo que não nos mata acaba por nos tornar mais fortes. Sou mais modesto. Já fico contente se aquilo que não me matar me ensinar alguma coisa.”

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Mundo dominado por radicais pelados seria retorno à pré-história
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“(...) é só uma questão de tempo até alguém sugerir que o próprio algodão deveria ser banido de vez. Como tolerar uma fibra que, desde o antigo Egito, está invariavelmente marcada pela servidão? Aliás, é difícil encontrar uma peça de roupa que não transporte a marca de um crime qualquer, sobretudo contra animais. Não será a nudez total a única forma de nos redimirmos de vez? (...) flertando com minha cápsula de cianeto, imagino um mundo dominado por radicais. De um lado, gente pelada e grunhindo, para não ofender sensibilidades. Do outro, gente incapaz de conceber uma forma alternativa de cozinhar que não passe por um belo fogo. (...) Agora que penso nisso, esse mundo cavernícola não seria tão original assim: basta recuar uns 50 mil anos e encontrar nossos antepassados na escala da evolução. (...) O futuro da história é a pré-história.”

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A pessoa que me convidou esperava que trabalhasse 92 horas para ela
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“(...) Com 18 anos pela frente e, descontando sono e trabalho, isso dá uma média de 11,7 horas livres por dia. Ou, fora refeições, umas dez horas. Se você dividir essas dez horas pelas paixões mundanas — livros, filmes, amigos, família, vagabundagem diversa — sobram duas horas para cada universo, ou 730 horas por ano. (...) Eis o ponto: para eu trabalhar 92 horas gratuitamente, terei de roubar esse tempo aos meus livros, aos meus filmes, aos meus amigos, à minha família, aos meus vícios. Por que motivo eu faria isso? (...) Ficando apenas nos livros: (...) a pessoa me está pedindo que, a troco de nada, eu prescinda de 20 livros por causa dela, qualquer coisa como 5.000 páginas, mantendo uma média de 250 páginas por livro. (...) Quando recebo convites insultuosos, a pessoa não está só roubando meu tempo. Aos meus ouvidos, ela proclama, orgulhosa: ‘Eu sou mais importante que Santo Agostinho! Mais importante que Thomas Mann e Marcel Proust juntos!’. (...) Da próxima vez que você sentir a tentação de roubar o tempo de alguém sem oferecer uma indenização, imagine a vítima no leito derradeiro. Imagine a morte, sorridente, confessando: ‘Você ainda teria mais uns meses, mas alguém enrolou você com convites irrecusáveis’.”

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O humorista David Baddiel não acredita em Deus, mas gostaria que ele existisse
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“(...) um conselho: se tiverem um filho com medo da morte, nunca lhe digam que é como um longo sono do qual nunca se desperta. Eles estarão a criar uma pessoa insone. Foi isso que aconteceu com Baddiel (...) O resultado é que, todas as noites, a criança marchava para o leito coberta de terror. (Uma confissão: aconteceu o mesmo comigo, embora minha mãe seja considerada inocente. Eu mesmo tratei de fazer essa comparação fatal.) (...) É esse terror que explica o desejo de Deus (...) a primeira crítica do livro vai para ateus célebres — os ateus machões, escreve ele, como Christopher Hitchens, Richard Dawkins etc. — que riem desse desejo. O fato de Deus não existir, argumenta Baddiel, não significa que o desejo também não existe, que não seja real, que não seja de fato significativo. O desejo de Deus revela traços importantes da nossa humanidade — a busca de consolação, de ordem ou de sentido — que seria demais desprezar como uma mera fraqueza vinda de mentes débeis. (...) Quando os ateus machões tratam as pessoas religiosas como bebês medrosos ou ignorantes, eles se esquecem, ou pelo menos fingem desconhecer, que todos nós somos bebês medrosos ou ignorantes na aventura da existência. A grande diferença, acrescento eu, é que alguns conseguem disfarçar melhor que outros. Ou, então, procuram outras saídas para aliviar o próprio peso de sua mortalidade.”

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O mundo treme com nariz de Bradley Cooper e tapas íntimos de Napoleão
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1.
“(...) judeus e não judeus. Há quem consiga distingui-los. Os antissemitas antigos, por exemplo, falavam em narizes, barbas, cabelos ondulados, lábios grossos, às vezes uma ocasional corcunda. Os nazistas, nos seus delírios genocidas, preferiam o sangue. E até elaboraram umas leis pseudocientíficas para decidir quem era ou não era judeu. (...) Minha cegueira é total. (...) A menos que o sujeito me informe que é judeu, não há nada nele que me revele essa identidade. (...) os críticos não se decidem: por um lado, só querem judeus a representar judeus; por outro, afirmam que não há nada de distintivo nos judeus. Por um lado, voltam a racializar os seres humanos, fechando-os em pequenos guetos de pureza e impedindo qualquer contaminação por raças estranhas; por outro, não admitem qualquer racialização, que logo criticam como racista, mesmo que o nariz em causa não tivesse essa intenção.”

2.
“(...) no ano da graça de 2023, aquilo que mais impressiona na biografia de Napoleão não é a violência com que subjugou a Europa e o Oriente Médio, mas os tapas íntimos a Josefina. Moral da história? Sim, você pode ser um ditador, matar milhões em guerras imperiais de conquista, pilhar territórios e até reinstaurar a escravidão, tal como Napoleão o fez nas colônias, revertendo uma das conquistas mais solares da Revolução Francesa. Desde que, obviamente, seja um exemplo de retidão entre os lençóis.”

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Natal pode ser época de melancolia, com tantas obrigações sociais
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“(...) Se tivesse vocação para os negócios, já teria inaugurado uma clínica só para receber os infelizes do Natal. Quem são eles? Não, não são os verdadeiros infelizes — gente sem teto, sem família, sem emprego, que se acumula em tendas imundas nas calçadas da cidade. Consigo vê-los, todos os dias, quando saio e regresso a casa. E não, não são as populações massacradas pela guerra, pela violência, pela perseguição, para quem o Natal não passa de uma memória distante. Um luxo a que não se podem permitir. Os meus infelizes são os meus amigos, conhecidos, colegas, contemporâneos. Tudo gente de uma classe média fluente e afluente que, em fins de novembro, inícios de dezembro, entra em colapso com as ‘exigências’ da quadra. Quais exigências? Estar com os outros. Estar com a família. Ofertar presentes. Receber. (...) Um amigo, usualmente são, vai longe: quando o fatídico dia 25 se aproxima, ele desaparece dos radares e faz questão de manter o celular desligado. Às vezes, viaja para o fim do mundo, só para não se confrontar com as nostalgias que a quadra sempre traz — amores perdidos, planos adiados, sonhos desfeitos. A vida que não se teve. A vida que tem. ‘É mais fácil assim’, diz ele, como se falasse de um cataclismo natural.”

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A liberdade de expressão deve ter prevalência sobre a cartilha das patrulhas
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“Que tenho eu contra a diversidade, a equidade e a inclusão? Nada contra, tudo a favor. Meu problema é com a imposição autoritária de uma agenda qualquer. Quem leva a sério a diversidade, a equidade e a inclusão não defende políticas que são favoráveis à uniformidade (de pensamento), à desigualdade (de acesso à universidade) e à exclusão (de quem não reza pelo mesmo credo). (...) Se esses juramentos continuarem, prevejo uma de duas coisas: a ruína definitiva das humanidades (...) ou, pior ainda, o triunfo do cinismo (...) pessoas jurando seu amor à diversidade, à equidade e à inclusão quando, interiormente, estão dando gargalhadas sobre o assunto porque o que interessa é enganar o júri e passar pelos portões. (...) Será preciso lembrar que a autonomia das instituições e a liberdade de expressão devem ter prevalência sobre a cartilha das patrulhas, sejam de esquerda, sejam de direita? (...) se o professor acorda, respira e adormece pensando na diversidade, na equidade e na inclusão, ótimo para ele. Mas é igualmente legítimo que outros professores ou pesquisadores acordem, respirem e adormeçam pensando nas suas particulares obsessões científicas.”

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Matar uma adolescente por não usar o hijab não é defender uma doutrina
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PS: Só selecionei o item 1 da crônica e cortei o outro

“(...) a condenação à morte do teólogo espanhol Miguel Servet por ‘heresia’ — uma acusação irônica quando o protestantismo, aos olhos de Roma, era a suprema heresia. Essa contradição insanável foi denunciada à época por Sebastião Castélio, o sábio de Basileia, que deixou a frase: ‘Queimar uma pessoa não quer dizer defender uma doutrina, mas sim matar uma pessoa’. (...) Como normalmente acontece aos espíritos limpos que habitam eras sujas, Castélio acabaria só, como ‘um mosquito contra o elefante’, na defesa da tolerância contra o fanatismo. Calvino esmagou seu rival. Mas a mensagem sobreviveu ao mensageiro e, nos séculos seguintes, não deixa de ser novamente irônico que tenham sido os países de herança protestante a acolher os perseguidos da religião e da política — e a permitir o florescimento da democracia. Sebastião Castélio era, enfim, redescoberto. (...) No fim das contas, a vontade de liberdade é mais forte do que o terror dos tiranos — e, como escreve Zweig, ‘sempre se erguerá um Castélio contra um qualquer Calvino, para defender a autonomia soberana do pensamento contra todas as violências da violência’.”

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As democracias favorecem a paz, mas por influência feminina, não masculina
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“(...) quando você concede à metade da população o direito de voto, há mudanças em política. Importantes e mensuráveis. (...) quando as mulheres começaram a votar, a despesa dos estados aumentou. O mesmo aconteceu com os machos. A grande diferença está na natureza da despesa: com elas, mais dinheiro para saúde e educação; com eles, mais dinheiro para infraestruturas e defesa. As mesmas diferenças existem na política internacional quando se analisa o período entre as guerras napoleônicas e o tempo presente: as democracias em que só os homens podiam votar tinham 30% mais probabilidades de iniciar um conflito com outro Estado do que as democracias em que as mulheres podiam votar. (...) as democracias tornam os estados mais pacíficos, mas não por influência masculina.”

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Pior é impossível
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“(...) As mulheres não civilizam apenas os homens, o que sempre me pareceu uma evidência. Elas também civilizam as nações, tornando a possibilidade de conflito entre estados mais difícil de acontecer. (...) se o mundo ocidental, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, viu uma diminuição dos conflitos em que se envolveu, isso também se explica pela gradual participação das mulheres na vida política dos países. (...) Sociedades onde existem desequilíbrios de gênero acentuados — muitos homens, poucas mulheres — tendem a ser barris de pólvora à espera da explosão. (...) ao olharmos para os conflitos contemporâneos que sangram o planeta — na Ucrânia, na Síria, no Iêmen, na Etiópia — não encontramos uma só mulher envolvida nas decisões. (...) a título de curiosidade, seria o primeiro a entregar o mundo direto para as mulheres, só para ver no que dava. Tenho a certeza de que, atendendo ao histórico dos machos, o pior seria impossível de acontecer em cenário assim.”

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Inimigos íntimos
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“(...) A mensagem de Coralie Fargeat é que as mulheres de meia-idade são tão fúteis e intelectualmente limitadas que estão dispostas a tudo, até às maiores torturas, para satisfazerem o ego dos homens. Que isso aconteça por aí, é algo que se lamenta. Mas a tese não colhe quando aplicada universalmente. Cresci com mulheres fortíssimas que nunca hesitavam em pôr os machos no seu lugar. E continuo rodeado por elas, em casa ou fora de casa. (...) Nessas matérias, a ensaísta Camille Paglia tem razão quando recusa a vitimização insultuosa que as feministas de terceira geração trouxeram para a luta da emancipação das mulheres. Como se as mulheres fossem flores de estufa, rodeadas por ervas daninhas (nós, os homens), mendigando por proteção especial. No fundo, a velha fantasia reacionária. As mulheres não são flores de estufa. Algumas são até plantas carnívoras ou venenosas, como já tive oportunidade de comprovar.”

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Punir Benjamin Netanyahu com censura de judeus é uma velha ideia totalitária
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“(...) punir artistas e escritores pelos atos dos seus governos é uma forma de barbárie. (...) o fanatismo do tempo vai mais longe. Não ataca apenas artistas ou intelectuais conotados com certas ideologias ou regimes, o que já seria discutível. Ataca grupos inteiros só pelo fato de serem russos — ou israelenses. É esse o espírito de uma carta pública que junta centenas de nomes célebres (...) A ideia, sem eufemismos, é contribuir para a marginalização de autores judeus, das suas editoras, dos seus festivais literários. É colocar sobre cada um deles uma estrela amarela, não por aquilo que dizem ou escrevem, mas por aquilo que são. O que virá a seguir? Fogueiras públicas para os seus livros, na melhor tradição de 1933? (...) Qualquer pessoa dotada de atividade cerebral só pode olhar com horror para os cadáveres e as ruínas de Gaza. Mas a tentação primária de punir o governo de Benjamin Netanyahu através da censura de escritores judeus e israelenses (imagino que escritores árabes israelenses estão fora de perigo) é uma velha ideia totalitária que dissolve o indivíduo no ódio cego a um grupo inteiro. (...) Nunca aprendemos nada.”

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Não há inocentes
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“Quando soube do atentado contra Donald Trump, acho que bocejei. Não é desrespeito. É sensação de déjà vu. (...)  aquele pessoal sempre gostou de matar, ou de tentar matar, presidentes. Quatro foram eliminados com sucesso — Lincoln, Garfield, McKinley, Kennedy. Vários sobreviveram por milagre, como Theodore Roosevelt, em 1912, ou Ronald Reagan, em 1981. Aliás, em que outro país do mundo haveria um musical — sim, você leu bem: um musical da Broadway em que os personagens principais são os assassinos dos presidentes? (...) os assassinos reúnem-se, ufanos, para reclamarem o seu prêmio pelos serviços prestados à nação. Mas não há prêmio; só infâmia. O crime não resgatou as suas vidas miseráveis. (...) O compositor captou na perfeição o que faz mover essa fauna. Razões políticas? Raramente. Loucura? Quase sempre. Mas, sobretudo, há uma busca de atenção e de celebridade que seja capaz de redimir o anonimato opressivo.”

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Sexo com robôs e paixões por avatares são o futuro do amor
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“Nunca vivemos em sociedades tão sexualizadas como hoje. E nunca houve um tão acentuado desinteresse pela prática sexual entre os mais jovens. Razões? Sempre acreditei que a primeira frase explica a segunda. Quando tudo em volta grita, é natural querer ficar calado. O sexo é, primeiro de tudo, uma questão de imaginação. (...) Viver e deixar viver é ainda o meu lema. Se o meu vizinho ama uma boneca e quer casar com ela, só posso desejar boa sorte ao casal. De igual forma, concordo com Woody Allen: às vezes, masturbação é fazer amor com a pessoa que mais amamos. (...) Como escreve Roanne van Voorst, há uma atrofia das nossas capacidades — verbais, sociais, emocionais, até sexuais — que nos empobrece como pessoas. A relação amorosa, mesmo quando infeliz, é também um momento de florescimento e maturidade em que somos obrigados a sair de nós próprios. A rendição ao outro é, paradoxalmente, um triunfo para nós. Esse, aliás, talvez seja o verdadeiro perigo de um futuro dominado pelos robôs, conclui Roanne van Voorst. Quem teme que eles possam se tornar humanos deveria considerar a hipótese inversa de sermos nós a ficar robóticos.”

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Os hipocondríacos: felizes na ignorância, infelizes na sabedoria
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“No espaço de uma década, será possível acordar, entrar no banheiro e sair de lá com uma lista generosa de todas as doenças que habitam nosso corpo. (...) Segundo o jornal, será possível avaliar, só pelos dejetos, se o cidadão está hidratado, se tem pedra no rim, se tem doença grave nas entranhas. (...) A ducha, para além da limpeza habitual, servirá para identificar e tratar, por luz infravermelha, qualquer sinal de inflamação. Mesmo o espelho, na sua inocência aparente, será de uma vigilância dermatológica assombrosa, fazendo um rastreio enquanto você contempla seu rosto. Depois, escovando os dentes, a saliva permitirá o diagnóstico completo, fornecendo todos os vírus e bactérias que merecem extermínio. No fim da experiência, uma pessoa normal recebe a conta do estrago: ‘Infecção urinária e sarna. Tenha um bom dia’. Valerá a pena? (...) Não vale, irmãos. Um mundo de hipocondríacos será penoso de ver: o que se ganha em detecção precoce perde-se em paz de espírito. Palavra de profissional. Até porque uma pessoa saudável, como dizem os cínicos, é alguém que ainda não foi devidamente estudada.”

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Ser um mero papagaio da propaganda antissemita não é destino que se inveje
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“Terroristas do Hamas entram em Israel para massacrar e sequestrar mulheres, crianças e velhos. Há quem festeje. Há quem não festeje, mas ‘compreenda’ a barbárie como um ato de resistência contra a política israelense. Tranquilo, leitor sensato. Não vou comentar nada disso. Com a idade, deixei de gastar o meu latim com psicopatas ou antissemitas. Só abro uma exceção para pessoas que suspeito mal informadas ou mal influenciadas. Nesses casos, há uma pergunta que sempre faço a elas: ‘por que motivo você esbraceja tanto contra Israel, mas não adota a mesma postura com outros países que cometem atrocidades bem piores?’ (...) Pense na China perseguindo os uigures. Pense em Mianmar fazendo o mesmo aos rohingyas. Ou na Índia brutalizando os muçulmanos da região de Caxemira. Agora mesmo, há uma limpeza étnica a decorrer em Nagorno-Karabakh, com mais de 100 mil armênios fugindo às investidas do Azerbeijão. (...) Um antissemita não dá bola para nenhum desses conflitos. Não há lá judeus para acusar. Mas quem recusa o rótulo de antissemita, tem de responder por sua gritante incoerência: por que Israel e não os outros?”

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Precisa desenhar para explicar que dois Estados e Hamas são contraditórios?
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“Razão tinha o poeta: os seres humanos, de fato, nunca suportaram demasiada realidade. Quando a realidade é excessiva, irracional, desumana, a mente refugia-se em explicações familiares, efabulações, dissonâncias cognitivas. (...) Contar tudo é relembrar que o Estado que o Hamas defende pressupõe o fim de Israel. A ocupação, nesse contexto, é o próprio estado judaico, não a sua presença na Cisjordânia (...) Será preciso um desenho para explicar que os termos ‘dois Estados’ e ‘Hamas’ são uma contradição insanável? No seu artigo, Einat Wilf lembra os ‘apaziguadores’ britânicos que, perante Hitler, tentaram racionalizar o comportamento do líder nazista. Não, ele não queria alargar o ‘espaço vital’ da Alemanha, ao contrário do que afirmara no seu ‘Mein Kampf’, diziam eles. A dissonância cognitiva era a mesma. As palavras de Hitler deveriam ser reescritas pelas fantasias de um auditório apavorado. Deu no que deu.”

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Ser pró-palestino ou pró-israelense é uma coisa; aquela alegria macabra era outra
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“Naqueles 20 dias, depois do massacre e antes da invasão, havia vítimas. Milhares. Gente sequestrada, estuprada, morta. Judeus. Sionistas e não sionistas. Seres humanos, no fundo, que se divertiam num concerto. E, naqueles 20 dias, houve festejos a Ocidente. (...) Ser pró-palestino ou pró-israelense é uma coisa; mas aquela alegria macabra era outra. (...) É uma alegria ideológica, afirma Brendan O’Neill, e afirma bem. Depois da queda da União Soviética e do descrédito intelectual do marxismo, o ‘fim da história’ jogou muitos progressistas, ou pseudoprogressistas, no limbo da irrelevância. Quando o 11 de Setembro aconteceu, os festejos foram modestos porque não havia ainda um roteiro que os enquadrasse na luta anti-imperialista. Faltava, digamos assim, repertório. Para O’Neill, o roteiro surgiu com a radicalização das ‘políticas de identidade’ que se espalharam nos 20 anos seguintes e que começaram a atribuir valor moral a certos grupos de acordo com a cor da pele, o pretenso privilégio e o lugar que ocupam na hierarquia racial. Nesse admirável mundo novo, o judeu deixou de ocupar o lugar de vítima, mesmo tendo o Holocausto no currículo. Aliás, o Holocausto passou a ser questionado, ou enfraquecido, porque na grande competição vitimária não era possível que os judeus levassem a copa. No fim das contas, os judeus são brancos, colonialistas, capitalistas. Não podem ser vítimas se o ‘racismo do bem’ os apresenta como opressores. (...) As consequências dessa ‘retaliação retrospectiva’, como lhe chamou o escritor Howard Jacobson, foi termos 40% dos estudantes americanos, entre os 18 e os 29 anos, a considerarem o Holocausto uma mentira (e 30% que não sabem se realmente aconteceu).”

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Cientistas da inteligência artificial parecem crianças que atearam fogo à casa
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“Não me perguntem onde mora a verdade. Como diria um personagem de Woody Allen, eu nem sei como funciona o abridor de latas. Por um lado, o mundo anda há tempo demais a fantasiar sua própria extinção. Pode ser um bug informático na virada do milênio. Ou uma pandemia. Ou o aquecimento global. Ou uma guerra nuclear. Nesse sentido, acrescentar a inteligência artificial à conta pode soar a história batida. (...) não é possível ‘desinventar’ as coisas. Quando o gênio sai da lâmpada, ele se espalha por aí. De nada adianta uma moratória de seis meses. Ou até o fim da pesquisa em inteligência artificial pelos laboratórios conhecidos. Haverá sempre alguém, algures, operando na clandestinidade. Mas a suspensão ou a proibição também não resultam porque a inteligência artificial, que já está presente em mil atividades ou indústrias, é um avanço epistemológico assombroso. (...) O que parece distinguir a inteligência artificial não é apenas a capacidade de processar quantidades obscenas de informação. É o fato de detectar aspectos da realidade que escapavam aos seres humanos. Uma benesse? Pode ser: na medicina e em outras ciências naturais, o salto será gigantesco na descoberta de novas técnicas ou terapias. Já acontece. (...) O impacto será mais problemático em áreas onde a supervisão humana não pode ser descartada. Como a guerra, claro, onde a dúvida e a ‘moralidade’ podem fazer a diferença entre a sobrevivência e a catástrofe. Um cérebro digital sem dúvidas (e sem moral) é um convite para o inferno.”

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Com chocolates nos bolsos e a polícia no meu encalço, o teatro espera por mim
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“A balança gemeu: estou acima do peso indicado. Que fazer? Tradicionalmente, dieta. No meu caso, fechar a boca ao chocolate (inimigo nº 1), aos jantares pesados (nº 2), aos almoços idem (nº 3) — e, já agora, abandonar o sedentarismo (nº 4, mas, na verdade, nº 1) e o hábito decadente de usar o táxi para ir do quarto ao banheiro (nº 5). Mas então lemos: não será a gordura uma forma de ‘identidade’? E não estarei eu pronto a abraçá-la, combatendo o preconceito de uma sociedade que impõe sobre mim seus ideais de beleza inatingíveis? Meu coração hesita (antes do infarto, claro). Por um lado, a obesidade mata; por outro, o estigma associado à gordura pode ser ainda pior. Que fazer? (...) Com um sorriso largo e os bolsos recheados de chocolatinhos Lindt, pergunto à minha senhora se ela já ouviu falar do ‘fat acceptance movement’ — o movimento pela aceitação de corpos gordos. Ela diz que já: é uma das primeiras causas de divórcio em todo mundo. Deprimo. Quando finalmente tinha encontrado uma identidade, eis que o matriarcado esmaga Little Couto.”

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Muitos progressistas de hoje apenas copiam os espíritos totalitários de ontem
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“(...) é, sobretudo, um ataque direto ao regime comunista que censurava, ou cancelava, certas obras de arte que não se ajustavam ao código soviético. Estamos na presença de ‘vândalos’, escreve Kundera, embora o termo se preste a confusões. Um vândalo não é apenas um ignorante simplório que resolve destruir o patrimônio de terceiros. (...) Os vândalos de que fala Kundera são pessoas educadas (no sentido acadêmico do termo), muito contentes com elas próprias, socialmente integradas, com capacidade de decisão política ou econômica — e que têm por hábito demolir o que não entendem ou aquilo de que não gostam. O vândalo, ao contrário de uma pessoa civilizada, não aceita que o mundo possa ser diferente da sua própria cabeça. O mundo deve ser idêntico à sua cabeça, o que muitas vezes implica a destruição do que é dissonante. E acrescenta Milan Kundera: ‘Quando um comitê de cidadãos ou burocratas que gerencia um projeto decreta que alguma estátua (ou castelo, igreja ou uma tília milenar) é inútil e deve ser eliminada, isso é apenas outra forma de vandalismo.’”

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Submissão da arte à ideologia lembra períodos sombrios do século 20
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“(...) Hoje é o retorno aos momentos mais sombrios do século 20, com a submissão da arte a imperativos extra-artísticos. (...) o que define um escritor ou pintor ou compositor não é a ‘relevância’ (grotesca palavra) da sua obra para as discussões histéricas das redes sociais. A arte é, antes de tudo, a forma como um criador responde aos desafios da autoridade e da liberdade artísticas. É uma luta permanente, solitária, interior, entre ordem e impulso criativo: conhecendo a tradição da sua arte, até nas suas dimensões mais artesanais, um criador digno desse nome é aquele que prolonga ou refaz ou recria ou, no limite, recusa essa mesma tradição. (...) Quando esse confronto entre autoridade e liberdade não existe, também não existe uma obra de arte. Temos apenas obras ‘bem feitas’, no sentido técnico ou académico da expressão: obras que se limitam a mimetizar a autoridade de um género, sem que a liberdade e a individualidade do artista se revelem. Ou, em alternativa, quando só existe liberdade sem autoridade, temos obras informes e estéreis, porque a ausência de limites, ou até do conhecimento prévio desses limites, fez naufragar o criador em ruído e nada. A essas duas modalidades, acrescento mais uma, em homenagem ao nosso tempo: a conversão da obra em panfleto, ou seja, a recusa trágica quer da autoridade, quer da liberdade.”

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Stálin é o único leitor que tinha na estante autores que mandara matar
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“(...) tal como Hitler, os livros serviam para reforçar dogmas previamente adotados, o que nos leva para um território que não é mais político nem filosófico, muito menos ‘científico’, mas religioso. (...) São vários os autores que sempre olharam para o nazismo e para o comunismo como ‘religiões seculares’: escatologias que mimetizam a velha religião cristã, substituindo apenas o reino de Deus pelo reino da raça ou do proletariado. A biblioteca e os hábitos de leitura de Hitler e Stálin confirmam. (...) ambos deixaram seguidores (...) uma parte da esquerda e da direita contemporâneas, fechadas nas suas bolhas cognitivas, com as suas crenças constantemente reforçadas pelo ‘echo chamber’ (câmera de eco) das redes sociais. (...) É assim que os vejo: pequenos Hitlers e pequenos Stálins, sem mundo, sem abertura ao mundo, sem curiosidade pelo mundo, cada um com a sua fé. Ou, como na piada, cada um com as suas fezes.”

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A ambiguidade de Clint Eastwood já não tem público nos Estados Unidos
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“Os últimos anos foram anos fanáticos por aquelas bandas. Não falo apenas do povo que se foi dividindo entre dois exércitos enraivecidos e simplórios. Falo das elites, ou supostas elites, que afundaram também na imoralidade e na cegueira. O filme de Clint Eastwood questiona: devemos fazer o que está certo ou aquilo que nos é conveniente? (...) No ambiente pestilento e febril em que afundou a república americana, é natural que ‘Jurado Nº 2’ seja um objeto estranho e anacrônico, literalmente sem lugar. Basta ver as listas dos melhores filmes do ano, onde deveria constar por direito próprio, e que ignoraram o canto do cisne de um dos maiores criadores americanos. (...) ‘Um dia, o último retrato de Rembrandt e o último compasso de Mozart terão deixado de existir’, escreveu Oswald Spengler, ‘porque o último olho e o último ouvido capazes de compreender as suas mensagens terão desaparecido.’”

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Como esperar comportamentos civilizados em sociedades descivilizadas?
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“(...) Como explicar o horror? Para Elias, a ‘descivilização’ tinha começado no século 19, com o crescente militarismo da Alemanha pós-unificação. As virtudes guerreiras contaminaram o país com o seu culto da obediência, da agressividade e do desprezo pela vida humana. (...) como esperar comportamentos civilizados em sociedades descivilizadas? Essa pergunta é válida para todos: políticos, intelectuais, policiais, manifestantes, periféricos. Ninguém escapa. E, se ninguém escapa, as explicações simplórias das esquerdas e das direitas soam vazias.”

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Perigosos são os homens comuns que se limitam a seguir ordens
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“(...) Hoje o acesso à cultura é praticamente irrestrito. Mas a ignorância aumentou na mesma medida. Não falo apenas de Beethoven. O Holocausto também serve. Uma enquete da Economist/YouGov concluiu que os jovens americanos não acreditam/não sabem se acreditam que o Holocausto existiu. A estupidez em números: 20% daqueles que têm entre 18 e 29 anos consideram o Holocausto um mito. (...) o Holocausto até poderia ser um mito. Mas os nazistas, que tinham muitos defeitos, eram exemplares no método com que registravam suas matanças. De todos os crimes em que a humanidade foi pródiga, nenhum deles está tão bem documentado como o Holocausto. Mas mesmo que não estivesse em letra de forma, teríamos sempre os testemunhos. Já nem falo dos testemunhos das vítimas que sobreviveram; falo dos carrascos que sobreviveram — e que, entre a culpa ou o orgulho, revisitaram o passado para as câmeras.”

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No Dia D, foram os homens banais que derrotaram os super-homens
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“Sou um sentimental. Mas é difícil não ficar comovido quando vemos estes homens, beirando os cem anos, retornando às praias da França. Falo dos veteranos da Segunda Guerra Mundial que, 80 anos atrás, em junho de 1944, desembarcaram na Normandia para libertarem a Europa da tirania nazista. Escuto os discursos. Escuto os testemunhos. E depois pergunto se as sociedades de hoje estariam disponíveis para um sacrifício dessa magnitude. (...) Olho para os últimos veteranos da Segunda Guerra Mundial naquelas praias da Normandia. Rostos banais, vidas banais, expectativas banais. E, no entanto, foram eles que derrotaram os super-homens no final. Foram eles, os ‘lojistas’, os ‘filistinos’, os ‘escravos’, os ‘animais de rebanho’ que Nietzsche desprezava, que derrotaram Zaratustra. Querem ver que as virtudes heroicas, no fim das contas, são as virtudes que só a liberdade e a democracia permitem?”

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Para Susan Neiman, esquerda woke adotou as ideias da direita
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“Há certas palavras do léxico político da esquerda que desapareceram da paisagem. Povo é uma delas. Classe é outra. Trabalhador idem. E até pobreza e miséria. Onde estão esses conceitos? Não na esquerda woke, mais interessada nos dramas da identidade, do racismo estrutural e das questões de gênero. Ironicamente, o povo só existe na retórica da direita populista. Não admira que muitos dos antigos eleitores de esquerda estejam a migrar para essas águas, pelo menos nos Estados Unidos e na Europa. (...) Uma das grandes conquistas da esquerda foi defender uma concepção de humanidade que se situava acima da tradição ou do privilégio. Se todos somos seres humanos, isso significa que todos participamos em pé de igualdade da teia de direitos e deveres que a lei determina. A esquerda woke quebra essa pretensão universalista, tribalizando a discussão e a luta políticas (...) abandonando o racionalismo que a define desde o Iluminismo por uma forma de niilismo que era coutada exclusiva da direita mais radical. (...) Se a história é tão só uma lista de barbaridades que continua até o presente, a esquerda woke parece cega para os progressos reais, tangíveis, que a esquerda não woke, apesar de tudo, conseguiu. Exemplo: por mais problemático que seja o racismo nas sociedades contemporâneas, ele era bem pior cem anos atrás, ou 200 anos atrás, ou 300 anos atrás. A incapacidade de pensar de forma gradativa, quer em relação ao passado, quer em relação ao futuro, encerra a esquerda woke num pesadelo permanente do qual é impossível sair.”

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Na luta contra o racismo, são por vezes os “ativistas” que a sujam para se salvar
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“A ideia de que uma etnia é coletivamente responsável pelos atos de alguns é um pensamento totalitário, digno do Terceiro Reich, mas indigno de uma democracia e de um estado de direito. Mas Claudine Gay não foi apenas contestada pelas suas respostas relativistas. O seu trabalho acadêmico, visto à lupa, revelou vários casos de plágio — um crime intelectual que não seria perdoado a um aluno de primeiro ano em Harvard. (...) Pois bem: na sua carta, Claudine Gay não nega os erros cometidos. (...) o seu afastamento explica-se por outros motivos (...): pelo racismo que opera na sombra e pela demagogia (...) Eis a má-fé de Claudine Gay: confrontada com os seus erros, ela desconversa. E joga a carta racial como boia de salvação (...) na luta contra o racismo e a discriminação, são por vezes os seus ‘ativistas’ que mais sujam essa luta. Como? Manipulando uma causa justa para se limparem dos seus erros pessoais.”

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“Colonialismo de assentamento” é a principal causa do antissemitismo contemporâneo
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“Para ficarmos nas Américas, e de uma perspetiva científica, os mais antigos seres humanos a habitar o continente terão vindo da Ásia Oriental há mais de 25 mil anos. Os ‘nativos’ tornam-se nativos, eis o ponto. Mas não apenas isso: eles tornam-se nativos porque exercem violência e conquista sobre populações igualmente ‘nativas’. Para usar o paradigma do próprio ‘colonialismo de assentamento’, antes de serem vítimas desse colonialismo, os nativos exerceram-no sobre outros nativos. A arqueologia, os estudos paleontológicos, a evidência do DNA apontam para esse passado de guerra e apropriação permanentes. (...) É uma observação que nada tem de especial: a história da humanidade, como lembrava Churchill, é a história dos seus massacres. Os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália não são muito diferentes da Rússia, da China ou do Irão. Ou, recuando ainda mais no tempo, dos babilônios, dos assírios ou dos persas.”

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Cabeças iluminadas quebram tabus e depois clamam por mais decência
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“(...) a contradição dolorosa que existe em certas cabeças iluminadas. Por um lado, elas desejam quebrar todos os tabus sociais, sexuais, comportamentais. Por outro, quando se confronta com os resultados tangíveis de tanta libertação, a cabeça iluminada recua de horror e clama por mais decência. (...) Longe de mim defender a proibição da prostituição, da pornografia e de outras ocupações carnais. Não defendo: nem tudo o que é moralmente ambíguo deve ser ilegal. Mas também não subscrevo a atitude falsamente blasé de considerar que um filho ator pornô ou uma filha nas vitrines de Amsterdã me deixariam cobertos de orgulho.”

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Para os fãs, Taylor Swift é uma bênção; para mim, um desastre natural
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“(...) não sou homem de multidões. Reajo da mesma forma com grandes jogos de futebol ou festas populares que enchem as ruas. Quando os lisboetas festejam santo Antônio, fujo para o Porto. Quando os portuenses festejam são João, fujo para Lisboa. Quando ambos festejam qualquer coisa, fujo para a Espanha — e, de festa em festa, posso mesmo acabar no deserto do Sinai, desde que os beduínos não comecem com ideias. (...) Em festas privadas com excesso demográfico é a mesma coisa, razão pela qual me especializei na chamada ‘saída à francesa’ (...) uma forma de você desaparecer das festas sem ninguém notar. Corrijo. As pessoas não notam porque ainda acreditam que você está na festa. Como se faz isso? Praticando. Não há outra forma. É como tocar oboé. No início, todo mundo notava. ‘Quem é aquele pulando da janela?’. (...) Com o tempo, aprendi que o essencial é falar com meia dúzia de pessoas estratégicas, anfitriões inclusos, terminando todas as conversas com: ‘Vou circular mais um pouco, a festa está ótima, com sua licença’. Quando os outros convidados se encontram com as pessoas estratégicas e perguntam pelo meu paradeiro (...) elas respondem sempre: ‘Deve estar circulando por aí’. (E eu em casa, com duas rodelas de pepino nos olhos, pronto para o meu sono de beleza.)”

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Na política, o príncipe nem sempre está alinhado com as virtudes dos sábios
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“(...) Vejamos a bomba atômica. Qualquer humanista, confrontado com o seu potencial de destruição, recua de horror. E dirá: jamais, em tempo algum, permitiria que uma bomba dessas fosse desenvolvida durante o meu governo. Mas depois alguém informa que os nazistas estão procurando a bomba desde 1939 e a natureza da pergunta se altera. Seus gostos ou desgostos sobre o assunto colapsam. A questão, agora, é saber quem vai chegar lá primeiro: você ou as forças nazistas? É bom que seja você, humanista. (...) O mesmo acontece sobre o ato de jogar a bomba atômica no Japão. É um pensamento aterrador e, além do mais, historicamente controverso. Talvez o Japão estivesse perto da derrota, sem ser necessária essa barbárie. Talvez o uso da bomba fosse apenas uma demonstração dos americanos para assustar os soviéticos. Ou talvez não fosse. Talvez o Japão não estivesse a caminho da rendição. Talvez continuasse a lutar com o grau de ferocidade revelado em Okinawa e Iwo Jima. Talvez a bomba, como afirmam vários historiadores, tenha na verdade salvo muitas mais vidas do que aquelas que destruiu. (...) Em 1945, estar no lugar do príncipe não era saber se jogar uma bomba era moralmente certo ou errado. A questão era outra: terminar a guerra imediatamente ou continuar lutando durante meses ou anos?”

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A grande oposição política é entre a elite gerencial e a classe trabalhadora
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“(...) A grande oposição política, hoje, não é entre esquerda e direita, muito menos entre burguesia e proletariado. É entre a ‘elite gerencial’ (...) e a classe trabalhadora. A primeira é usualmente branca, apesar de falar constantemente de diversidade; tem um diploma universitário para mostrar (ou vários); vive em ‘hub cities’, como Nova York, Londres, Paris; e faz parte da ‘nomenklatura’ (finanças, internet, mídia, artes, universidades etc.). A segunda é racialmente diversa; tem pouca instrução formal; vive nos subúrbios; e tem opiniões e interesses que a ‘nomenklatura’ considera bregas ou reacionários, sobretudo em matérias sociais e de costumes. (...) O abismo entre esses dois mundos, que se insultam mutuamente com a expressão ‘essa gente’, é hoje tão profundo como o abismo que existia entre a aristocracia e a plebe ou entre a plutocracia e os servos. Mas a desigualdade é a mesma: em riqueza, oportunidades, influência e status social. Sem surpresas, esse abismo tende a produzir aberrações políticas: populistas demagógicos, por exemplo, que se aproveitam do desespero ou do ressentimento das massas; ou, no outro extremo, uma oligarquia tecnocrática. O que não produz é uma sociedade pluralista, onde diferentes comunidades culturais, igrejas, sindicatos, partidos — os ‘corpos intermediários’ de que falava Tocqueville, sem os quais o despotismo triunfa — têm um lugar e uma voz.”

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O povo do populista vale tanto como o proletariado do marxista: nada
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“(...) antiliberalismo, essa velha tradição que tanto pode ser de esquerda como de direita. O objetivo é sempre o mesmo: corroer a democracia liberal e representativa, bem como as virtudes a ela associadas — o pluralismo, a laicidade, a tolerância e a simples experiência da individualidade. (...) O grande inimigo dos iliberais (...) são os indivíduos, que emergiram com a passagem do mundo medieval para o mundo moderno e que se viram emancipados da tutela da família, da corporação ou da igreja. Esse momento, que para uns foi visto como uma libertação histórica, foi encarado por outros como uma perda traumática. (...) Os iliberais (ou, como Michael Oakeshott lhes chama, os anti-indivíduos) permanecem conosco até hoje, tentando recriar esse mundo perdido com várias roupagens coletivistas: a sociedade sem classes; a comunidade do ‘solo e do sangue’; integralismos de várias ordens; e até os novos identitarismos. Em comum, repito, está o ódio ao indivíduo e à modernidade que o gerou.”

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Pessoas que vivem em democracia dão menos importância à verdade do que em ditadura
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“Não gosto de democratas sem cérebro. Você conhece: gente que enche a boca com a palavra ‘democracia’ como se isso bastasse para fazer boa figura na feira das vaidades. Ou, pior ainda, gente que se diz democrata desde que os resultados de uma eleição sejam do seu agrado. Prefiro democratas realistas. Gente que defende a democracia por ser a pior forma de governo, com a exceção de todas as outras (obrigado, Churchill). Gente que sabe, sem ilusões, que a democracia ainda é uma forma imperfeita de governo, vulnerável a tiranos e demagogos. (...) Democracias saudáveis devem contar com a opinião informada dos especialistas. Mas entregar as chaves da pólis a um comitê de sábios é desconhecer que a ‘imodéstia epistêmica’ é a pior forma de arrogância. (...) Um conselho: nunca leve a sério um ‘humanista’ pró-imigração que não esteja disposto a partilhar o seu estatuto econômico, social e simbólico com quem chega. Abrir a porta para receber a encomenda da Uber Eats não é a mesma coisa que abrir a porta do seu hospital ou do seu departamento universitário para receber um colega do outro lado do mundo. (...) A maior delas [virtudes inegáveis da democracia], opinião pessoal, está na possibilidade de remover os maus governantes sem derramamento de sangue (obrigado, Popper). Mas é também manter os olhos bem abertos para os seus vícios inerentes. Um democrata ingênuo é um escravo a prazo.”

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Quando havia uma barata no prato, era o restaurante que pagava a conta; hoje é o cliente
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“Confesso: nunca fui um apreciador de naturismo. Um trauma de infância, depois de ver uma tia-avó tomando banho, e questões eminentemente práticas (onde guardar as chaves de casa?, por exemplo), sempre me impediram de aderir ao movimento. Por outro lado, andar nu dentro de um museu pode alimentar comparações fálicas desnecessárias com a estatuária clássica, sobretudo quando sabemos que as partes íntimas de um homem são sensíveis ao frio. (...) Quando estamos nus, ninguém repara na nudez alheia e todos se olham nos olhos, diz a federação. Não é a minha experiência. A primeira e última vez que tentei o nudismo, ninguém me olhou nos olhos. Pelo contrário: todos taparam os deles.”

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A indignação com a hipótese de não haver segundas oportunidades
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“(...) por cada escolha feita, há mil escolhas que abandonamos. Essa é a natureza agônica do pluralismo: não é possível ter tudo. Mas não estou tão certo da irreversibilidade das escolhas. Às vezes é possível voltar atrás. (...) o direito à criação e à autocriação se converteu em mandamento divino. A ideia de que existem limites intransponíveis a esse mandamento é um arcaísmo ameaçador que indigna o homem e a mulher modernos. O problema (...) é que existem dois equívocos na crença das possibilidades individuais ilimitadas. O primeiro é que não somos apenas indivíduos; somos ‘animais sociais’ (...) Dependemos dos outros. Os outros dependem de nós. E mesmo a identidade que achamos exclusivamente nossa é determinada por eles. (...) o segundo equívoco é bem pior que o primeiro: se tudo depende da nossa divina autossuficiência, quem teremos para culpar quando os desejos não correspondem à realidade? A sociedade? (...) Os culpados somos nós. Grande parte das infelicidades que reinam nas sociedades afluentes do Ocidente é a consequência inevitável dessa crença na nossa plasticidade infinita. O pessoal comprou a passagem para subir às nuvens, mas o avião nunca chegou a decolar.”

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Podemos não estar interessados no apocalipse, mas ele está interessado em nós
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“(...) Nos textos correntes sobre o conflito israelense-palestino, cometem-se dois erros que só atrapalham. O primeiro é acreditar que ainda existe um conflito israelense-palestino. Não existe. O conflito é israelense-iraniano há, pelo menos, duas décadas. O segundo equívoco decorre do primeiro: o regime teocrático, usando ‘proxies’ (Hamas, Hezbollah etc.) ou inaugurando hostilidades diretas, combate Israel para destruí-lo, não para garantir a solução dos ‘dois Estados’.”

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Diário de Navalni explica diferença entre convicções ou apenas ideias na cabeça
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“ (...) a polícia, os serviços secretos, a violência de Estado, a tortura — tudo isso assusta, tudo isso é verdade. Mas não é menos verdade que todos os regimes autoritários se sustentam sobre gelo fino: o medo da população. Quando esse medo desaparece, os regimes se desfazem como um castelo de cartas. Na luta pela liberdade, o tamanho importa. (...) Mesmo a prisão, e as condições lúgubres que acabaram por matá-lo, é comparada metaforicamente à prisão em que Putin vive. Em que vivem, no fundo, todos os tiranos, como explicava Platão: uma prisão de temor e paranoia, onde reina a mais profunda desconfiança e solidão. Alguém dizia que o pior de estarmos presos é a impossibilidade de sermos nós a trancar a porta. Mas o tirano vive uma existência igualmente precária: ele sabe que, mesmo trancando todas as portas, jamais terá uma segurança perfeita.”

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Fantasma da Babilônia americana ainda é sucesso 30 anos após Waco
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“(...) Em 1993, os seguidores de Koresh eram a exceção da regra: devotos, zumbis, alucinados, eles se viam como parte do plano de Deus para redimir a ‘Babilônia americana’. Como afirma uma das devotas, que aliás escapou com vida e partilha a sua experiência no documentário, ninguém pensava em si próprio como ‘pessoa’. Todos se viam como instrumentos de uma causa maior, razão pela qual estavam dispostos a morrer por ela. (...) Hoje, os seguidores de Koresh estão por todo lado, o que só confirma a tese de que o declínio das religiões tradicionais cria metástases nos lugares mais improváveis. (...) entre 1937 e 1998, os Estados Unidos eram um caso raro no Ocidente secular: 70% dos americanos ainda frequentavam a igreja, uma cifra impensável na Europa. Nas duas décadas seguintes, o valor desceu para menos de 50%. Ao mesmo tempo, e durante esse mesmo período, a intensidade ideológica aumentou drasticamente, até chegarmos ao cenário atual, em que os radicais dos dois lados acreditam que estão a combater o demônio, não a discutir as melhores políticas para o país.”

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Pensar tragicamente é a melhor forma de evitar a tragédia
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“(...) quem diria que a ordem, mesmo que perversa, pode ser preferível a uma anarquia selvagem? (...) sem ordem, a vida é ‘solitária, pobre, sórdida, brutal e curta’, como dizia o tio Tomás. Sem falar dos dramaturgos gregos, com quem Kaplan aprendeu tarde uma grande lição: só quem sabe pensar tragicamente pode evitar a tragédia. O que significa pensar tragicamente? (...) Não, não é pessimismo, ou fatalismo, ou estoicismo. (...) A mente trágica, em política, está sobretudo sintonizada para as contingências da vida — acasos imprevistos, atos de terceiros, forças culturais ou religiosas que são invisíveis aos olhos, mas determinantes. Por todos esses motivos, a mente trágica é sempre modesta e humilde. Ela sabe, ela reconhece o lugar diminuto que ocupamos no esquema geral das coisas.”

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As utopias de hoje podem estar sofrendo de coito interrompido
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“(...) o mundo é o que é, um longo cortejo de barbáries pontuado por momentos de trégua salvífica. (...) Depressão é vaidade frustrada, já lembrava o doutor Sigmund. Quem não alimenta nenhuma vaidade sobre a espécie humana dificilmente ficará deprimido com ela. (...) A segunda consequência do ceticismo conservador é que, como a tribo espera sempre o pior, há uma capacidade redobrada para festejar o melhor. Onde os jovens progressistas veem apenas migalhas, os conservadores céticos veem um banquete completo. São os últimos grandes românticos, como diziam os Prefab Sprout. E digo eu também: camaradas, não interessa como vamos acabar! Interessa é como vamos lá chegar! E eu prefiro ver um progressista de cara levantada e sonhos ao alto, rumo à derrota ou à vitória, do que um zumbi amedrontado com a própria sombra, que desiste antes mesmo de começar.”

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Para não falar merda sobre o mundo, falamos merda sobre nós próprios
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“(...) A possibilidade de falar (e ouvir) merda é diretamente proporcional ao número de oportunidades para falar (e ouvir) essa merda. Quando escreveu o ensaio, em 1986, ainda não havia internet. A disseminação da ‘bullshit’, apesar de tudo, não era tão generosa. Quando publicou o texto em livro autônomo, em 2005, a inundação virtual estava apenas começando. Em 2023, falar merda se tornou língua franca. (...) Quando não sabemos onde mora a verdade e a mentira, podemos optar por vários caminhos: o silêncio; o estudo; ou, então, a sinceridade. Por sinceridade, entenda-se: elevar as nossas emoções a critério de verdade. Como não temos acesso à realidade objetiva dos fatos, optamos por um acesso à realidade subjetiva. (...) para evitarmos falar merda sobre o mundo, acabamos falando merda sobre nós próprios, como facilmente se comprova olhando ao redor.”

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Para Zizek, o maior erro da esquerda é não assumir a defesa da lei e da ordem
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“(...) Não são os ricos que pagam a conta da insegurança. Esses vivem longe, em suas casas protegidas e confortáveis. São os pobres, em bairros degradados e com seus ônibus destruídos, que vivem com o coração nas mãos. (...) Com a imigração, aplico o mesmo raciocínio. (...) a direita mais radical quer fechar as fronteiras; a esquerda radical quer abri-las, sem atender às ansiedades dos trabalhadores mais pobres, que, em certos casos, podem perder rendimento no curto prazo. (...) Como acontece com a insegurança, não são os mais ricos que devem temer a imigração. Pelo contrário: esses continuarão a precisar da empregada ou do motorista, de preferência pagando pouco. São os mais pobres, por exemplo, que enfrentam a concorrência, mesmo que essa concorrência possa melhorar a economia como um todo.”

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John Gray compara democracias liberais a regimes totalitários
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“(...) sou insuspeito de simpatias pela ideologia woke, pelas ‘políticas de identidade’ e pela cultura de cancelamento que tenta fechar o debate pela imposição de uma única verdade. Mas, ao mesmo tempo, sou capaz de reconhecer que essas paixões funestas são a expressão mais genuína de um universo pluralista, só possível em sociedades abertas. Sou livre de ignorar essas paixões. Sou livre de criticá-las com as minhas paixões. Sou livre de me rir dos dois lados, optando sensatamente pela sensatez. Tudo privilégios interditos a quem viveu nos regimes totalitários. Além disso, se o Estado decide optar por um dogma único, atraiçoando a neutralidade liberal, sou ainda livre de participar do jogo democrático, de votar em alternativas, de mudar.”

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Realidades e fantasias
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“Havia um jogador de futebol português que era conhecido pelas suas frases deliciosamente ignaras. ‘Prognósticos só no fim do jogo’, disse ele um dia, antes de o jogo começar. A minha preferida, porém, é essa: ‘Estivemos à beira do abismo, mas conseguimos dar um passo em frente’. (...) É dele que me lembro quando assisto ao primeiro turno das legislativas na França. O país estava à beira do abismo, mas conseguiu dar um passo em frente. Como? Votando, de forma majoritária, em dois partidos radicais — a Reunião Nacional e a Nova Frente Popular — cujos programas econômicos, se fossem implementados, levariam o país à ruína. Como explicar essa atração pelos extremos?”

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Fazer da política um prolongamento da religião é ambição iliberal e anticristã
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“(...) Quando olho para o Brasil e para os Estados Unidos, por exemplo, é difícil não ver a tentação de várias igrejas em negar a ‘dupla jurisdição’ contida nos evangelhos. Para essas denominações ou tendências, só existe uma jurisdição porque a política é um mero prolongamento da religião. Isso significa, simplificando, que os valores espirituais que são válidos numa dimensão espiritual devem ser impostos no plano secular. (...) O problema dessa ambição não está apenas no seu iliberalismo, o que já seria bastante. Está também no fato de ser uma ambição anticristã, que atraiçoa o exemplo e a doutrina de Jesus Cristo. É uma forma de regresso ao paganismo, em suma, que levaria muitos desses cristãos a condenar Jesus Cristo à morte mais uma vez.”

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Bento 16 e Habermas discutiram relação entre política e religião
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“(...) quais são os fundamentos éticos do Estado liberal e secular? São um produto do próprio processo democrático, que assim garante os seus pressupostos normativos sem precisar da religião para nada? Ou são anteriores a esse processo? Em termos ainda mais simples: qual deve ser a âncora da ação legislativa e política? (...) Em filosofia, não são as respostas que interessam; são as perguntas.”

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A inteligência artificial precisa de sessões de catequese
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PS: Só selecionei o item 1 da crônica e cortei o outro

“(...) Não pretendo que ele seja crente. Ele será o que entender: crente, agnóstico, ateu — viver e deixar viver é o lema da casa. Mas gostaria que, na infância, ele adquirisse algumas noções básicas sobre essa ‘moralidade de escravos’, para citar um célebre filósofo alemão que terminou sua carreira abraçado a uma cabeça de cavalo. (...) Compaixão pelos mais fracos. Capacidade de perdão. Responsabilidade moral pela sua conduta. Respeito pela essencial dignidade de todos seres humanos. Nada de especial: esses valores, que começaram no cristianismo, acabaram por definir os códigos legais e éticos da civilização ocidental. Não foram os únicos, certo, mas foram os essenciais.”

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“A Menina Silenciosa” é um filme revolucionário ao tratar da bondade humana
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“O Natal aí está. Essa época que para muitos é o momento da suprema hipocrisia. Durante 24 horas, ou talvez 48, os sorrisos são forçados, os sentimentos são de plástico e a gentileza, se merece o nome, não consegue esconder completamente a profundidade do ressentimento contra amigos ou familiares. Nada tenho contra a hipocrisia, aviso já. Sem ela, a vida em sociedade seria impensável — até Kant, que era Kant, sabia disso. Mas será que os mortais ainda se lembram do sorriso franco, dos sentimentos limpos e de uma gentileza genuína? Será que sentem saudades?”

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A Flikids é uma festa dedicada ao universo da criança, que surge para valorizar e destacar a literatura infantil, produzida por adultos e autores mirins, bem como outros artistas que trabalham a interseção das artes com a literatura, para promover espetáculos infantis e oficinas que estimulem a formação de novos leitores e o hábito da leitura como lazer e afinidade entre os membros da família. Nos eventos literários pelo país, geralmente a programação para crianças é apresentada como uma das partes dos eventos, alternativa. Já a Flikids é exclusiva para esse público: destaca a produção da literatura infantil nos seus vários formatos e temas, como programação principal. A 1 ª edição da Flikids acontece em 19 e 20 de outubro na Caixa Cultural Salvador , patrocinada pela Caixa e Governo Federal , com a realização da Bahia Eventos e  Mirdad Cultura , coordenação geral de Emmanuel Mirdad e curadoria de Emília Nuñez e Ananda Luz . As curadoras comentam a programação  aqui ...

Seleta: Nirvana

A “ Seleta: Nirvana ” destaca as 80 músicas que mais gosto da banda norte-americana (entre covers e autorais), presentes em 12 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Nevermind ”, “ MTV Unplugged in New York ” e “ In Utero ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 12 álbuns participantes desta Seleta 01) Lake of Fire [MTV Unplugged in New York, 1994] 02) Where Did You Sleep Last Night [MTV Unplugged in New York, 1994] 03) The Man Who Sold the World [MTV Unplugged in New York, 1994] 04) Heart-Shaped Box [In Utero, 1993] 05) Come as You Are [Nevermind, 1991] 06) Smells Like Teen Spirit [Nevermind, 1991] 07) Drain You [Nevermind, 1991] 08) Lithium [Nevermind, 1991] 09) In Bloom [Nevermind, 1991] 10) Plateau [MTV Unplugged in New York, 1994] 11) Oh Me [MTV Unplugged in New York, 1994] 12) Jesus Doesn't Want Me for a Sunbeam [MTV Unplugged in New York, 1994] 13) Something in the Way [Nevermind, 1991] 14) You Know You're Right [Nirvana, 2002] 15) Rape Me ...