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Dez passagens de Jorge Amado no livro Navegação de cabotagem

Jorge Amado em 1948


“Não demora uma semana e Maria Vice-Almirante se despe no Hotel Leblon onde, levado por ela, entro pela primeira vez. Deslumbra-me a juventude do corpo da balzaquiana (...) aspiro o perfume de fêmea, de mulher civilizada, os seios fartos, um corte de bisturi dá-lhe graça ao ventre, os pelos ruivos da xoxota (...) atiro-me sobre ela, fauno, sátiro, machão, vou comê-la como ela nunca foi comida. Em dois lances a executo, tenho-a no pau desde a noite do teatro, saio dela em gala e glória, todo eu canto vitória, espero expressões de regozijo, o louvor da tesão, tenho dezenove anos, julgo-me o maior. (...) Maria Vice-Almirante desata na gargalhada, olha para minha cara, para a estrovenga a meio mastro, quanto mais olha mais ri (...) — Que machão, não é? Tolo! Que pensas que eu sou? Vim aqui para quê? Sou um objeto, um buraco de meter, ou uma mulher apaixonada? Tu não sabes de nada, pobre ignorante. (...) Melhor assim, vou te ensinar, ser tua professora, quando voltar para a Europa — o marido é adido naval em capital do Velho Mundo (...) — te deixarei em ponto de bala. Para as outras, não me importa. (...) Cumpriu o prometido, o que sei de melhor nessa matéria aprendi com ela, fez-me doutor de borla e capelo, sou-lhe grato: de quando em quando sinto-lhe o odor de fêmea, revejo os seios de pegar e apertar, recordo o xibiu pequeno, os pelos ruivos. Me educou.”


“Romancista de putas e de vagabundos, classifica-me com menosprezo um graúdo da crítica literária. A classificação me agrada, passo a repeti-la para definir minha criação romanesca. (...) Gosto da palavra puta, simples e límpida, tenho horror aos termos prostituta, marafona, pejorativos e discriminatórios. Em três palácios de governo relembrei que sou apenas um romancista de putas e vagabundos.”


“Vazio de clientes, repleto de mulheres, ah! o consultório de Mirabeau em edifício novo, na rua Chile: perdição de donzelas, local de sacrifício de muita honra familiar, senhoras excelentes ali fabricavam chifres para os cônjuges em companhia daqueles sem-vergonha que éramos nós. Mirabeau e o bando de desvairados. A garçonière mais bem-posta e mais bem mantida da cidade, nada faltava, da música à bebida, dos livros de arte aos chocolates. Madames de perfeita saúde sentiam um arrepio, uma comichão ao ver a mesa para exame dos enfermos, a colchonete, a almofada de plumas, o lençol de linho, nela se estendiam, abriam as pernas, para que os doutos localizassem a comichão. (...) no consultório de Mirabeau, Maria do Cabula se fazia acompanhar por uma corriola de amigas, cada qual mais cativante. Uma delas, funcionária pública, feia de cara, ótima de corpo, noiva e virgem, habitué do consultório de Mirabeau, gostava de tomar na bunda diante das janelas que davam para o mar e a cidade baixa, dali avistava a matriz do banco onde o noivo labutava de escriturário. Na hora do enrabanço debruçava-se na janela, arrebitava as ancas, ao sentir a estrovenga penetrar, gritava em direção ao futuro esposo: ‘Tou tomando no cu, seu corno!’. Com o que atingia o orgasmo, o delírio, esqueci-lhe o nome, será que Wilson ainda se lembra?” 


“(...) Abandonou a boazuda sem dinheiro a cuidar dos filhos, Bini a conheceu no banho de mar, italiano bel uomo, famoso cineasta, ela se encantou, precisava de consolo, ele se propôs, era de bom consolo, ela não aceitou subir ao quarto do hotel, não pegava bem, mas o convidou para jantar no lar vazio (...) hospedou-se com a abandonada durante o resto da estada na Bahia, usava pela manhã pijama do marchand, durante a noite não precisava, os jogos de cama ele e a formosa os praticavam em pelo. Encontrou-a triste e deprimida, logo lhe voltaram o riso e a euforia, quanto ao lar, quando ele chegou, estava em total desorganização, uma bagunça, as crianças mal-educadas, pouco afeitas ao estudo, cobradores à porta exigindo pagamento de contas em atraso. Bini pôs tudo nos eixos, a casa ficou um brinco, não por acaso era produtor de filmes, discutiu com os credores e os convenceu a esperar com paciência e esperança a volta do marchand, os bolsos recheados de dinheiro ganho em São Paulo, botou os meninos a fazer banca, deu uns cascudos no mais velho, puxou a orelha do sardento para lhes ensinar obediência, no terceiro dia os meninos já lhe pediam a bênção. Em curso intensivo, aulas pela manhã, à tarde e durante toda a noite, doutorou a dama em variadas matérias da boa brincadeira, ela só conhecia o bê-á-bá sionista, deixou-a em ponto de bala, apta a festejar como devido a volta do marido.”


“Apaixono-me por Lindinalva, filha de usineiro arruinado, abandonada pelo noivo. Estendidos na cama conversamos no intervalo, no quarto o olor de alfazema, o toco de vela ilumina santo Antônio. Lindinalva é loira de trigas maduros (a imagem é velha e gasta, eu sei, mas é porreta), eu irei colocá-la inteira no Jubiabá (...) Lindinalva vira de bruços: ‘Bote atrás, menino, tu nem sabe como gosto, gosto demais’ — lençol de oiro a crina se desdobra até o coxim da bunda. Bunda arrebitada de sinhazinha de engenho, nas cambiantes do melaço, mel de cana-caiana, rego de açúcar mascavo e o precipício. Lindinalva volta o rosto para mim, olhos azuis de água-marinha: ‘Estudei no colégio de freiras mas Augusto, meu noivo, se chamava Augusto, me viciou’.”




“Kuo Mo-jo, sábio chinês de fama mundial, na Ásia seu nome é uma legenda, trata-se do único linguista que conhece 50 mil ideogramas, para ler um jornal basta conhecer 3 mil, um professor universitário sabe 6, um erudito 10 mil. (...) Símonov trouxe a esposa, célebre atriz de teatro, elegantérrima, de beleza cantada em prosa e verso, beleza eslava: os seios pródigos, alvos de leite, saltam do decote generoso, visão fatal. (...) Sentado em frente à bela, ausente da conversa que rola em francês e ele não fala nenhuma língua ocidental, fala dezoito do Oriente (...) Kuo Mo-jo dedica-se a fitar o decote do vestido de gala de Valentina, os olhos presos aos seios fornidos, deslumbrantes mananciais. Cego para tudo o mais, esvaziava por boa educação o cálice de vodca colocado em sua frente. (...) Kuo Mo-jo, na aparência inteiro, apesar de toda a vodca que consumira, o rosto impassível, sem tirar os olhos das tetas russas, ubérrimas, teatrais, levantou-se, deu a volta à mesa, parou diante da sra. Símonov, adiantou as duas mãos e com elas tomou-lhe dos seios, nelas os prendeu, dava a impressão que para sempre. (...) Ali, diante de nós, estarrecidos, Kuo Mo-jo, vice-presidente múltiplo, comunista histórico, o maior sábio da Ásia, eminência, as duas mãos no decote do vestido de Valentina (...) a segurar, no rosto imóvel estampada a felicidade suprema. Imobilidade assim total, nós, paralisados, sem fala, silêncio igual nunca se vira desde o começo do mundo, não se voltará a ver.”


“Alvoroça-se o mulherio ao ver os filhos de família, infantes decerto cabaçudos, somos cercados, abraçados, beijados, riem, debocham, oferecem-se para a festa do desvirginamento. Emílio tenta bancar o veterano, Eurico emudece, encabulado, a polaca senta-se em meu colo. A algazarra traz Antônia Machadão à sala, foi o dia do juízo final. (...) Conhecida e estimada por todos na cidade apesar do comércio que explorava com proveito, Antônia (...) dava-se com as senhoras da sociedade, as esposas dos fregueses do castelo, nenhuma lhe negava o cumprimento. Com minha mãe batia longos papos (...) sentadas as duas no batente da porta, comentavam a chuva e o bom tempo, a previsão da safra e o preço do cacau. Na região grapiúna onde ainda se morria e se matava pela posse de terra, as distinções sociais não ditavam os costumes. (...) Ao nos ver nos braços das raparigas, em vias de escolher parceira, ir para a vida na cama, Antônia Machadão virou fera: — Fora, fora daqui, seus moleques descarados, fora agora mesmo. Que haveriam de dizer dona Julieta e dona Eulália se soubessem que permiti que seus meninos frequentem casa de mulher-dama. Fora daqui! (...) Antônia Machadão, caftina, zelava pela moral na cidade de Ilhéus.”


“(...) o coronel João Amado, ao atravessar a zona do meretrício em Pirangi, deparou com o papagaio solto na gaiola pendurada ao lado da janela na pensão de mulheres da vida. Voz fanhosa, esganiçada, vitrola a toda corda, palavrões cabeludos, modinhas pornográficas, declamava a ementa do bordel, fazia a propaganda das especialidades: ‘Josefa chupa pica’, ‘Terezinha dá o cu’. O coronel encantou-se, eis o presente ideal para Jorge (...) Floro veio viver comigo minha vida incerta, levei-o para São Paulo, fomos casal feliz. Aprendeu linguagens finas, fez-se militante, repetia slogans políticos (...) dava vivas a Prestes e ao Partido Comunista, substituiu as modinhas pornôs por composição eleitoral (...) Mas, de quando em quando, ao ouvir certas palavras — cabaré, por exemplo —, voltava-lhe o passado inteiro (...) ‘ai que cheiro de cu, ai que cu mais cheiroso, nunca vi tanto cu’, se lhe desatava a língua suja: ‘o xibiu de Felipa é de chupeta, comi o cu de Laura no curral’, gritava chamando por ‘Betinha’, Betinha não respondia, Floro se zangava: ‘Cadê tu, Betinha, puta descarada?’. Um show, Marighella teve ocasião de ouvi-lo, se encantou. Na Bahia, acompanhava Carybé e João Ubaldo na melodia do capim-barba-de-bode, afinadíssimo.”


“Naquele tempo, solteiro após ter-me separado de Matilde, eu roseteava de leito em leito: mulheres em abundância, tantas, eu quase não dava abasto, sobravam da agenda em grande parte ocupada pela atividade política. (...) eu apenas descansava das lides políticas no regaço de casadas e solteiras (...) mas, ao conhecer Zélia, arriei bandeira e pedi paz. (...) — Zélia? Você está maluco? Conheço Zélia, você não a conhece. Mulher direita está ali, não há duas. Não perca seu tempo, desista. (...) — Zélia? Ela é casada e séria, você não sabe? Nem pense, tire da cabeça. (...) Não desisti, não tirei da cabeça, estava me roendo de paixão, fiz o que o diabo duvida, não deu outra, em julho Zélia veio morar comigo. Não vai durar seis meses, agouraram, dura até hoje.”


“(...) Deixo de lado o grandioso, o decisivo, o terrível, o tremendo, a dor mais profunda, a alegria infinita, assuntos para memórias de escritor importante, ilustre, fátuo e presunçoso: não vale a pena escrevê-las, não lhes encontro a graça. (...) Não nasci para famoso nem para ilustre, não me meço com tais medidas, nunca me senti escritor importante, grande homem: apenas escritor e homem. Menino grapiúna, cidadão da cidade pobre da Bahia, onde quer que esteja não passo de simples brasileiro andando na rua, vivendo. Nasci empelicado, a vida foi pródiga para comigo, deu-me mais do que pedi e mereci. Não quero erguer um monumento nem posar para a História cavalgando a glória. Que glória? Puf! Quero apenas contar algumas coisas, umas divertidas, outras melancólicas, iguais à vida. A vida, ai, quão breve navegação de cabotagem!”


Presentes no livro de memórias “Navegação de cabotagem” (Companhia das Letras, 2012), de Jorge Amado, páginas 51, 141, 463-384-385, 439, 292-293, 58-59-60, 476, 406-407, 20-21 e 12-13, respectivamente.

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