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Dez passagens do livro de memórias Noites azuis, de Joan Didion

Joan Didion (foto: Neville Elder)


“Quando comecei a escrever estas páginas, pensei que seu tema fosse filhos, os que temos e os que gostaríamos de ter, a maneira como dependemos de que nossos filhos dependam de nós, a maneira como os estimulamos a continuarem crianças, a maneira como eles permanecem mais desconhecidos para nós do que para seus conhecidos mais casuais; a maneira como permanecemos igualmente opacos para eles. (...) A maneira como nossos investimentos uns nos outros permanecem sobrecarregados a ponto de não conseguirmos enxergar o outro claramente. (...) A maneira como nem nós nem eles podemos conceber a morte ou a doença ou mesmo o envelhecimento do outro.”


“(...) O envelhecimento e seus sinais continuam sendo os eventos mais previsíveis da vida, contudo também continuam sendo questões que preferimos deixar intocadas, inexploradas: já vi lágrimas inundarem os olhos de mulheres adultas, mulheres amadas, mulheres de talentos e conquistas, porque uma criancinha na sala, quase sempre uma sobrinha ou sobrinho querido(a), as havia descrito como ‘enrugadas’ ou lhes havia perguntado quantos anos tinham. Quando nos fazem essa pergunta, sempre nos sentimos arrasadas com sua inocência, de certa maneira envergonhadas pelo tom límpido com que é feita. O que nos envergonha é o seguinte: a resposta que damos nunca é inocente. A resposta que damos é confusa, evasiva, até mesmo culpada. Neste momento, quando respondo essa pergunta, percebo que duvido da minha própria exatidão, que checo novamente a conta aritmética cada vez mais impossível (...), que insisto para mim mesma (ninguém mais se importa muito com isso) que deve haver algum erro: ontem mesmo eu tinha cinquenta e poucos, quarenta e poucos, ainda ontem eu tinha 31 anos.”


“Continuo abrindo caixas. [...] Encontro mais fotografias desbotadas e marcadas do que jamais gostaria de voltar a ver. [...] Encontro diversos convites de casamento de gente que já não está casada. [...] Encontro diversos cartões de missas de corpo presente de pessoas cujos rostos não me lembro mais. [...] Em teoria, essas lembranças serviriam para trazer de volta o momento. [...] Na verdade, elas servem apenas para deixar claro o quão inadequadamente apreciei o momento enquanto ele estava acontecendo. [...] O quão inadequadamente apreciei o momento enquanto ele estava acontecendo é outra coisa que que eu nunca me permiti ver. (...) ‘Você tem suas recordações maravilhosas’, disseram as pessoas mais tarde, como se recordações fossem um consolo. Não são. Recordações referem-se por definição a tempos passados, coisas passadas. (...) Recordações são aquilo que você não deseja mais recordar.”


L’adoptada, foi como ela passou a ser chamada no seio do lar. A adotada. [...] M’ija também. Minha filha. [...] A adoção, eu iria descobrir, embora não imediatamente, é algo difícil de compreender. [...] Enquanto conceito, até mesmo o que era então a narrativa mais amplamente aprovada trazia consigo uma má notícia: se alguém ‘escolheu’ você, o que isso lhe diz? [...] Isso não lhe diz que você estava disponível para ser ‘escolhido’? [...] Isso não lhe diz, ao fim e ao cabo, que só existem duas pessoas no mundo? [...] Aquela que ‘escolheu’ você? [...] E aquela que não? [...] Estaríamos começando a entender como a palavra ‘abandono’ poderia ter entrado nesse quadro? Será que não nos esforçamos, talvez, para evitar tal abandono? Não poderiam esses esforços ser caracterizados como ‘desespero’?”


“(...) quando ela começou a perder seu primeiro dente de leite. Ela havia notado que o dente estava mole, balançara-o, o dente ficou ainda mais mole. Tentei me lembrar de como se resolvia esse tipo de situação na minha infância. Minha lembrança mais coerente envolvia minha mãe amarrando um fio no dente mole, prendendo o fio na maçaneta de uma porta e batendo-a. Tentei fazer o mesmo. O dente ficou preso onde estava. Ela chorou. Apanhei as chaves do carro e gritei chamando Tony: amarrar o fio na maçaneta da porta tinha esgotado de tal maneira minha aptidão para cuidados improvisados que meu único pensamento agora era levá-la à emergência do centro médico da UCLA, a uns cinquenta quilômetros dali. Tony, que fora criado com três irmãos e vários primos, tentou sem sucesso me convencer de que seria um exagero. ‘Deixe só eu tentar uma coisa antes’, ele pediu por fim, e arrancou o dente com um puxão. (...) Na segunda vez em que um de seus dentes ficou mole, ela mesma o arrancou com um puxão. Eu havia perdido a autoridade. (...) Seria eu o problema? Teria eu sido sempre o problema?”


“(...) supunha-se enganosamente que, por eu estar em um leito da unidade de cardiologia, eu devia ter algum problema cardíaco: eu estava velha. Estava velha demais para morar sozinha. Estava velha demais para que me deixassem sair da cama. Estava velha demais até mesmo para reconhecer que, se haviam me dado um leito na unidade de cardiologia, é porque algum problema cardíaco eu devia ter. (...) Processar o que as pessoas diziam não era, naquele momento, o meu forte, mas aquela enfermeira parecia estar sugerindo que meu ‘problema cardíaco’ não estava aparecendo nos monitores porque eu havia desligado de propósito os eletrodos. (...) ‘Claro que a senhora tem um problema cardíaco’, respondeu. E depois, encerrando o assunto: ‘Porque, de outra forma, a senhora não estaria internada na unidade de cardiologia’. (...) Eu não tinha resposta para isso. (...) ‘Como a senhora normalmente se movimenta pelo seu apartamento?’, alguém de avental cirúrgico insistia em perguntar, espantado com o que parecia considerar minha mobilidade inteiramente imerecida, e por fim providenciando ele mesmo uma resposta: ‘De andador?’. (...) A desmoralização ocorre em um instante. Sinto dificuldades em expressar a extensão do quanto duas noites de hospitalização relativamente sem maiores complicações me afetaram de forma negativa. Não houve nenhuma cirurgia. Não houve nenhum procedimento incômodo. Não houve absolutamente nenhum verdadeiro desconforto, exceto o emocional. No entanto, eu me sentia vítima de um mal-entendido grosseiro. Desejava apenas voltar para casa, lavar o sangue do meu cabelo e parar de ser tratada como uma inválida. Em vez disso, estava acontecendo justamente o contrário. (...) Até os meus próprios amigos, que passavam para me visitar após o trabalho, completamente no controle de si mesmos, sem sangue nenhum no cabelo, adultos sencientes que davam e recebiam telefonemas, faziam planos para o jantar e traziam-me sopas geladas perfeitas que eu não conseguia comer porque o leito do hospital era tão inclinado que impossibilitava sentar-se direito, agora falavam da necessidade de ‘colocar alguém em casa’.”


“(...) Os nomes estavam sempre mudando. Transtorno maníaco-depressivo, por exemplo, tornou-se TOC e TOC era a abreviação de transtorno obsessivo-compulsivo e transtorno obsessivo-compulsivo tornou-se alguma outra coisa, eu nunca conseguia me lembrar exatamente o quê. De todo modo, não fazia diferença, porque quando eu me lembrava já havia um novo nome, um novo ‘diagnóstico’. Coloco o termo ‘diagnóstico’ entre aspas porque ainda não cheguei a ver nenhum caso em que um ‘diagnóstico’ levou a uma ‘cura’, ou, a bem da verdade, a qualquer outro resultado que não uma debilidade confirmada e, portanto, imposta. (...) Mais uma prova de que a medicina é uma arte imperfeita.”


“Todos os filhos adotados, assim me disseram, temem ser abandonados pelos pais adotivos, tal como acreditam terem sido abandonados pelos pais biológicos. Foram programados, pelas circunstâncias singulares de sua introdução na estrutura familiar, a ver o abandono como seu papel, seu fardo, o destino que os dominará, a menos que fujam dele.”


“Eu me vejo cada vez mais focada nessa questão da fragilidade. [...] Sinto medo de cair na rua, imagino mensageiros de bicicleta me derrubando no chão. A aproximação de uma criança em uma scooter motorizada me faz congelar no meio do cruzamento. Não tomo mais café da manhã no 3 Guys da Madison Avenue. E se eu cair no caminho? [...] Eu me sinto instável, desequilibrada, como se meus nervos estivessem falhando, o que pode ou não ser verdade. [...] Ouço um novo tom na voz dos conhecidos quando eles me perguntam como estou, um tom que ainda não havia percebido e que considero cada vez mais opressivo, até mesmo humilhante. Ao perguntarem, esses conhecidos parecem impacientes, meio preocupados, meio irritados, como se já não estivessem interessados na resposta. [...] Como se soubessem bem demais que a resposta será uma queixa.”


“(...) A luz lá fora já estava começando a escurecer. O verão já chegava ao fim, ela continuava lá em cima, na UTI com vista para o rio, e o cirurgião dizia que ela não estava em ótimas condições quando foi levada para lá. [...] Em outras palavras, ela estava morrendo. [...] Agora eu sabia que ela estava morrendo. [...] Não havia como evitar saber disso. Não havia como acreditar nos médicos quando eles tentavam não parecer desencorajadores. Não havia como fingir para mim mesma que o espírito dos fundadores da AIG dariam um jeito nisso. Ela iria morrer. Não necessariamente naquela noite, não necessariamente no dia seguinte, mas estávamos seguindo rumo a esse dia.”


Presentes no livro de memórias “Noites azuis” (HarperCollins Brasil, 2023), de Joan Didion, traduzido por Ana Carolina Mesquita, páginas 61, 147-148, 53+72-73, 68, 40-41, 157 a 159, 55, 131, 119-120 e 172, respectivamente.


Aforismos de Joan Didion em “Noites azuis”

“O medo não é daquilo que se perdeu. (...) O medo é daquilo que ainda resta a perder”

“Eu já não desejo mais nada que lembre o que foi, o que se quebrou, o que se perdeu, o que se desperdiçou”

“Justificamos cada vez mais esse envolvimento elevado com nossos filhos como algo essencial a sobrevivência deles”

“Em um dia estamos preocupados em nos vestir bem, acompanhar as notícias, nos manter atualizados, lidar com as adversidades, o que poderíamos chamar de permanecer vivos; no outro, não”

Aforismos presentes no livro de memórias “Noites azuis” (HarperCollins Brasil, 2023), de Joan Didion, traduzido por Ana Carolina Mesquita, páginas 202, 51, 111 e 197+198, respectivamente.

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