Pular para o conteúdo principal

Dez passagens de Clarice Lispector no romance A cidade sitiada

Clarice Lispector


“(...) um bicho conhece a sua floresta; e mesmo que se perca — perder-se também é caminho.”


          “(...) Os homens sempre lhe haviam parecido demasiadamente belos — fora o que sentira quando há séculos, na casa dos pais, em vestido de baile, parecera uma árvore nova de poucas folhas — a lembrança a tornara depois terrivelmente irônica.
          E não se saberia por que os fracos haviam-se depois tornado sua presa. Então, quando encontrava um homem fraco e inteligente, sobretudo fraco porque inteligente — devorava-o duramente, não o deixava equilibrar-se, fazia-o precisar dela para sempre — era o que fazia, absorvendo-os, detestando-os, apoiando-os, a irônica mãe. Seu poder se tornara grande. Quando uma pessoa vencida se aproximava — ela a compreendia, compreendia; como você me compreende, disse Afonso. Sempre fora preciso um objeto ser defeituoso para ela poder apoderar-se dele, e através do defeito. Comprava mais barato, assim.
          Que desejava agora desse rapaz? um pouco excitada pela bebida, dizia-se: eis-me enfim ridícula. Também era raro. Não quero compreendê-lo, repetia friorenta, envelhecida. Porque, mais um instante, e o compreenderia tanto que enfraqueceria essa ‘maravilhosa’ pessoa à sua frente, que — ah, ‘maravilha’ — não precisava de ninguém.
          Oh, até que o entendesse por um minuto. E ele, já não mais inatacável, precisasse dela. O mesmo rapaz dos primeiros bailes, o mesmo anjo que convidava para dançar e que desaparecia para ser engenheiro... Era também a sua própria mãe que ela, a filha, só pudera alcançar depois de conhecer-lhe os pecados — aumentando-os em gravidade para melhor poder amar.
          Também só poderia chamar essa perfeição distraída à sua frente destruindo-a por meio da compreensão.”


“(...) Com os olhos abertos de espanto e atenção, atacava a memória dessas noites que parecia terem-se perdido no seu sangue; esquecer era bem o seu modo de guardar para sempre. (...) passado o instante de clarividência, o farol de novo percorrendo outros campos e deixando-a no escuro — de novo ela não conheceria a verdade senão revivendo mesmo os momentos inúteis. Oh, e nem saberia usar as palavras necessárias.”


          “Já resignada, escarvando de novo a terra, pareceu-lhe também sem importância falar. Porque eis que na colina junto dele, o amor tranquilo parecia indicar todas as coisas como o gesto. Desde que o amava encontrara simplesmente o sinal de fatalidade que tanto procurara, esse insubstituível que mal se adivinhava nas coisas, o insubstituível da morte: como o gesto, o amor reduzia até encontrar o irremediável, com o amor se apontava o mundo. Ela estava perdida.
          — Continuemos amigos, disse o homem que também não sabia falar e que precisava por isso ser perdoado.
          — Amigos? murmurou a mulher em suave espanto, mas nunca fomos amigos — respirou com prazer — somos inimigos, meu amor, para sempre.”


          “— Nunca desonrei o lar criado por mim! repetiu o homem de repente muito alto, como se mudando a disposição das mesmas palavras ele próprio se ajeitasse melhor.
          Que insistência, pensava a esposa. Ah, se tivesse alguém a quem contar depois, como seria verdadeira de repente e como faria mal àquele homem que ela desconhecia mas sabia como ferir.
          Desejava que o marido se interrompesse porém Mateus agora irreprimível prosseguia explicando seu caráter, seus princípios morais e qual o seu modo de tratar as mulheres — embora tudo isso não o revelasse em nenhum momento. Ela enrolava a ponta da toalha, sonhadora.
          — Lucrécia, disse o marido com certa angústia, você não está ouvindo!
          (...)
          Calaram-se. Ela olhava o chão sem interesse. Ele, ao contrário, excitado pela nobreza com que se descrevera, fitava avidamente as mãos, inquieto e cheio de planos para o futuro. De fato ele percebia que falar era o seu melhor modo de pensar e que era bom ser escutado por uma mulher. Procurou reatar a conversa mas Lucrécia fugia com um ar que lhe pareceu tranquilo e triste.
          Olhando-a Mateus teria talvez descoberto que no fundo sempre a temera. Nada havia de mais perigoso do que uma mulher fria. E Lucrécia era casta como um peixe. Pela primeira vez ele pareceu notar no rosto da esposa certo abandono sem socorro. Desviou o olhar com bondade.”


“Água escorria da bica e ela passava o pano ensaboado nos talheres. Da janela via-se o muro amarelo — amarelo, dizia o simples encontro com a cor. Esfregando os dentes do garfo, Lucrécia era uma roda pequena girando rápida enquanto a maior girava lenta — a roda lenta da claridade, e dentro desta uma moça trabalhando como formiga. Ser formiga na luz, absorvia-a inteiramente e em pouco, como um verdadeiro trabalhador, ela não sabia mais quem lavava e o que era lavado — tão grande era a sua eficiência. Parecia enfim ter ultrapassado as mil possibilidades que uma pessoa tem, e estar apenas neste próprio dia, com tal simplicidade que as coisas eram vistas imediatamente. A pia. As panelas. A janela aberta. A ordem, e a tranquila, isolada posição de cada coisa sob o seu olhar: nada se esquivava. (...) O que era tão importante para uma pessoa de algum modo estúpida; Lucrécia que não possuía as futilidades da imaginação mas apenas a estreita existência do que via. Ah! gritava um pássaro no quintal da loja.”


“Em certos fatos ela acreditava, em outros não — não acreditava que nuvens fossem água evaporada: para quê? pois se lá estavam as nuvens. Nem chegava a gostar de assuntos de poesia. Gostava mesmo de quem contava como as coisas eram, enumerando-as de algum modo: era isso o que sempre admirava, ela que para tentar saber de uma praça fazia esforço para não sobrevoá-la, o que seria tão mais fácil. Gostava de ficar na própria coisa: é alegre o sorriso alegre, é grande a cidade grande, é bonita a cara bonita — e era assim que se provava ser claro apenas o seu modo de ver. (...) Até que, uma vez ou outra, via ainda mais perfeito: a cidade é a cidade. Faltava-lhe ainda, ao espírito grosseiro, a apuração final para poder ver apenas como se dissesse: cidade.”


“Lucrécia Neves não seria bela jamais. Tinha porém um excedente de beleza que não existe nas pessoas bonitas. Era basta a cabeleira onde pousava o chapéu fantástico; e tantos sinais negros espalhados na luz da pele davam-lhe um tom externo a ser tocado pelos dedos. Somente as sobrancelhas retas enobreciam o rosto, onde alguma coisa vulgar existia como sinal apenas sensível do futuro de sua alma estreita e profunda. Toda a sua natureza parecia não se ter revelado: era hábito seu inclinar-se falando às pessoas, de olhos entrefechados — parecia então, como o próprio subúrbio, animada por um acontecimento que não se desencadeava. A cara era inexpressiva a menos que um pensamento a fizesse hesitar.”


“Lucrécia mesma fora apanhada por alguma roda do sistema perfeito. Se pensara que se aliando a um forasteiro, sacudir-se-ia para sempre de S. Geraldo e cairia na fantasia? enganara-se. (...) Caíra de fato em outra cidade — o quê! em outra realidade — apenas mais avançada porque se tratava de grande metrópole onde as coisas de tal modo já se haviam confundido que os habitantes, ou viviam em ordem superior a elas, ou eram presos em alguma roda. Ela própria fora apanhada por uma das rodas do sistema perfeito. (...) Talvez mal apanhada, com a cabeça para baixo e uma perna saltando fora.”


          “Como as ambiciosas moças de S. Geraldo, esperando que o dia de núpcias as libertasse do subúrbio — assim estava ela, séria, vestida de cor-de-rosa. Sapato e chapéu novo. De algum modo atraente. De algum modo enigmática. Refazendo alguma prega amarrotada da saia, pipocando uma poeirinha na manga. De quando em quando dava um suspiro de educação.
          Mas, talvez transviada pelo vento, talvez por estar de pé numa esquina — em breve entreabria os lábios que o ar secava, e sorria. Modesta no seu crime, sem culpa. Às vezes apertava a bolsa, suspirava enlevada.
          E quando o advogado reapareceu tão ocupado, olhou-o de longe quase tola, solta nestas ruas que não eram suas, com um homem que falava e conduzia — um advogado! O primeiro elemento que realmente conhecia de Mateus.
          E a primeira manifestação técnica desta nova cidade onde iria morar. A poeira rastejava acima das calçadas e a luz franzia o rosto.
          Lucrécia estava toda enfeitada. Ana a ajudara a se vestir, soluçando — enquanto ela mesma ainda guardava um sentimento para começar só nas núpcias, um sentimento que não sabia iniciar e já era quase tempo...”


Presentes no romance “A cidade sitiada” (Rocco, 2019), de Clarice Lispector, páginas 182, 172-173, 161, 161-162, 134-135, 92, 94-95, 33, 120 e 113-114, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d