(foto: Filipe Amorim/Observador)
retina
Maria do Rosário Pedreira
Eu, que nunca pensei deixar de ser
filha, faço agora de mãe da minha mãe
aos domingos: sou a sua muleta nos
longos corredores da casa antiga e
chego-lhe mantas aos joelhos porque
os velhos tremem em vida com o frio
da morte. Para fugir às coisas que a
entristecem, pergunto-lhe por gente
do passado, pois sei que o que sucedeu
ontem está já demasiado longe da sua
memória — e, nos dias bons, a resposta
dura a tarde inteira. Ao princípio,
a minha mãe censurava a forma como eu
ia vestida, mas já há muito tempo que não
diz nada. Pensei que tivesse finalmente
acertado com o seu gosto, ou que ela,
derrotada, tivesse desistido de me mudar.
Só depois percebi que já não me vê.
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ouvidos
Maria do Rosário Pedreira
Quando estou sozinha,
sento os mortos à mesa
e dou-lhes de comer —
um prato a cada um, em
troca dessas histórias que
morro de saudades de os
ouvir contar. E escuto-os
com a velha paixão — tal
qual estivessem vivos —
para não me fugirem as
suas vozes da memória.
Às vezes choro, claro —
e nem é por eles já não
terem dentes e me
deixarem quase tudo no
prato; mas por os ver ali,
ao pé de mim, e me sentir
na mesma tão sozinha.
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martelo, bigorna e estribo
Maria do Rosário Pedreira
A escuridão entra, impertinente, em casa
do meu ouvido. Sem luz, a oficina — que
antes distinguia as vibrações do amor —
parece ter preguiça de funcionar: martelo,
bigorna e estribo estão cada dia mais
enferrujados para os teus segredos. Por
isso, quando te peço que repitas uma e
outra vez que ainda me amas, acredita, não
é saudade: estou realmente a ensurdecer
e ainda não domino a ventania das mãos.
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sexo
Maria do Rosário Pedreira
Os poemas, tal como nós, já vão
murchando. Há uma espécie de
bolor que se instala nas pregas da
nossa vida e deixa as mãos mais
trôpegas sobre o papel. Ao fim da
tarde, eu fico triste sem razão e
tu adormeces diante de um bom
livro. Temos medo do que aí vem,
mas não o confessamos. E falta-nos
qualquer coisa que não sabemos
nomear — talvez a certeza de que o
sexo da última vez não foi o último
sexo. Enfim, enquanto esperamos
o inverno, andamos ligeiramente
assustados e um pouco sonolentos,
mas juntos e abraçados até ao fim.
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tornozelos
Maria do Rosário Pedreira
Foi na verdade a sede que me tirou
da estrada. Num café de província,
cadeiras de napa cor de laranja
bordavam um balcão quase vazio.
Numa esquina, para poder falar
olhos nos olhos, sentava-se um casal
adolescente. Na testa dele — que
era dos dois o mais bonito — bailava
sozinha uma pérola de suor, sinal
de que havia coisas difíceis para
dizer. Mas, vendo bem, os tornozelos
dela eram tão finos que não iam
aguentar aquela confissão. Bebi
correndo a minha água gelada para
não atrapalhar o choro dela; e, antes
de sair, dei comigo a pensar que nem
me importaria muito de ser traída, se
pudesse ter outra vez aquela idade.
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olhos
Maria do Rosário Pedreira
Apaga a luz — é justo
que tenhas nos teus
braços a rapariga
que fui antes de ti.
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nádegas
Maria do Rosário Pedreira
Lembro-me e sinto tudo
novamente: passo a mão
pelo veludo das tuas calças
velhas e aperto as nádegas
firmes do passado. Não sou
só eu: as tuas roupas também
têm saudades.
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costas
Maria do Rosário Pedreira
À viúva custa-lhe pôr só um prato na mesa.
Mais: custa-lhe fazer o jantar só para ela. Por
isso, ultimamente come qualquer coisa de pé
à janela, a ver os freixos estenderem os
braços para o verão — e já três pessoas lhe
disseram que está mais magra. À viúva custa-lhe
guiar seis horas seguidas para ir à Galiza ver o
filho. Um destes domingos, abriu a porta do
carro e sentou-se, distraída, no lugar do morto.
Quando deu pelo engano, chorou a tarde inteira
e já não foi. À viúva custa-lhe pensar nas férias.
Porque não quer voltar aos lugares onde foi feliz,
gasta as noites em busca de destinos exóticos
e a tomar nota de hotéis com camas grandes
onde sabe, no fundo, que não se deitará. Mas os
seus planos são como um bolo que se mete no
forno e não cresce — até que se escancaram
as portas do verão e ela dá por si em casa em
pleno agosto. À viúva custa-lhe ver metade do
roupeiro vazio. Mas ainda lhe custa mais, na outra
metade, a roupa que não voltou a pôr desde que
o marido morreu, sobretudo aquele vestido cintado
e sem mangas com que ele adorava vê-la — e que
não pode usar porque tem o fecho nas costas.
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nervos
Maria do Rosário Pedreira
Acordo numa cidade com os nervos
desfeitos. Levanto-me ao som dos
estores que sobem, contrariados, do
outro lado da rua quando já alguém
se zangou no café por baixo da janela e
há sirenes, buzinas, taxistas deprimidos
com a falta de clientes. Saio de casa
todos os dias um nadinha mais velha; e
às vezes, como a cidade, não consigo evitar
os nervos em franja. Quando regresso,
trago uma espécie de pieira cantando-me
no peito; e se à noite me acontece
deitar-me sozinha entre os lençóis frios,
abro os braços em estrela sobre a cama
e tento imaginar-me num relvado de verão;
ou então fecho os olhos e finjo-me num
areal: ouço ao longe as crianças furando
as ondas contra o medo dos pais — e, às
vezes, juro, até me cheira a mar. Mas de
manhã, quando a cidade desperta cheia
de mau génio, sou de novo um nadinha
mais velha: suspiro, reclamo, gemo, tusso,
ergo-me a custo para o dia que aí vem —
tenho os nervos cada vez mais à flor da pele.
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ossos
Maria do Rosário Pedreira
Quando estou mais triste,
costumo conversar com a
terra,
mas digo-lhe que não:
que, apesar de tudo, prefiro
o fogo
a ter de dar-lhe a roer,
no fim de tudo, os meus ossos.
Presentes no livro de poemas “O meu corpo humano” (Quetzal, 2022), de Maria do Rosário Pedreira, páginas 26, 28, 19, 22, 21, 15, 17, 37-38, 24-25 e 32, respectivamente.
Aforismos de Maria do Rosário Pedreira em “O meu corpo humano”
“O tempo põe sempre num lado o que tira de outro”
“Daqui até à morte é um instante”
“Estreita era a minha cintura antes de eu ser feliz”
“O que há no meu peito é entre nós”
“Ter-te comigo é como poder andar descalça pelo mundo”
“As cidades estão cansadas de cimento e o mundo se desfaz em pó qual parede velha”
Aforismos presentes no livro de poemas “O meu corpo humano” (Quetzal, 2022), de Maria do Rosário Pedreira, páginas 16, 13, 16, 14, 82 e 30, respectivamente.
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