Joan Didion (foto: Brigitte Lacombe)
“Nós não somos animais selvagens idealizados. (...) Somos seres mortais imperfeitos, conscientes dessa mortalidade mesmo quando a negamos, traídos por nossa própria complexidade, tão incorporada que quando choramos a perda de seres amados também estamos chorando, para o bem ou para o mal, por nós mesmos. Pela perda daquilo que éramos. Do que não somos mais. Do que um dia não seremos de todo.”
“Não havia nada que eu não discutisse com John. (...) Como éramos escritores e ambos trabalhávamos em casa, nossos dias eram povoados pelo som de nossas vozes. (...) Eu não achava que ele estava sempre certo, nem ele achava que eu estava sempre certa, mas éramos a pessoa em quem o outro confiava. Não havia, em nenhuma circunstância, divergência em nosso trabalho e nossos interesses. Muita gente achava que, como às vezes um ou às vezes o outro recebia uma crítica mais positiva ou um adiantamento maior, nós devíamos ‘competir’ de alguma forma, que nossa vida privada devia ser um campo minado de ressentimentos e invejas profissionais. Isso estava tão longe da verdade que a insistência das pessoas nessa ideia sugeria uma certa lacuna no entendimento geral do que é casamento. (...) O que me recordo do apartamento, na noite em que voltei para casa sozinha do New York Hospital, foi o silêncio.”
“(...) Maridos saem de casa, esposas saem de casa, divórcios acontecem, mas esses maridos e essas esposas deixam para trás teias de associações intactas, por mais amargas que sejam. Apenas aqueles que sobrevivem a uma morte ficam de fato sozinhos. As conexões que constituíam sua vida — tanto as profundas quanto as aparentemente insignificantes (até serem rompidas) — desaparecem por inteiro. John e eu fomos casados por quarenta anos. Durante todo esse tempo, à exceção dos cinco primeiros meses de casamento, quando John ainda trabalhava na Time, ambos trabalhávamos em casa. Passávamos 24 horas por dia juntos, fato que permanecia ao mesmo tempo uma fonte de alegria e mau agouro para minha mãe e minhas tias. ‘Na riqueza e na pobreza, mas nunca no almoço’, diziam elas com frequência nos primeiros anos de nosso casamento. Eu não seria capaz de contar quantas vezes em um dia normal acontecia algo que eu precisava contar a ele. Esse impulso não cessou com sua morte. O que cessou foi a possibilidade de resposta. Leio algo no jornal que normalmente teria lido para ele em voz alta. Noto alguma mudança na vizinhança que teria lhe interessado (...) Estou deixando minhas chaves sobre a mesa, já dentro de casa, quando lembro. Não há ninguém para ouvir essa notícia, nenhum lugar para ir com os planos não feitos, os pensamentos incompletos. Ninguém para concordar, discordar, responder. ‘Acho que estou começando a entender por que o sofrimento da perda se parece com um estado de suspensão’, C.S. Lewis escreveu depois da morte de sua esposa.”
“(...) Algumas pessoas que perderam o marido ou a esposa afirmam sentir sua presença, receber seus conselhos. Alguns dizem até mesmo vê-los (...) Não vivenciei nada disso. Houve algumas ocasiões (o dia que decidiram fazer a traqueostomia no hospital da UCLA, por exemplo) nas quais simplesmente perguntei a John o que fazer. Disse que precisava de sua ajuda. Disse que não era capaz de fazer aquilo sozinha. Disse essas coisas em voz alta, pronunciando as palavras. (...) Sou escritora. Imaginar o que alguém diria ou faria é tão natural para mim quanto respirar. (...) Ainda assim, em cada uma dessas ocasiões, os apelos por sua presença serviram apenas para reforçar minha consciência do silêncio definitivo que nos separava. Qualquer resposta que ele pudesse dar existia apenas em minha imaginação, editada por mim. Imaginar o que ele poderia dizer apenas de acordo com minha edição seria obsceno, uma violação. (...) Acreditávamos saber tudo que o outro pensava, mesmo quando não necessariamente queríamos saber, mas a verdade, acabei percebendo, era que não sabíamos nem uma ínfima fração do que havia para saber.”
“A dor pela morte de uma pessoa amada, quando chega, não se parece nada com o que esperávamos. Não foi o que senti quando meus pais morreram: meu pai morreu quando faltavam poucos dias para seu aniversário de 85 anos, minha mãe, um mês antes de completar 91, ambos depois de vários anos de crescente debilidade. O que senti nas duas ocasiões foi tristeza, solidão (a solidão do filho abandonado, qualquer que seja a idade), pesar pelo tempo perdido, pelas coisas não ditas, pela minha incapacidade de compartilhar ou até mesmo de admitir de forma real, no fim, a dor, a impotência e a humilhação física pela qual meus pais passaram. Eu entendia que a morte dos dois era inevitável. Esperara (temendo, antecipando, imaginando) a vida inteira aquelas mortes. Quando por fim chegaram, permaneceram a certa distância, separadas do cotidiano de minha vida. (...) A dor pela morte de uma pessoa amada é diferente. Não há distância. Vem em ondas, paroxismos, apreensões súbitas que enfraquecem os joelhos, cegam os olhos e cancelam a normalidade da vida. Praticamente todos que já vivenciaram essa dor mencionam o fenômeno das ‘ondas’. Eric Lindemann, chefe do serviço de psiquiatria do Massachusetts General Hospital na década de 1940, entrevistou muitos parentes de vítimas mortais do incêndio em Coconut Grove, em 1942, e definiu o fenômeno com absoluta precisão em um famoso estudo publicado em 1944: ‘Sensações de angústia somática que se apresentam em ondas que duram entre vinte minutos e uma hora cada, aperto na garganta, falta de ar, necessidade de suspirar e uma sensação de vazio no abdome, falta de força muscular e uma intensa angústia subjetiva, descrita como tensão ou dor mental.’”
“(...) me dei conta de que não havia necessidade de acrescentar a palavra ‘normal’, porque era impossível esquecê-la: essa palavra nunca me saiu da cabeça. Era precisamente a natureza normal de tudo que precedera aquele acontecimento que me impedia de acreditar que tinha acontecido de verdade, absorver, incorporar, superar. Agora reconheço que não há nada de incomum nisso: confrontados com um desastre súbito, todos nos fixamos em quão banais foram as circunstâncias nas quais o impensável aconteceu, o céu azul e claro do qual caiu o avião, a tarefa rotineira que terminou com o carro em chamas na estrada, os balanços nos quais as crianças brincavam como de costume quando a cascavel atacou, saindo dos arbustos.”
“As pessoas que perderam um ser amado recentemente têm um certo olhar, reconhecível talvez apenas por aqueles que viram esse mesmo olhar no próprio rosto. É um olhar de extrema vulnerabilidade, desamparo, transparência. É o olhar de alguém que sai do consultório do oftalmologista direto para a luz do dia com as pupilas dilatadas, ou de alguém que usa óculos e subitamente é obrigado a tirá-los. As pessoas que perderam alguém se sentem desamparadas porque se consideram invisíveis. Eu me senti invisível por um período, incorpórea. Parecia ter atravessado um desses rios lendários que separam os vivos dos mortos, entrando em um lugar onde só podia ser vista por aqueles que também tinham perdido alguém. Entendi pela primeira vez o poder da imagem dos rios, o Estige, o Lete, o barqueiro com sua capa e sua vara. Entendi pela primeira vez o sentido da prática do sati. As viúvas não se atiravam na balsa em chamas por causa do sofrimento. A balsa em chamas era, na verdade, uma representação precisa do lugar para onde seu sofrimento as levara (não a família, não a comunidade, não as tradições, o sofrimento). Na noite em que John morreu faltavam 31 dias para nosso aniversário de 40 anos de casados. (...) Eu queria mais do que uma noite de lembranças e suspiros. (...) Eu queria gritar. (...) Eu queria que ele voltasse.”
“O sofrimento pela perda acaba por se revelar um lugar que nenhum de nós conhece até chegar lá. Imaginamos (sabemos) que alguém próximo a nós pode morrer, mas não perscrutamos além dos poucos dias ou semanas que se seguem imediatamente a essa morte imaginária. Nós nos equivocamos até mesmo quanto à natureza desses poucos dias ou semanas. Podemos esperar, se a morte for súbita, um sentimento de choque. Mas não esperamos que esse choque seja destruidor, que desestabilize o corpo e a mente. Podemos imaginar ficar prostrados, inconsoláveis, enlouquecidos pela perda. Não esperamos ficar literalmente loucos, como a ‘mulher tranquila’ que acredita que o marido vai voltar a qualquer momento e que vai precisar dos sapatos. Na versão do sofrimento que imaginamos, o modelo a seguir é a ‘cura’. Um certo movimento adiante vai prevalecer. Os piores dias serão os primeiros. Imaginamos que o momento em que seremos postos à prova de maneira mais severa será o funeral, depois do qual a cura hipotética vai começar. Quando pensamos no funeral, nos perguntamos se vamos conseguir ‘passar por isso’, estar à altura da ocasião, demonstrar a ‘força’ que invariavelmente mencionada como a reação correta diante da morte. Imaginamos ter que nos fortalecer para enfrentar esse momento: será que serei capaz de cumprimentar as pessoas, serei capaz de sair de lá depois, serei capaz de ao menos me vestir nesse dia? Não temos como saber que esse não vai ser o problema. Não temos como saber que o funeral em si será anódino, uma espécie de regressão narcótica durante a qual estaremos entregues aos cuidados dos outros, tomados pela gravidade e pelo significado da ocasião. Tampouco podemos saber antes do acontecimento em si (e eis aqui o cerne da diferença entre o sofrimento como o imaginamos e o sofrimento como ele é) a ausência infindável que se segue, o vazio, o oposto do sentido, a sucessão implacável de momentos durante os quais vamos nos confrontar com a própria experiência da ausência de sentido.”
“Só depois de ler o laudo da autópsia comecei a acreditar no que tinha ouvido repetidas vezes: nada do que ele ou eu tivéssemos feito ou deixado de fazer poderia causar ou prevenir sua morte. Ele tinha herdado um coração ruim. Que um dia acabaria por matá-lo. A data em que isso aconteceria já tinha sido adiada diversas vezes por meio de intervenções médicas. Quando esse dia enfim chegou, nada do que eu pudesse ter feito em nossa sala de estar — nenhum desfibrilador doméstico, nenhuma manobra de reanimação, nada a não ser um carrinho de suporte vital completamente equipado e o aparato técnico necessário para injetar medicação intravenosa segundos depois da cardioversão — teria dado a ele um dia a mais. (...) O dia mais de eu te amo mais do que apenas um dia mais. (...) Como você costumava me dizer. (...) Só depois de ler o relatório da autópsia parei de tentar reconstruir a colisão, o colapso da estrela morta. O colapso estivera lá o tempo todo, invisível, insuspeitado.”
“Sei por que tentamos manter vivos os mortos: tentamos mantê-los vivos para que permaneçam conosco. (...) Também sei que, se quisermos viver, chega um momento em que temos que nos libertar dos mortos, deixá-los ir, deixá-los mortos. (...) Deixar que se tornem uma fotografia em cima da mesa. (...) Deixar que se tornem um nome nas contas fiduciárias. (...) Deixar que sejam levados pela água. (...) Saber disso não faz com que seja nem um pouco mais fácil deixar que sejam levados pela água.”
Presentes no livro de memórias “O ano do pensamento mágico” (HarperCollins Brasil, 2021), de Joan Didion, traduzido por Marina Vargas, páginas 202-203, 20, 198 a 200, 200-201, 30-31, 08, 77-78, 193-194, 212 e 234, respectivamente.
Aforismos de Joan Didion em “O ano do pensamento mágico”
“Como isso pode ter acontecido quando tudo estava normal?”
“A dor da perda de uma pessoa amada ainda é a mais comum das aflições”
“Se os mortos pudessem de fato regressar, o que saberiam ao voltar? Poderíamos encará-los? Nós, que deixamos que eles morressem?”
“A pessoa que canta sobre procurar o lado positivo acredita que as nuvens negras vieram em sua direção. A pessoa que canta sobre enfrentar a tempestade acredita que, se não fizesse isso, a tempestade acabaria com ela”
“Manter o foco no céu azul e claro de onde cai o avião”
“Alguns acontecimentos na vida iam permanecer além da minha capacidade de geri-los e controlá-los. Algumas coisas iam simplesmente acontecer”
“Minha impressão de mim mesma era a de alguém capaz de procurar, e encontrar, o lado bom de qualquer situação”
“Informação é controle”
Aforismos presentes no livro de memórias “O ano do pensamento mágico” (HarperCollins Brasil, 2021), de Joan Didion, traduzido por Marina Vargas, páginas 71, 47, 157, 175, 70, 103, 175 e 47, respectivamente.
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