Pular para o conteúdo principal

Vinte passagens do livro de memórias Visita ao pai, de Cristovão Tezza



“(...) A atmosfera de Natal e de fim de ano, essa tortura a que milhões de pessoas se submetem em honra à felicidade obrigatória, reforçava o desespero. Como escapar?”


“(...) Da infância, tenho lembrança viva das surras que levei. Nenhuma novidade. A pancada é a norma imemorial, o grande professor universal na formação de praticamente todas as culturas do mundo. Diante desse milhão de anos, o paradigma dominante contemporâneo de não violência e solidariedade universais, fruto sofrido e prolongado da cultura ocidental iluminista e urbanizada, transformada a duras penas em política de Estado, com graus diferentes de convicção, sempre de incerta implementação judicial e sob o fogo incansável das extremas direitas, das ditaduras de esquerda, das razões nacionais, da estupidez religiosa e dos movimentos regressivos, é um mero pingo romântico de verniz. Os monstros físicos e mentais continuam todos à solta.”


“(...) Na vida concreta, nunca há tempo para pensar, refazer, mesmo arrepender-se, esse sofrimento inútil — um estalo e já estamos adiante. Outro estalo e estamos mortos.”


“Na porta do quartel, de maleta na mão. está meu pai, que, como todos nós, não pediu para nascer (mas que, também como todos nós, terá em pouco tempo de responder moral, emocional e criminalmente, até a morte, a cada gesto da vida que recebeu de presente), neto de colonos italianos transplantados para um sul do Brasil salpicado de indígenas, logo expulsos, dizimados ou mal absorvidos, incapazes de resistir àquela civilização invasora. A simpática figura exótica exaltada comedidamente por Montaigne quatro séculos antes e mais tarde cantada por Alencar como símbolo da brasilidade era de fato e de direito apenas um trambolho a ser varrido do caminho, seguindo a cartilha clássica dos povos originários das Américas. Um povoamento que, por si só, parecia relembrar, em cada atrocidade, sempre o desejo de raiz europeia do que quer que se pudesse ou se quisesse imaginar ou entender como ‘nação brasileira’. (Num relance me ocorre a eventual relação entre a colonização vitoriosa do sul do Brasil — alemães, italianos — e a inacreditável presença de células neonazistas ativas na região, mas há complicadores enormes na conclusão simplista, o que é outra história.)”


          “(...) o que herdei, por comportamento, do meu pai? Certamente o método, um certo espírito de disciplina, a preguiça culpada, alguma clareza do que eu quis desde sempre, uma sinceridade frequentemente suicida (e às vezes homicida, pavio curto que escapa, vingança de algo que nunca sei bem o que é mas que parece me ameaçar), a dificuldade emocional no trato afetivo com as mulheres, o isolamento escapista das cabeças livrescas, um senso agudo de responsabilidade pessoal e a volúpia da rotina, que é um motor conservador do mundo inteiro. E vou me espantando, a cada golpe de pá que revira o chão da memória escrita do meu pai, com esse rosário de semelhanças impossíveis.
          Algo central, entretanto, não herdei: a alma da obediência. Foi o espírito da desobediência que sempre me moveu: uma desobediência medida e controlada, é verdade, como um agente secreto de mim mesmo, sempre sonhando em direção contrária, porque lá é melhor. A desobediência silenciosa do prisioneiro. Um horror instintivo pelo mundo oficial; a náusea da pompa e da medalha no peito. Para entender esse horror, talvez aqui seja o caso de abandonar a chave da soberba, o orgulho da vontade própria, a pequena lasca da inclinação pessoal ou a simples força da natureza, que não se explica; a desobediência, enquanto eu crescia, estava em toda parte, era o ar do tempo que se respirava, a irresistível fragrância, a flauta de Pã que nos levaria à felicidade. Se os anos 1930 que formataram meu pai eram os anos universais da obediência em ordem-unida, os anos 1960, com a inédita prosperidade libertária que parecia cair do céu em toda parte, abriram as portas maravilhosas da desobediência. Entre o pequeno colono semiletrado que batia às portas do quartel em 1931 e o pequeno narciso que lia poemas e acendia seu primeiro cigarro em 1968 havia o abismo do tempo, um outro mundo e um outro Brasil.”


          “Minha imagem do militar, da vida militar, do militarismo, de toda a imensa constelação de signos e valores vinculados às Forças Armadas foi, desde a origem, a pior possível. Obviamente o golpe militar de 1964, o sobregolpe de 1968 e a barbárie institucional do submundo policial-militar que avançou pelos porões dos anos 1970, com o consentimento (quando não o apoio direto) e a proteção dos generais, tiveram um papel esmagador na minha percepção, ainda mais vivendo, numa época-chave da vida, num ambiente e numa cultura de irreversível inclinação mutante, libertária, alternativa e transformadora. De um lado, uma influência diretamente familiar, via contato diário com os irmãos mais velhos, que traziam para casa a agitação universitária naturalmente de esquerda, contestatória, com um viés político-racionalizante; e de outro, na osmose típica daqueles anos, pelo contato precoce com a comunidade artística, sempre banhada de irracionalismos anárquicos, que se tornaria central no meu projeto primeiro de escritor. Uma memória forte daqueles anos é a de um vizinho militar que, de manhã cedo, quando eu saía para as aulas do Colégio Estadual do Paraná, uma ou duas vezes me esperou na calçada para sondar, o tom fingidamente amistoso, quem eram os colegas da universidade que se reuniam com meus irmãos à noite para discutir política. A percepção instintiva era a de ser um clandestino no próprio país, um sentimento que nos persegue.
          Naquele horizonte, não poderia ser diferente: o campo semântico despertado pela farda, na minha passagem à vida adulta, combinava com estupidez, truculência, ditadura e covardia. Um pouco disso se deve ao relativo conforto de alguém que teve algumas vantagens sociais, e principalmente capital cultural, garantidos exatamente pelo esforço de pai e mãe na dura luta pela prosperidade familiar do final dos anos 1940 e ao longo dos anos 1950, acompanhando a rápida ascensão econômica do país depois da Segunda Guerra. Aquela já era uma nova classe média”


          “(...) Há duas memórias de família, pitorescas, sobre o casamento, que minha mãe contava entre risadas. Na primeira, consta que meu pai não queria que houvesse missa, apenas o casamento; como o padre resolveu rezar a missa assim mesmo, o noivo se retirou da igreja, só voltando para o ritual do ‘sim’ e da troca de alianças, o que criou um mal-estar geral. As razões do gesto não estão claras: custo a entender a birra dele por uma aparente picuinha no momento central de sua vida, ainda mais no contexto carola dos parentes da minha mãe, pelos quais sempre se esforçou para demonstrar respeito.
          O filho ficcionista vê um leque de possibilidades, da recusa a pagar ao padre o trabalho extra da missa não solicitada (talvez a hipótese mais provável — o anticlericalismo se soma ao sempre sólido espírito de economia camponesa), a um gesto psicanalítico de negação do casamento que, como todo casamento sólido, decretaria o fim consentido de sua liberdade em troca dos pequenos prazeres do amor. Na segunda história, também contada entre risos, ao viajarem de trem a Blumenau em lua de mel, minha mãe chorava ao seu lado em soluços altos, mesmo escandalosos, de tal modo que os outros passageiros, preocupados, perguntaram o que havia acontecido. E meu pai, desenxabido, explicava: ‘É que nós nos casamos hoje’. A história é engraçada — e, como no chiste freudiano, reveladora.”


          “Havia uma ditadura ao fundo, tanto para meu pai como para mim, em momentos históricos paralelos que, pelo simples arbítrio de sua existência, tudo permite e tudo justifica. Parafraseando Dostoiévski, se o princípio da lei não existe, tudo é permitido. Sabemos que não é assim: na vida real, sem Deus ou sem lei, sempre algum impulso organizador se mantém e se recompõe em graus diferentes, num vasto espectro de possibilidades, mas para quem está em formação, parece não haver nuances na vida. A ideia de uma meritocracia democrática certamente existia para o meu pai, e era um valor rígido e presente. As cartas demonstram; ele trata as notas que tira nas provas como exatos termômetros de sua competência — o êxito ou o fracasso serão dele, e de mais ninguém. Mas o conceito de uma democracia política certamente era muito mais frágil para quem viveu o tempo dele, no meio de duas guerras mundiais e de um espírito coletivo tribal e totalitário (nazismo e comunismo produzindo fascismos em toda parte com um cardápio de soluções finais e milagrosas regadas a sangue), do que para quem viveu o meu tempo, já alimentado pela imensa prosperidade capitalista ocidental de pulsão democrática do pós-guerra. O princípio elementar de bem e de mal, e portanto de justiça, na escala cotidiana, que ele apreendeu por osmose primeiro na família e em seguida no seu aprendizado militar, não se estendia ao país, à sua escala abstrata e social. Não é simples aceitar que um país não é uma ‘família’ e que não deve funcionar com a sua lógica.
          Uma difusa mentalidade positivista, a ‘ordem e o progresso’ hoje temperada pela mística evangelista, sonha com soluções de força, racionalizadas de cima para baixo, que hão de melhorar o mundo pelo simples carisma de algum pai redentor: romper essa armadilha moral e conceitual, de escala familiar e pastoral, para uma compreensão democrática da organização política e de respeito à diferença, é um salto abstrato difícil, que exige um estado de transcendência especial, e frágil, porque não pode haver deuses em jogo.”


“(...) sempre percebi a mim mesmo como alguém naturalmente desprovido de fé, não como resultado de alguma luta argumentativa, uma conclusão difícil, uma resposta tensa, uma escolha ou um rompimento, mas como pura e simples percepção intuitiva, a constituição mesma do olhar. Um empirista congênito. Um homem sem fé. Ponto. Nada de crises de consciência, embates morais ou intelectuais, sofrimentos secretos ao viver a transformação de uma velha crença consuetudinária em um horizonte puramente racional. Talvez um defeito cognitivo de origem. Nenhum choque dialético a exigir alguma síntese, pela qual eu me libertaria, ou com Deus, ou sem ele. Na verdade, não tenho nenhuma memória religiosa de mim mesmo, nenhum momento de transcendência pessoal, nenhuma concentração solitária, antevisão divina, presságio, milagre secreto — nada. Se não for pretensão demais, ou irrecorrível confissão de fracasso, eu sempre vi apenas o que está diante de mim, a ponto de fazer do mundo algo estritamente concreto, que se pega com a mão. É preciso evitar, entretanto, a soberba materialista, e para isso conto com superstições simplórias (desvirar chinelos largados com a sola para cima ou sempre sair de uma casa pela mesma porta por onde entrei), pequenos jogos farsescos em torno da sorte e do acaso — este sim, um deus poderoso.”


“No casamento, a vida súbito acaba — é preciso nascer de novo, num outro planeta e com outros habitantes, falando uma língua parecida mas que jamais será a mesma. A percepção do espaço é diferente; o tempo também é outro. O cenário original rapidamente desaparece e surge uma estranheza atravancada no espaço em torno, girando com intensidade, carência e pressa; pessoas, casas, sexo, rotina, paixão, trabalho, descanso, fúria, desejo, dinheiro — e filhos, que vêm disruptivos do nada, com exigência esmagadora. Especialmente naqueles anos, era um passo sem volta. (...) percebo que não transparece nele mais nada realmente transformador, exceto a inconfessada corrosão de pequenos e sucessivos fracassos (sempre em busca de um emprego ideal), numa sequência de dificuldades, a um tempo miúdas e urgentes, que rodam num eixo espanado em torno da família, que é tudo. Tudo e nada: Elin, a estranha, com quem vai partilhar quatro filhos, jamais viverá ou lhe dará algo parecido com felicidade.”


Cristovão Tezza (foto: divulgação)


“Todas as famílias do mundo são disfuncionais; por imperfeições de origem, as peças do mecanismo nunca se encaixam no modelo. Há complicações incontroláveis em tudo, da luta pelo pão de cada dia aos assombros inesperados da cabeça, sempre descentrada. Para escapar do destino, a tendência secreta é a invenção da felicidade e de orgulhos miúdos, a criação particular de um mundo paralelo que nos acalma enquanto o fim não chega. O estratagema quase sempre funciona, mas o custo emocional de ocultar as fraturas que se revelam com a força do tempo é cada vez mais pesado.”


“(...) Meu pai sempre foi leitor de livros de autoajuda. Uma das minhas lembranças de infância é um exemplar do célebre best-seller Como fazer amigos e influenciar pessoas, de Dale Carnegie. Lembro também que, anos mais tarde, meu irmão Vicente se divertia contando que, no enterro de Dale Carnegie, teriam comparecido apenas uns quatro ou cinco parentes, todos herdeiros.”


“Nunca fui alguém de partido e, luxo aristocrático, sinto até hoje uma discreta repulsa pelos políticos, uma impaciência pelo jogo de ocultação que é o talento do seu métier, às vezes assombrado pela inacreditável estupidez que os move, embora saiba racional e perfeitamente que no mundo inteiro não há nenhuma solução para nada sem eles, e que democracia formal, pluralidade e vida política são valores civilizatórios altamente desejáveis e mutuamente indissociáveis, escolhas de raiz iluminista que precisam ser sustentadas e defendidas geração a geração. É um dado da cultura, não um broto espontâneo da natureza. Fora do horizonte político, tudo é pior, paralisante, regressivo, excludente e violento.”


          “Para o filho escritor, trinta anos mais tarde, a simples ideia de ‘noivar’ seria banhada de ridículo, o dourado falso das convenções, a palhaçada dos anéis; mais ridículo ainda, o pedido de autorização à família, quando a simples ideia da relação amorosa assumida significaria por si só o rompimento com a escravidão familiar — um olhar, de fato, adolescente. A instituição do casamento se percebia como um kitsch existencial, um teatro de isopor às vezes grotesco, o rito do fim de uma vida, esmagada por uma família antes e outra depois. Nunca usei aliança, de comum acordo com a minha mulher; hoje, passando dos setenta anos, especulo se haveria alguma pista simbólica nessa ausência, que jamais nos incomodou (ou só a mim?, temo perguntar) e na qual nunca pensei, hippie retardatário — para mim, nefelibata, foi uma surpresa, há alguns anos, a percepção inesperada de que há nela a mensagem silenciosa de uma linguagem universal que as pessoas levam a sério.
          Quem se ama se junta, feito pássaro em voo, e permanece livre: eu acreditava nesse postulado poético-libertário. A poderosa fantasia do amor livre (uma fantasia que, olhando daqui, soava predominantemente masculina, a legalização do livre desejo, cabendo à mulher o papel passivo de receptáculo da liberdade) parecia dar fim à terrível gaiola do sexo que atormenta a condição humana civilizada. Era, é claro, um ideário jovem de um leitor voraz do espírito do tempo, a escrita emocionante de uma utopia que o escritor habitava pisando em lugar algum. Jamais vivi, de fato, a sensação concreta da liberdade; ela não depende de mim. Como diria meu pai, ‘alma de criança’, e crianças não são livres.”


“(...) O movimento integralista — uma versão tropicalizada, ornada com elementos exóticos ou mesmo decididamente carnavalescos (se não fossem trágicos) do fascismo que se espraiava na Europa — tinha (tem, porque prossegue latente no nosso imaginário) o multicolorido toque de Policarpo Quaresma que parece despertar de tempos em tempos, em clamor e fúria, a disfuncionalidade brasileira: patriotadas candentes plenas de soluções finais, positivismo científico, indigenismo metafísico, helenismo cafona (o sigma como símbolo do movimento, uma suástica cabocla), catolicismo ou evangelismo medievais banhados de moralidade cristã, racialismos adaptados ao trópico conciliador, purificação sebastianista em defesa da suposta identidade nacional, tudo redundando em máquinas do atraso, cultura da violência, criação de guetos privilegiados, politização policial e militar e, principalmente, corrosão institucional.”


          “Para não acreditar na fantasia da ‘vontade pessoal’ como motor da história, coringa de todo discurso político autoritário que avança até as franjas ideológicas do fascismo, é preciso reconhecer dois privilégios de origem. O primeiro, básico, foi o acesso direto à terra que as primeiras levas de imigração receberam em detrimento da própria população autóctone, indígena, que foi expulsa, e da população negra ‘liberada’ pela abolição, sem nenhuma compensação (nos Estados Unidos, depois de uma sangrenta guerra civil, pelo menos houve a célebre promessa da União, jamais cumprida, de ‘quarenta acres e uma mula’ a cada ex-escravizado).
          No Brasil, até hoje os remanescentes dos quilombos continuam em luta pela frágil manutenção de seu espaço. Esse foi um privilégio objetivo de boa parte da imigração no sul do país; o segundo é subjetivo, ou indireto: o diferencial da educação, na medida em que os imigrantes não se estabeleceram aqui como tábula rasa em termos de integração cultural civilizatória. Havia amarras culturais comuns, de raiz letrada europeia, ausentes ou negadas por princípio ao descendente de escravizado africano que se abandonava à própria sorte. Embora pobres e miseráveis numa Europa que na prática os expulsava, os imigrantes em grande parte trouxeram e mantiveram um imaginário cultural estável, um horizonte de confortável manutenção local que, pela lógica óbvia da escravidão, seria recusada aos povos da África trazidos à força, com suas múltiplas culturas inteiras esfaceladas na terra estranha. Fragmentadas, e no entanto sobreviventes, pela via popular da oralidade (uma das forças propulsoras da civilização brasileira ágrafa desde sempre — o Brasil é um país que fala) elas deixaram marcas profundas e transformadoras entranhadas em todos os aspectos da vida social — e, como sempre acontece em toda parte, nunca de novo iguais à sua origem.”


“É um pragmatismo afetuoso, seguindo a lógica política dos favores que marcaram o Brasil desde a carta de Caminha, o que por sua vez reproduz a lógica universal da mobilidade social nos estamentos de nobreza e comando que vão mudando de pele mas não de poder — o Estado impessoal ainda é uma miragem. Por tudo que leio nas cartas, o tom edificante do meu pai é sincero. Transparece nele a marca de uma subserviência que é a cicatriz da Brasil profundo, dos padrinhos que movem a máquina pública desde sempre e para sempre. Sei que meu pai, aqui, não passa de um mínimo fio de cabelo — um obscuro professor interino dando aula à noite para recrutas de modo a sustentar sua ambição de se fazer doutor. Mas penso especialmente na dimensão psicológica da relação com o poder, as pequenas alavancas que ele passou anos acionando, enquanto trabalhava duro. Relembro a frase: a lei não ajuda quem dorme. Que mal há nisso?, diria qualquer brasileiro. Ainda mais considerando o discreto ressentimento de quem se esforça muito e não consegue ir adiante.”


“Curiosamente, o patrono do serviço militar obrigatório no Brasil é um poeta parnasiano (...) Nos anos de 1915 e 1916, em pleno morticínio da Primeira Guerra Mundial que devastou o mundo, o poeta fez campanhas cívicas pelo Brasil em defesa do serviço militar obrigatório, sem sucesso. O alistamento compulsório acabaria regulamentado apenas em 1946, com o fim do Estado Novo; e o formato atual da lei é obra dos primeiros meses do golpe militar de 1964 (...) Um poeta parnasiano defender alistamento militar obrigatório parece um fantasma retardatário do século XIX, o atraso renitente assombrando o país, que até hoje — o fenômeno bolsonarista é a prova — imagina-se tutelado por forças armadas. (...) Mas, pela importância simbólica de Olavo Bilac, também nos diz alguma coisa da literatura brasileira, o seu caráter conservador e ornamental, às vezes com forte tonalidade oficial (é eloquente o fato de o maior escritor brasileiro, Machado de Assis, perfeita síntese de todas as nossas contradições, ter sido também o fundador da Academia Brasileira de Letras), o seu amor à autoridade e o pendor didático que nunca se perdeu por completo — a missão a cumprir, o império do ideal, o sacrifício das letras, a glória suada, o triunfo do bem. Também é notável um certo imperativo ético-literário de identificação político-partidária, escancarada ou implícita, mas sempre visível, como selo de qualidade moral — nesse sentido, a presença de ditaduras explícitas (no século XX foram mais de trinta e cinco anos de regime de exceção) deu as balizas de referência que acabaram por se tornar permanentes, uma condição natural de engajamento.”


“(...) sempre há o perigo de outras contaminações, sombras discretas mas insidiosas: o chamariz da ancestralidade, esse culto ostensivo que está na alma oral de todas as culturas tribais e que ressurge forte na vida contemporânea, a mitologia dos antepassados servindo de capa ideológica aos mais antípodas pontos de vista — isso jamais me tocou. Sempre vivi a fantasia utópica de começar do zero, alguém novo em folha, um ser que se vê dono absoluto de seu nariz. Não sou um deus nórdico, nem herdeiro de Júlio César, nem um príncipe Zumbi, nem um samurai ou um sacerdote inca — nada. Era menos um desejo de me livrar da tribo e mais o contrário, como se eu quisesse me livrar da culpa de pertencer a eles: eles que se livrassem de mim.”


          “(...) ao mundo da minha avó Ernestina Bousfield, mãe da minha mãe, a imagem que me marcou de uma pessoa religiosa, a velhinha carola do anedotário popular. (...) Devo o meu nome à linhagem dela; uma rápida pesquisa na internet me revela que seu bisavô por parte de pai foi um certo Cristopher Bousfield, nascido em 1800, casado com uma certa Ellenor, cinco anos mais nova — e fico matutando o que teria levado um casal de ingleses a se refugiar naquele fim de mundo da ilha do Desterro na primeira metade do século XIX. Em 1835 veio ao mundo Christóvão Bousfield Junior, já abrasileirado pelo ditongo, meu trisavô, morto em 1884; seu filho Augusto, de 1875, é o pai de um renascido Cristovão (que terá papel importante na correspondência do meu pai) e de dona Ernestina, minha avó, que nasceu Iá no século XX, em 1902.
          (...)
          Cristovão Bousfield, que morava em Porto Alegre, era um solteirão que — na minha memória emocional — partilhava do mesmo instinto punitivo da família. Das conversas de família, consta que ele teria ideias comunistas de purificação do mundo, o que apenas reforça a inclinação ativamente religiosa desse ramo dos parentes. ‘Quando vier o comunismo, esta farra vai acabar’ era uma das frases que ele costumava repetir com volúpia, de acordo com a crônica familiar que me ficou — ‘farra’ aqui significava qualquer coisa capaz de nos alegrar, plagiando o célebre puritano de Mencken, alguém que não suporta a simples ideia de que num momento, por qualquer razão, alguma pessoa em algum lugar do mundo possa se sentir feliz. Eis o tio que me deu o nome.”


Presentes no livro de memórias “Visita ao pai” (Companhia das Letras, 2025), de Cristovão Tezza, páginas 268, 21, 15, 16-17, 277-278, 68, 347-348, 205-206, 24, 346, 41, 173, 91-92, 257-258, 94, 159-160, 204, 67, 10-11 e 32-33+38-39, respectivamente.


Aforismos de Cristovão Tezza em “Visita ao pai”

“Que importância tem o senso de realidade na vida concreta? Não são os fatos que nos movem; é a imaginação”

“Ninguém cabe inteiro em si mesmo”

“Quando não há um pai a imitar, inventa-se outro”

“Os alunos sempre têm a mesma idade; só você envelhece”

“Na verdade, não criamos nada — apenas repetimos”

“O problema é que a realidade nunca faz sentido; isso é tarefa exclusiva da ficção”

“‘Idealista’, essa palavra genérica e potencialmente vazia que esconde tudo que há de bom e de ruim”

“A escrita inventa, descreve, transforma, domina e controla o mundo com uma radicalidade que nenhuma cultura oral jamais conseguirá atingir”

“A rigidez moral como estratégia de ocultação é um clássico universal, na política, na literatura, na vida cotidiana”

“O herói romântico-nietzschiano que moldou a mítica e orgulhosa solidão do escritor moderno desapareceu sob o tropel coletivo inapelável dos soldados das Cruzadas modernas”

“É só a distância que dá perspectiva”

“O Leviatã do Estado — não há a mais remota possibilidade de vida fora dele”

“É muito difícil um acadêmico de primeira linha tornar-se ao mesmo tempo um grande escritor”

“A escrita escreve, inventa e define as pessoas, que passam a ser mais reais que o modelo de origem”

“As palavras criam realidade assim que se pronunciam”

“Para quem vive, o instante presente é sempre maduro”

“Devo repetir meu pai e escrever para sempre? E para quem?”


Aforismos presentes no livro de memórias “Visita ao pai” (Companhia das Letras, 2025), de Cristovão Tezza, páginas 97, 195, 72, 237, 219-220, 420, 91, 56, 140, 237, 155, 138, 137, 152, 402, 155 e 194, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Dez passagens de Clarice Lispector no livro Laços de família

Clarice Lispector (foto daqui ) “A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo do orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver no armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felici...

Dez passagens de Jorge Amado no romance Capitães da Areia

Jorge Amado “[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava ‘meu padrinho’ e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A...