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Reflexões do personagem escritor Daniel Mantovani, no filme El Ciudadano Ilustre


No longa argentino El Ciudadano Ilustre (2016), de Gastón Duprat e Mariano Cohn, traduzido como O Cidadão Ilustre no Brasil, o personagem Daniel Mantovani (magistralmente interpretado por Oscar Martínez), escritor laureado com o Prêmio Nobel, traz reflexões muito importantes. Segue abaixo uma seleta das melhores desse excelente roteiro de Andrés Duprat.

"A melhor política cultural é não ter nenhuma. Defender a nossa cultura? Sempre consideram a cultura como débil, como algo frágil, raquítico, que deve ser custeado, protegido, promovido e subsidiado. A cultura é indestrutível, capaz de sobreviver às piores hecatombes. Havia uma tribo selvagem na África, em que na sua linguagem não existia a palavra 'liberdade', sabem por quê? Porque eram livres. Creio que a palavra 'cultura' sai sempre da boca da gente mais ignorante, estúpida e mais perigosa. Eu, pessoalmente, não a uso nunca."

"Ramiro, me pareceram muito bons os seus contos. (...) Você tem um estilo delicado, fluido, sem armadilhas ou truques, uma prosa simples, clara... [Demasiado simples?] Não. O simples e o claro pode ser subversivo e perturbador. Pense em Kafka. Nada mais simples e transparente que as de Kafka e, ao mesmo tempo, nada mais perturbador. Fazer do simples sempre um ato de generosidade artística."

"Um escritor, um artista em geral, é alguém que não aceita o mundo tal como é; alguém que a realidade não o alcança, ou não o satisfaz, e precisa criar, inventar coisas novas para incorporar ao mundo. É uma pessoa comum, digamos, normal, que não precisa ser feliz no mundo tal como ele é. Não sei o que é melhor. E, além disso, sou escritor porque eu não tinha saída; em todo o resto eu fracassei."

"Vamos supor que o que dizem é verdade. Que eu sou o monstro que eles descrevem. Isso me invalidaria como artista? Eu escrevo literatura, romances, ficções, não escrevo panfletos sobre comportamento ético. E muitas das condutas lamentáveis de meus personagens infelizmente fazem parte do nosso mundo. E que as coisas que os meus personagens fazem não significa que eu aprove ou desaprove essas ações. Aprovam os assassinatos os autores de romances policiais? [Mas por que não escrever sobre coisas agradáveis?] Eu desisto. A sua pergunta contradiz toda uma vida dedicada à literatura."

"Hoje eu sou uma figura ilustre, embora muitos não saibam o porquê. Uma espécie de prócer, para tirar do armário, espanar, e se apresentar em algum evento cultural, e dizer algumas frases para a ocasião, e depois voltar a ser guardado no armário. Um destino definitivamente provinciano para alguém que, há mais de trinta anos, tentou escapar justamente disso. No entanto, para ser um prócer, me falta algo fundamental, a minha própria morte."


"Olha, eu não fui nem irei à sua casa, porque eu não te conheço, nem sei quem você é, certo? E você também não me conhece, não tem a mínima ideia de quem eu sou e como penso. Os personagens dos meus livros são justamente isso: personagens de ficção, não tem uma existência real. Se você se emocionou achando que o seu pai era um desses personagens, eu sinto muito. Nós não temos nada em comum, exceto ter nascido aqui, ou seja, nada. Eu não ferrei com vocês, como você diz. Não tenho obrigação de ir para a sua casa apenas porque você me convidou. Eu não sou um objeto que você pode dispor. Está claro? Convide àqueles que se interessem com o seu convite. Porque não funciona como você pensa. Deve ser de ida e volta, recíproco."

"(...) estou convencido que esse tipo de reconhecimento unânime está relacionado, direta e inequivocadamente, ao ocaso de um artista. Este prêmio [Nobel de Literatura] revela que a minha obra coincide com os gostos e as necessidades dos jurados, de especialistas, acadêmicos e reis. Evidentemente eu sou o artista mais cômodo para vocês. E esta comodidade tem muito pouco a ver com o espírito que deve ter todo o fazer artístico. O artista deve interpelar, sacudir, por isso o meu pesar pela minha canonização final como artista. A mais persistente das paixões, porém, é mero orgulho; me leva hipocritamente a agradecer por haver determinado o fim da minha aventura criativa. Mas, por favor, não quero que com isso interpretem que estou responsabilizando vocês. Absolutamente. Aqui há um único responsável. E este sou eu."

"Confesso que não me cai tão mal ter detratores que me repudiam com tanta veemência. E, apesar da tremenda brutalidade dessas ações, sinto uma íntima satisfação ante uma expressão do povo contra o instituído, ou seja, contra mim. Mas vamos ao ponto. Como experiente observador da comédia humana, sinto uma obrigação de fazer deste mundo um lugar menos horrível. Eu sei que é uma batalha perdida. Mas isso não significa que eu vá me negar a lutar. Vocês continuem assim. Continuem igual. Que aqui nunca se mude nada. Permaneçam sendo uma sociedade hipócrita e estupidamente orgulhosa de sua ignorância e sua brutalidade. Lamento ter causado tantos transtornos, continuem com as suas aprazíveis vidas, continuem a fazer de Salas este paraíso cativante."

"Todos os escritores são egocêntricos, autorreferenciais, narcisistas e vaidosos. Creio que isso constitui uma ferramenta altamente imprescindível para o ato de escrever: lápis, papel e vaidade. Sem isso, você não pode escrever nada."

"[Quanto há de ficção no romance, e quanto há de realidade?] Importa isso, meu amigo? Uhn? A realidade não existe. Não há fatos, há interpretações. A verdade, ou o que chamamos de verdade, é uma interpretação que prevaleceu sobre outras."

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