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Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado


“(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual deles não sabe amar com violência e doçura? Porque toda a vez que cantam e que amam, bem pode ser a última. Quando se despedem das mulheres não dão rápidos beijos, como os homens da terra que vão para os seus negócios. Dão adeuses longos, mãos que acenam, como que ainda chamando.”


          “O saveiro está bem perto do cais. É só atravessar a lama e encontrarão a âncora que o prende ao cais. Seu tio está próximo com a mulher. Pula para dentro do saveiro, estende a mão para a mulher que salta mostrando as coxas. Guma olha e um desejo violento o invade, o toma todo. É bonita, sim. Agora, que Francisco vá embora, que o deixe somente com ela, que não se meta entre eles que Guma mostrará de que será capaz. A mulher olha para ele, bem que ela gostou de Guma. Sim, ele parece um homem, apesar dos seus onze anos. Guma sorri mostrando os dentes alvos. Francisco está sem jeito, as mãos abanando. A mulher sorri. Guma olha os dois e o seu riso é de inteira satisfação. A mulher pergunta:
          — Você tá me conhecendo?
          Ele a conhece, sim. Há muito que ele a espera. Ele a procurou nas ruas de mulheres perdidas, na beira do cais, em todas as mulheres que olharam para ele. Agora a encontrou. Ela é sua mulher. Ele a conhece de há muito, desde que os desejos penetraram seus nervos, perturbaram seus sonhos.
          Francisco fala:
          — É tua mãe, Guma.
          E o desejo não fugiu. Não era possível que fosse sua mãe, aquela mãe em quem ninguém nunca lhe falara, mãe em quem nunca pensara. Uma pilhéria de seu tio com certeza. Aquela que estava ali era uma mulher da rua que viera para dormir com ele. Francisco não devia tê-la comparado com sua mãe, que seria boa e suave, muito longe daquelas coisas em que ele pensava. Mas a mulher se aproxima dele e o beija como devem beijar as mães. As mulheres da vida beijam de maneira diferente, sem dúvida. A voz da mulher é pura:
          — Te deixei há muito tempo... Nunca mais te deixo...
          Então Guma começa a chorar e ele mesmo não sabe se é por ter encontrado sua mãe, se é por ter perdido a mulher que esperava.”


          “(...) Ele só disse que não tinha medo de homem. Eu perguntei pra ele: e de mulher tu tem medo? Ele disse que só de feitiço. E com os olho bugalhado em mim. Eu disse que era melhor ele ir embora. Mas ele não quis por nada. Até ia tirando as calças, eu aí me aborreci, sabe?
          Os homens sorriam, antegozando o final:
          — O que foi que teve?
          — Peguei pelo pescoço, atirei pela porta. Ele ficou ainda espiando, arriado no chão, com cara de besta.
          — Bem feito, negra...
          — Vocês não viu o resto. Eu também pensei que tivesse acabado aí o verso. Mas tinha nada. Depois meu mulato chegou, eu não alarmei. Mas tinha dado uma raiva no homenzinho, e ele, negócio de meia-noite, invadiu a casa com mais meia dúzia. Meu mulato era bom na coisa e a gente não teve dúvida: foi um fuzuê de desmanchar... Os homens, coitado, pensava que era só bater no Juca, me agarrar e abrir a vela. Quando viro que a coisa tinha seu ipissilone, um já tava com cara quebrada e eu com a navaia velha de guerra na mão. Foi uma sangueira que até parecia pesca de punhal. Quando pensamo que não, olhe a puliça na porta. Tocou tudo pro distrito.
          — Tu comeu a cadeia do Rio?
          — Comi nada. Cheguei lá, contei tudo ao delegado, disse que Rosa Palmeirão não levava tapa assim não. O delegado era um doutor baiano, riu, disse que já me conhecia e mandou embora. Pedi pro Juca ir também, ele deixou. Os outro ficou tudo, fora um que foi pra assistência todo tatuado.”


“O oceano é muito grande, o mar é uma estrada sem fim, as águas são muito mais que metade do mundo, são três quartas partes e tudo isso é de Iemanjá. No entanto, ela mora é na pedra do Dique do cais da Bahia ou na sua loca em Mont Serrat. Podia morar nas cidades do Mediterrâneo, nos mares da China, na Califórnia, no mar Egeu, no golfo do México. Antigamente ela morava nas costas da África, que dizem que é perto das terras de Aiocá. Mas veio para a Bahia ver as águas do rio Paraguaçu. E ficou morando no cais, perto do Dique, numa pedra que é sagrada. Lá ela penteia os cabelos (vêm mucamas lindas com pentes de prata e marfim), ela ouve as preces das mulheres marítimas, desencadeia as tempestades, escolhe os homens que há de levar para o passeio infindável no fundo do mar. E é ali que se realiza a sua festa, mais bonita que todas as procissões da Bahia, mais bonita que todas as macumbas, que ela é dos orixás mais poderosos, ela é dos primeiros, daquele de onde os outros vieram. Se não fosse perigoso demais poder-se-ia mesmo dizer que a sua festa é mais bela que a de Oxalufã, Oxalá velho, o maior e mais poderoso dos orixás. Porque é uma beleza a noite da festa de Iemanjá. Nessas noites o mar fica de uma cor entre azul e verde, a lua está sempre no céu, as estrelas acompanham as lanternas dos saveiros, Iemanjá estira preguiçosamente os cabelos pelo mar e não há no mundo nada mais bonito (os marinheiros dos grandes navios que viajam todas as terras sempre dizem) que a cor que sai da mistura dos cabelos de Iemanjá com o mar.”


“Nas noites da sua infância muitas vezes dormiu no tombadilho do saveiro atracado ao pequeno cais. De um lado, enorme e iluminada de mil lâmpadas elétricas, estava a cidade. Subia pela montanha e seus sinos badalavam, dela vinham músicas alegres, risadas de homens, ruídos de carros. A luz do elevador subia e descia, era um brinquedo gigantesco. Do outro lado era o mar, a lua e as estrelas, tudo iluminado também. A música que vinha dele era triste e penetrava mais fundo. Os saveiros e as canoas chegavam sem ruído, os peixes passavam sob a água. A cidade, mais barulhenta, era bem mais calma no entanto. Lá havia mulheres lindas, coisas diferentes, cinema e teatro, botequins e muita gente. No mar nada disso havia. A música do mar era triste e falava em morte e em amor perdido. Na cidade tudo era claro e sem mistério como a luz das lâmpadas. No mar tudo era misterioso como a luz das estrelas. As estradas da cidade eram muitas e bem calçadas. No mar só havia uma estrada e essa oscilava, era perigosa. As estradas da cidade já estavam há muito conquistadas. A do mar era conquistada diariamente, era ir a uma aventura toda vez que se partia. E na terra não há Iemanjá, não há as festas de dona Janaína, não há música tão triste. Nunca a música da terra, a vida da terra tentou o coração de Guma. Mesmo na beira do cais nunca se contou uma história que referisse o caso de um filho de marinheiro ser tentado pela vida calma da cidade. Se alguém falar disso aos velhos cosedores de velas, eles não compreenderão e hão de se rir. Bem que um homem pode ser tentado a ir pelo mar para outras terras, isso sim. Mas a deixar seu saveiro pela vida de terra, isso, só com uma gargalhada e um trago de cachaça se pode ouvir.”


          “— Ele se parece comigo?
          O velho Francisco olhou a mulher. Apesar dos dentes cariados, era bonita. Tinha um dente de ouro para compensar. Vinha dela um perfume extravagante para aquela beira de cais cheirando a peixe. A boca pintada era cor de sangue como se houvesse sido mordida. Seus braços roliços estavam caídos ao longo do corpo. Maltratada pela vida, era ainda nova, nem parecia a mãe de Guma. No entanto há onze anos que ela estava na vida, conhecendo homens, dormindo com eles, apanhando de muitos. Apesar disso ainda tentava um. Se ela não tivesse dormido com Frederico...
          — Se parece, sim. Tem os olhos igualzinho os de vosmicê. E o nariz assim também...
          Ela sorria e aquele era mesmo seu momento mais feliz. Um dia quando sua beleza terminasse de todo, quando os homens a houvessem gasto totalmente, então ela teria uma velhice garantida, viria para seu filho, faria a comida dele, o esperaria de volta das tempestades. Não precisaria se desculpar perante ele. Os filhos tudo sabem perdoar às velhas mães cansadas que aparecem de repente. E a mulher se deixou embalar por essa felicidade e sorria pela boca, pelos olhos, seus gestos eram alegres e até aquele perfume esquisito que lembrava cabarés desapareceu e ficou somente o cheiro de maresia, de peixe salgado.”


          “— Você tá bestando. Ligando muita importância a homem... Deixa eles ter suas mulher por lá. Faça como eu... Não ligo.
          — Não é por isso não, Esmeralda. Tenho medo é que numa viagem ele morra.
          — E nós todos não tem que morrer? Eu é que não me abalo. Se o meu morrer, arranjo outro.
          Lívia não compreendia. Se Guma morresse ela morreria também, porque, além da falta que sentiria dele, não era mulher para trabalho duro e não pretendia vender seu corpo para ganhar o que comer.
          Esmeralda não concordava. Se Rufino morresse arranjaria outro, continuaria sua vida. Não era o primeiro que tinha. Um ficara nas ondas também, seu marido se fora num navio cargueiro para outras plagas, o terceiro se mudara numa canoa com uma noiva. Ela não ligava, ia vivendo. Sabia lá o que Rufino faria um dia, que fim havia de levar? Queria era brilhantina para escorrer o cabelo, sandálias para pisar no cais, vestido bonito para cobrir suas ancas.”


“Guma não fita a lua. Quebrou a lei do cais. Não é medo de Rufino que ele tem. Se não fosse seu amigo não se importaria. Tem é vergonha, vergonha dele e de Lívia. Gostaria de matar Esmeralda e depois morrer, virar com o Valente por cima de uma coroa de pedras. Ela o tentou, ele nem se lembrou de Rufino seu amigo, de Lívia doente no quarto vizinho. E a tia olhara desconfiada, nunca mais ele a pudera fitar. Talvez ela nem tivesse chegado a desconfiar, até agradeceu muito a Esmeralda o cuidado tomado com Lívia. E o pior é que Lívia agora estava muito grata a Esmeralda, mandara comprar um presente para ela, a mulata se aproveitava disso para viver metida lá, espiando para Guma. Ele saía, ia para o Farol das Estrelas, bebia tanto que até já se falava no cais. E ela o perseguia, toda vez que podia falar com ele queria saber onde se podiam encontrar, dizia que sabia lugares desertos no areal. Guma também sabia. Muita mulata, muita negrinha, levara para o areal nas noites de grande lua. Mas Esmeralda ele não queria levar, não queria mais vê-la, queria era matá-la e se matar depois. Mas não podia deixar Lívia com um filho na barriga. Foi sem pensar, que o desejo não vê nada. Naquela hora não vira ninguém, nem Rufino, nem Lívia, ninguém. Só vira o corpo moreno de Esmeralda, seios pujantes, olhos verdes tão brilhantes. E agora sofre. Terá que encontrar Rufino mais dia menos dia, terá que conversar com ele, rir com ele, abraçá-lo como se abraça a um amigo a quem se deve favores. E, pelas costas de Rufino, Esmeralda lhe fará sinais, mareará encontros, sorrirá.” 


“(...) o marinheiro que bebia solitário no Farol das Estrelas correu para o seu navio como se o fosse salvar de um desastre irremediável. E a mulher, que no pequeno cais do mercado esperava o saveiro onde vinha o seu amor, começou a tremer, não do frio do vento, não do frio da chuva, mas de um frio que lhe vinha do coração amante cheio de maus presságios da noite que se estendia repentinamente. (...) Porque eles, o marinheiro e a mulher morena, eram familiares do mar e bem sabiam que, se a noite chegara antes da hora, muitos homens morreriam no mar, navios não terminariam a sua rota, mulheres viúvas chorariam sobre a cabeça dos filhos pequeninos. Porque — eles sabiam — não era a verdadeira noite, a noite da lua e das estrelas, da música e do amor, que chegara. Esta só chegava na sua hora, quando os sinos tocavam e um negro cantava ao violão, no cais, uma cantiga de saudade. A que chegara carregada de nuvens, trazida pelo vento, fora a tempestade que derrubava os navios e matava os homens. A tempestade é a falsa noite.”


          “Lívia olha os homens que sobem a pequena ladeira. Vêm em dois grupos. Lanternas dão um ar de fantasmagoria a esta procissão fúnebre. Como que pressentindo a chegada, os soluços de Judith redobram no quarto. Bastaria ver os homens de cabeça descoberta para saber que eles trazem os corpos. Pai e filho morreram juntos na tempestade. Sem dúvida um tentou salvar o outro e pereceram ambos no mar. No fundo de tudo, vinda do forte velho, vinda do cais, dos saveiros, de algum lugar distante e indefinível, uma música confortadora acompanha os corpos. Diz que:
          É doce morrer no mar...
          Lívia soluça. Ampara Judith no seu peito, mas soluça também, soluça pela certeza que seu dia chegará e o de Maria Clara e o de todas elas. A música atravessa o cais para chegar até eles:
          É doce morrer no mar...
          Mas naquela hora nem a presença de Guma, que vem com o cortejo e foi quem descobriu os corpos, conforta o coração de Lívia.”


Presentes no romance “Mar morto” (Companhia das Letras, 2008), de Jorge Amado, páginas 22-23, 38-39, 62, 79, 51-52, 35-36, 161-162, 185, 14 e 23, respectivamente.

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