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Quinze passagens do livro de contos Os ratos vão para o céu?, de Vitor Miranda



          “(...) uma vez tive um date com uma garota. na primeira noite ela dormiu em casa. de manhã perguntou se podia se banhar. primeiro encontro é sempre esquisito. quis quebrar o gelo e entrei no banheiro com um livro e caguei na frente dela:
          — o que você está fazendo?
          — criando intimidade.
          ela nunca mais saiu comigo. devia ter avisado antes. quando a gente não avisa, dá merda.”


          “duas senhoras conversam enquanto tomam um café na padaria.
          (...)
          — sabe, quando perdemos o marido viramos viúva.
          (...)
          — quando perdemos os pais nos tornamos órfãs.
          (...)
          — quando se perde um filho não existe palavra.”


“aquele corpo, que não significava nada além de uma efêmera decoração, estava elegante demais pra uma festa onde ele é o único a não gozar a vida. o homem sucumbe oprimido num terno. que diferença faz a elegância se na morte ninguém vive de aparências?”


          “— vem cá, você que era amigo, esse rapaz era viciado em drogas, não era?
          ‘era amigo’. num piscar não somos mais: éramos... é triste morrer. pior é conviver com pessoas que estão vivas.
          — eu uso drogas e tô vivo. seu filho também, aliás, compro as minhas dele. as pessoas se matam porque precisam conviver com pessoas escrotas.
          virei as costas e fui pro elevador. antes ouvi uma mãe dizer ao zelador:
          — que horas vão retirar o corpo? meus filhos vão chegar da escola e vão querer brincar.”


“(...) as crianças foram perdendo o interesse nele como perdiam em mim, que gastava o tempo todo de vida trabalhando feito um condenado. aprendi com meu pai que homem serve pra colocar dinheiro em casa enquanto a família serve ao homem. às vezes um homem quer mais que servidão, mais do que trabalho. queremos algo que não ensinaram. queremos uma palavra. queremos um pouco de amor paterno. queremos perdoar nossos pais. o meu eu não perdoei. me reconheci no cachorro com aquela cara de solidão, me olhando como me olhava desde o dia que o trouxe pra casa. a maioria dos cachorros crescem longe de suas mães e de seus pais. um ser sem contato com sua ancestralidade é um ser que não se reconhece. às vezes é melhor não ser reconhecido. a família saiu pra passear. eu, que trazia o dinheiro, chegava ali no meio da tarde após um dia de estresse e me deparava com o cachorro preso no quintal. precisava libertar o cachorro. precisava me libertar desse mal. resolvi cortar as unhas. algo pra passar o tempo que demandasse atenção, para me desfazer de pensamentos. uma pessoa que prove dinheiro parece que não tem sentimentos. precisamos desfazer essa ideia de que tempo é dinheiro. meu pai dizia: não vou te dar o peixe, mas vou te ensinar a pescar. queria o direito de ficar uma tarde inteira esperando um peixe fisgar a isca sem me preocupar com a conta de luz, o gás, a escola das crianças, a inflação dos alimentos, a prestação da casa, a gasolina, etc. homem não chora, homem tem que ser homem e sustentar a família e segurar a onda de um tsunami nas costas. bendito cortador de unha!”


          “— envelhecer é uma merda. tente o suicídio antes.
          as únicas pessoas capazes de te limpar de graça, por amor, serão suas mães e seus filhos. tá bom, alguns pais também. poucos. pior que não pensei nisso antes e não tive filhos. tô fodido. vou morrer todo cagado.”


“anoiteceu e fui ao evento. na lapa. era um evento artístico de resistência. todo mundo concordava com todo mundo. ninguém resistiu contra porra nenhuma. gastei dinheiro à toa. fui parar na casa de uma poeta. dormi lá. não precisava ter pago o hotel. (...) de manhã, perto do meio dia, acordei e fui caminhar pela orla. tirei uma selfie com Carlos Drummond e postei no instagram.”


          “— esse lugar lembra o sítio de minha avó.
          — sua avó morava num sítio?
          — não, mas se morasse seria assim e eu iria de trem visitá-la.
          — minha avó está num asilo em São Paulo.
          — só tem uma?
          — a outra está no cemitério da Lapa.
          — cabra, esse cemitério aí não presta.
          — e suas avós estão onde?
          — uma está no céu.
          — a outra?
          — no inferno.
          — ela não acreditava em deus?
          — demais! a que não acreditava é que foi pro céu.”


“na volta para casa, Joelson sentiu que a casa estava fora do lugar e por instantes se perdeu até ver surgir do silêncio o som do fim. seu pai estava morto. a casa, como um farelo de doce permeado por formigas, confessava o que não desejava ser dito à criança que desde cedo se tornava adulto. agora era o homem da casa, como disse alguém que não soube bem o que dizer no momento do luto. caminhava naquele túnel feroz entre perdigotos ansiosos pela palavra de consolo perante o inconsolável.”


“(...) nosso ratinho estava preso na gaiola submersa. ele nadava desesperadamente sem conseguir se livrar dali. o luar iluminava a água e a gente conseguia ver a expressão de desespero do nosso amigo. a sentença de morte foi dada e ele nem pode se defender. agora ele era tão próximo de mim. quando vemos o sofrimento de um ser vivo de perto a gente percebe que não há diferença alguma entre nós. os ratos nascem, crescem, fazem o que tem que ser feito pra sobreviver e de repente morrem. às vezes são assassinados por outros ratos, ou por outras espécies de seres vivos. eu sou um homem ou um rato?”


“(...) logo o menino virou debate na cidade. o prefeito quis chamar o fantástico e pediu pra esposa rezar. pra que a gravidez durasse até a próxima eleição. objeto de curiosidade turística numa cidade rústica onde falta hotel e pensão. pensão o menino não teria, pois pai sequer existia. era a própria mãe. a cidade em bolhas religiosas se dividia fazendo do grávido um cabo de força. no terreiro era festa de pombagira. já os católicos queriam a dor de um parto. as feministas e os ateus pediam aborto a torto e a direito. o pessoal da toga do direito não sabia o que dizer e decretou recesso de nove meses até o sapo nascer. turismo, dinheiro, reza, protesto. a cidade pegava fogo! mas quem pedia fogo eram os evangélicos.”


          “— você não viu o presidente falando que as pessoas precisam ter revólver em casa pra segurança da família?
          — então, meu avô deu revólver pra minha avó. ela usou duas vezes. uma vez quando o corinthians ganhou o campeonato de 77 e outra quando meu avô traiu ela.
          — ela matou seu vô?
          — não. minha vó era ruim de mira e meu avô era bom de corrida.
          — meu avô deu um tiro na cabeça.
          — como assim?
          — não sei. tava triste. não tinha o que fazer em casa. resolveu usar o revólver.”


“(...) o ser humano se fez o personagem principal aqui nesse mundo. por isso vivemos contando a história da humanidade. estamos cagando pras outras espécies em extinção, e matar um rato se torna um ato normal. rato é uma peste e precisa ser exterminada, por isso existem os dedetizadores. por sorte dos ratos e azar dos seres humanos existem três ratos para cada um de nós e uma fêmea pode reproduzir cerca de duzentos filhotinhos por ano. se um rato pudesse escrever um livro sobre a história da ratanidade, eles seriam os heróis e não os inimigos.”


“ouvi um barulho lá embaixo. eram ratos. eles habitavam a sala. viviam no forro da estante. faziam barulhinhos inconvenientes. a gente não poderia deixar quieto. meus pais armaram um plano. compraram uma ratoeira. daquelas ratoeiras gaiolas. o rato entra pra comer o alimento e nunca mais sai dali. acho que foi o que aconteceu comigo nessa vida. entrei pra comer um queijo. nunca mais saí. adoro queijos. os ratos nem tanto. o problema é ficar preso neste mundo cruel. naquela época ainda não entendia a maldade do ser humano. nem sabia que existia. pensando bem agora, na escola, a cada dia uma pessoa era escolhida pra ser o rato. na verdade os ratos eram sempre os mesmos e não existia esse negócio de bullying. já fui rato e sei como é. já ouvi histórias de ratos que se mataram por aí. cansaram de ser cobaias de piadinhas maléficas e desapareceram do colégio. foram parar num rio sujo feito uma ratazana ou se mataram por causa de um queijo. como se o queijo fosse a paz que eles procuravam. enquanto existir seres humanos vivos não haverá paz.”


“(...) me deixei levar pelo fluxo do rio como se eu fosse a onda, me sentia água como se fosse apagar o fogo que queimava a mata. eu, a plenos pulmões, os pulmões do mundo, o vapor e o líquido, respiração, a liberdade de um povo, de todos ancestrais, de toda a terra molhada passeando pelas paisagens mais encantadoras, por todos os encantados, pensava nos que ficaram pra trás e sentia culpa e também a missão de prosseguir e manter a chama de nossa alma acesa. fomos, eu e água, adentrando a noite, penetrando o dia e visualizando as cores do ato de amor do sol com a água, fomos limpando os leitos dos caminhos sem florestas e devolvendo a vida aos já retificados trechos de nossos povos já exterminados, da nossa natureza já assassinada. alagamos ruas e deixamos o alimento àqueles necessitados excluídos da dignidade. exilados do mundo originário. (...) cheguei em maré cheia ao oceano. em seu fundo abissal me tornei seu, com a mesma entrega com que fui da terra. (...) em volta de mim milhares de estrelas e nesse céu que a lua invade num rastro em movimento encontro a divindade, e com ela realizo a noite infinita de nossa continuação.”


Presentes no livro de contos “Os ratos vão para o céu?” (2025), de Vitor Miranda, páginas 35, 149, 59-60, 68, 45-46, 36, 129, 103, 51, 41, 21, 87, 41, 39 e 27-28, respectivamente.


Aforismos de Vitor Miranda em “Os ratos vão para o céu?”

“homem quando vê outro homem chorando finge que nada está acontecendo”

“o mundo lá fora não parecia tão legal quanto dentro de mim”

“a vida é traiçoeira porque a gente passa o tempo todo sabendo que vai morrer. é melhor darmos um jeito de ser divertido”

“toda vez que vou pro rio [de janeiro] minha mãe acha que vou morrer”

“as pessoas sempre falam ‘não sei’ quando a resposta é triste”

“é preciso ver a falta para sentir a incompletude”

“o corpo é só algo que existe pra alguém lembrar que a gente viveu”

Aforismos presentes no livro de contos “Os ratos vão para o céu?” (2025), de Vitor Miranda, páginas 47, 73, 68, 129, 144, 106 e 68, respectivamente.

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