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O demônio do meio-dia — Uma anatomia da depressão, de Andrew Solomon — Parte 01

Andrew Solomon
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"A vida é repleta de tristezas: pouco importa o que fazemos, no final todos vamos morrer; cada um de nós está preso à solidão de um corpo autônomo; o tempo passa, e o que passou não voltará. A dor é a nossa primeira experiência de desamparo no mundo, e ela nunca nos deixa (...) Mesmo as pessoas que se apoiam numa fé que lhes promete uma existência diferente no além não podem evitar a angústia neste mundo; o próprio Cristo foi o homem dos sofrimentos. Contudo, vivemos numa época de paliativos crescentes. Nunca foi tão fácil decidirmos o que sentir e o que não sentir"


"Tornar-se deprimido é como ficar cego, a escuridão no início gradual acaba englobando tudo; é como ficar surdo, ouvindo cada vez menos até que um silêncio terrível o envolve, até que você mesmo não pode fazer qualquer som para penetrar o silêncio. É como sentir sua roupa lentamente se transformando em madeira, uma rigidez nos cotovelos e joelhos progredindo para um terrível peso e uma isolante imobilidade que o atrofiará e, dentro de algum tempo, o destruirá"


"Não vamos fazer rodeios: Não sabemos realmente o que causa a depressão. Não sabemos de fato o que constitui a depressão. Não sabemos de fato por que certos tratamentos podem ser eficazes para a depressão. Não sabemos como a depressão abriu caminho através do processo evolucionário. Não sabemos por que alguém fica deprimido com circunstâncias que não perturbam outro. Não sabemos como a vontade opera nesse contexto"


"Existe uma expressão russa que diz: se você acorda sem sentir nenhuma dor, sabe que está morto. Embora a vida não seja apenas dor, a experiência da dor, que é especial em sua intensidade, é um dos sinais mais seguros da força da vida (...) Acredito que a dor precisa ser transformada, mas não esquecida; contrariada, não obliterada"


"Encontrei-me com Phaly Nuon, que já fora candidata ao Prêmio Nobel da Paz e estabelecera um orfanato e um centro para mulheres deprimidas em Phnom Penh. Ela obtivera um enorme sucesso em ressuscitar mulheres cujas aflições mentais eram tamanhas que outros médicos as haviam abandonado à morte (...) Phaly Nuon prosseguia num sistema formulado por ela. 'Eu o aplico em três etapas (...) Primeiro, ensino-as a esquecer. Temos exercícios que fazemos a cada dia, para que a cada dia elas possam esquecer um pouco mais as coisas que jamais esquecerão inteiramente (...) Quando aprenderam bem o esquecimento, eu as ensino a trabalhar. Seja qual for o tipo de trabalho que querem fazer, eu descubro um modo de ensiná-lo (...) E então, quando finalmente já dominaram o trabalho, eu as ensino a amar (...) No final, eu lhes ensino o mais importante: que essas três habilidades – esquecer, trabalhar e amar – não são isoladas e sim parte de um enorme todo. É a prática dessas três coisas juntas, cada qual como parte das outras, que faz a diferença (...) todas passam a entender isso e, quando o fazem, estão prontas para entrar novamente no mundo'"


"Não há vida que não contenha motivos para o desespero, mas algumas pessoas chegam perto demais da borda, enquanto outras conseguem ficar tristes, mas numa clareira, à distância do abismo"


"A depressão apoia-se fortemente num sentimento paralisante de iminência (...) O que lhe acontece na depressão é horrível, mas parece muito embrulhado no que está prestes a lhe acontecer (...) Morrer não seria tão ruim, mas viver à beira da morte, a condição de não-exatamente-caindo-no-abismo-geográfico é horrível (...) A depressão foi longe demais quando, apesar de uma ampla margem de segurança, você não consegue se equilibrar mais. Na depressão, tudo que está acontecendo no presente é a antecipação da dor no futuro, e o presente enquanto presente não mais existe"


"Eu pensava que quando nos sentimos pior, lágrimas jorrassem, mas a pior dor possível é a dor árida da violação total que chega depois de todas as lágrimas já terem exaurido. A dor que veda cada espaço através do qual outrora você entrava em contato com o mundo, ou o mundo com você. Essa é a presença da depressão severa"


"Quando a vida estava finalmente em ordem e todas as desculpas para o desespero tinham sido exauridas é que a depressão chegou, dissimulada com suas leves passadas, e estragou tudo. Estar deprimido quando se experimentou um trauma ou quando sua vida está claramente uma bagunça é uma coisa, mas sentir-se deprimido quando você finalmente está distanciado do trauma e sua vida não é uma bagunça é horrivelmente confuso e desestabilizante. Claro que você está consciente de causas profundas: a perene crise existencial, as dores esquecidas da infância distante, os leves erros cometidos com pessoas agora falecidas, a perda de certas amizades por sua própria negligência, o fato de não ser nenhum Tolstoi, a ausência do amor perfeito neste mundo, os impulsos da cobiça e falta de caridade que jazem perto demais do coração"


"O externo determina o interno tanto quanto o interno inventa o externo. O que é tão pouco atraente é pensar que, além de todas as outras fronteiras indistintas, os próprios limites daquilo que nos torna nós mesmos estão fora de foco. Não há um eu essencial que permanece puro como um veio de ouro sob o caos da experiência e da química. Tudo pode ser mudado, e precisamos entender o organismo do ser humano como uma sequência de eus que sucumbem uns aos outros ou escolhem uns aos outros. E, no entanto, a linguagem da ciência, usada na formação de médicos e, cada vez mais, em textos e conversas não-acadêmicos, é estranhamente perversa"


"Às vezes ela me dominava nas noites de sexta-feira na faculdade, quando o barulho da festividade forçada esmagava a privacidade da escuridão"


"Não é agradável experimentar a decadência. Ver-se exposto às devastações de uma chuva quase diária, e saber que estamos nos transformando em algo débil. Perceber que uma parte de nós cada vez maior irá pelos ares com o primeiro vento forte, transformando-nos em alguém cada vez menor (...) A depressão começa no insípido, enevoa os dias numa cor átona, enfraquece ações ordinárias até que suas formas claras são obscurecidas pelo esforço que exigem, nos deixando cansados, entediados e obcecados com nós mesmos – mas consegue-se superar isso"


"É possível (embora improvável, nos tempos presentes) que, através da manipulação química, possamos localizar, controlar e eliminar o circuito de sofrimento do cérebro. Espero que nunca façamos isso. Já que removê-lo significaria aplainar nossas experiências: prejudicar uma complexidade que é muito mais valiosa do que o caráter doloroso de suas partes. Se eu pudesse ver o mundo em nove dimensões, pagaria um alto preço para fazê-lo. Preferiria viver para sempre no nevoeiro do sofrimento a desistir da capacidade de sentir dor"


"Se a primeira parte de uma biografia emocional é formada por experiências precursoras, a segunda é formada por experiências desencadeadoras. As depressões mais severas são precedidas por depressões menores que passam amplamente despercebidas ou simplesmente inexplicadas"



Trechos presentes no livro de ensaios "O demônio do meio-dia – Uma anatomia da depressão" (Objetiva, 2002), de Andrew Solomon.

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