Pular para o conteúdo principal

Dez passagens de Vitor Miranda no livro de contos O que a gente não faz para vender um livro?

Vitor Miranda (foto daqui)


“– você não fala, não?
– às vezes.
– o que você tá fazendo aqui? não vai comer ninguém.
– como você sabe?
– você tem estilo. não precisa pagar.
– quer ir embora comigo?
– não. acabei de meter. tô muito doida.
– tomou o quê?
– rivotril.
– normal. também tomo, às vezes.
– quer me comer?
– quero. mas sem pagar. sou poeta. não tenho dinheiro. vim só pra conversar.
– veio usurpar nossas histórias.
– tipo isso.
– cuzão.”


“(...) papo acadêmico me broxa. um casal de amigos terminou o relacionamento porque virou um namoro acadêmico. não trepavam mais. só disputavam quem tinha o ego mais bonito.”


“– nem me fale. me apaixonei de novo. tô com medo.
– por quê?
– você me entende. primeiro as pessoas se apaixonam pela poesia que é nossa vida e depois vão embora porque nossa vida é uma poesia.”


“(...) quando o dia começa com uma foda ele só pode ir piorando.”


“despertador. o casal acorda. ela coloca os óculos e pega o celular. ele tem vista boa. pega o celular direito, ela olha o Instagram, o WhatsApp, as notícias e o Facebook. ele deixa o Insta pro final. ela levanta e vai pro banho. ele lê devagar. toma banho depois. ela sai do banho, enquanto se troca fala alguma coisa pra si mesma. ele pergunta se era com ele. ela não responde. ele vai cagar com o celular na mão. fica assistindo stories. ela vê os stories que já se atualizaram enquanto toma café. os dois postam conteúdos ao mesmo tempo, no começo curtiam um ao outro. hoje só visualizam o que o outro está fazendo pra ficarem informados, pois já não têm muito tempo pra conversar.”


“precisava vender livros. pandemia e sem grana pra comer, morando de favor. tinha sido expulso da casa do meu pai e depois de uma casa no alto de uma montanha. tava me virando do jeito que dava. daí ficava vendo aquelas pessoas de arte ruim exibindo suas bundas, decotes e tudo o que podiam, ganhando dinheiro. daí vi mulheres geniais ganhando dinheiro pra sobreviver com suas belas artes apelarem e continuarem sobrevivendo. é preciso muito mais do que exibir o corpo. é preciso escrever poemas de autoajuda. me desesperei e comecei a fazer autorretratos nus com meu livro cobrindo meu pau. deu 400 curtidas em duas horas. ‘tenho que aproveitar enquanto tenho 30 anos’. meus poemas batem 30 curtidas e olhe lá.”


“(...) a mulher, com calor, mãe, foi ao mercado e a pouca brisa que balançava seu vestido aliviou o insuportável tempo quente nessa Terra que ainda é oval apesar dos planos de quem que achatá-la e acabar com o horizonte, cenário das belezas mor de quem nasce e morre todo dia, ressuscitando num infalível prazer a rotina.”


“(...) fomos embora conversando sobre coisas mais intelectuais. assuntos de arte. a conversa era tão boa que o tempo voou. é sempre assim. momentos bons andam mais rapidamente. às vezes parece que o tempo está contra a gente. o tempo é Deus, dizem.” 


“não tô com fome, não, mas tem um pedaço de pizza na geladeira. lá fora a noite é suja. São Paulo é uma putaria e todos querem trepar. as ruas gemem, as avenidas gemem, os motores roncam e ninguém goza nessa cidade. infelizes os que nascem aqui. frustrados os que sonharam com esse lugar. sonhos assassinados. pessoas se enforcam. tem um pedaço de pizza na geladeira.”


“– sinto algo esquisito...
– quando ficamos velhos sentimos muitas coisas esquisitas...
– digo algo fora do corpo, ou no interior dele que não é físico. de certa forma parece que as coisas se repetem.
– as conversas, os silêncios?
– sim, também. parece que já vivemos isso muitas vezes.
– e vivemos. se não existisse a imagem física e eu não visualizasse nossos corpos não saberia dizer onde estamos na linha do tempo.
– o silêncio e as conversas estão por aí, né? não cabem no espaço tempo.
– não cabem em nada.
– tal qual o poema. a poesia e a música vão continuar existindo além de nós. quem sabe sobrevivam ao fim da espécie humana.”


Presentes no livro de contos “O que a gente não faz para vender um livro?” (Sempiterno, 2021), de Vitor Miranda, páginas 62-63, 85, 128, 18, 23, 39, 99, 27, 35 e 146, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: Gipsy Kings

A “ Seleta: Gipsy Kings ” destaca as 90 músicas que mais gosto do grupo cigano, presentes em 14 álbuns (os prediletos são “ Gipsy Kings ”, “ Este Mundo ”, “ Somos Gitanos ” e “ Love & Liberté ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 14 álbuns participantes desta Seleta 01) Un Amor [Gipsy Kings, 1987] 02) Tu Quieres Volver [Gipsy Kings, 1987] 03) Habla Me [Este Mundo, 1991] 04) Como un Silencio [Somos Gitanos, 2001] 05) A Mi Manera (Comme D'Habitude) [Gipsy Kings, 1987] 06) Amor d'Un Dia [Luna de Fuego, 1983] 07) Bem, Bem, Maria [Gipsy Kings, 1987] 08) Baila Me [Este Mundo, 1991] 09) La Dona [Live, 1992] 10) La Quiero [Love & Liberté, 1993] 11) Sin Ella [Este Mundo, 1991] 12) Ciento [Luna de Fuego, 1983] 13) Faena [Gipsy Kings, 1987] 14) Soledad [Roots, 2004] 15) Mi Corazon [Estrellas, 1995] 16) Inspiration [Gipsy Kings, 1987] 17) A Tu Vera [Estrellas, 1995] 18) Djobi Djoba [Gipsy Kings, 1987] 19) Bamboleo [Gipsy Kings, 1987] 20) Volare (Nel

Seleta: Ramones

A “ Seleta: Ramones ” destaca as 154 músicas (algumas dobradas em versões ao vivo) que mais gosto da banda nova-iorquina, presentes em 19 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Ramones ”, “ Loco Live ”, “ Mondo Bizarro ”, “ Road to Ruin ” e “ Rocket to Russia ”). Ouça no Spotify aqui [não tem todas as músicas] Ouça no YouTube aqui Os 19 álbuns participantes desta Seleta 01) The KKK Took My Baby Away [Pleasant Dreams, 1981] 02) Needles and Pins [Road to Ruin, 1978] 03) Poison Heart [Mondo Bizarro, 1992] 04) Pet Sematary [Brain Drain, 1989] 05) Strength to Endure [Mondo Bizarro, 1992] 06) I Wanna be Sedated [Road to Ruin, 1978] 07) It's Gonna Be Alright [Mondo Bizarro, 1992] 08) I Believe in Miracles [Brain Drain, 1989] 09) Out of Time [Acid Eaters, 1993] 10) Questioningly [Road to Ruin, 1978] 11) Blitzkrieg Bop [Ramones, 1976] 12) Rockaway Beach [Rocket to Russia, 1977] 13) Judy is a Punk [Ramones, 1976] 14) Let's Dance [Ramones, 1976] 15) Surfin' Bi

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão