Luci Collin (foto: Gilberto Camargo)
Terso
Luci Collin
sombras tomam o espírito
e então limpamos as ervas do jardim
em silêncio absoluto
tiramos o pó do templo
e novamente e então de novo
recolhemos as cinzas do incenso
porque as sombras tomam nosso espírito
limpamos e repetimos os gestos
não porque não se entenda a sujeira
porque se infira anistias
mas para purgar as fraquezas
as brechas os rombos
a mentira que vem colada
aos desejos de eternidade
limpamos o caminho entre a porta
e a estrada
a porta de saída e a estrada de infinitude
lustramos o assoalho
dobramos toalhas
reposicionamos pedras
cuidamos de varrer no sentido das fibras do tatame
não porque haja pacto com o limpo
mas porque às vezes são as sombras
que assaltam e impedem que o espírito
mova-se
cristalino
--------
De se fazer
Luci Collin
quando desenlouqueceu
amélia pôs-se a queimar a comida
a adoçar a sopa
a ter vaidades ruidosas
queria dançar mazurcas
quadrilha tango burlesca
o que fosse o que desse
queria pintar-se alçar-se
exercer-se
viu sua cara no espelho
deu sua cara a bater
banhou-se perfumou-se
batizou-se
e tratou de aprumar
as asas que a vida lhe deu
aquilo sim é que era voo de verdade
--------
Lembrete
Luci Collin
o envelope rasgado às pressas
o caco da porcelana dócil
o dedal exíguo o leque descorado
a coleção de descuidos
uma miniatura de abraço
e agora
serão exatos todos os saltos
serão inúmeros os sonos
não há termos científicos o suficiente
serão precisos todos os gritos
para nomear olhares incandescentes
que sem cerimônia relataram espanto
de fugidios contornos
de ardores manifestos
de saudade e de despovoamento
da mestria da palha que apodrece
dos beijos sós e selvagens
do rol alegado no próprio batismo
como se acredita no laço de fita
como se inventa uma infância
como se espera uma febre
como se talha um amor
--------
Legiäo
Luci Collin
guardar o raro
não o da torre
não o dos longos discursos
mas aquele da gota
e do voo
manter preservado
o fogo
resguardado o gesto
de constância inefável
mas que carrega em si eras
e sagrar a transmissão
dos passos
permanecer não
na compreensão do sentido
da frase do movimento
mas na claridade
do repouso
--------
Profusão
Luci Collin
o que quero dizer-te meu amor
é como a água
e eu cedo meu corpo submerso
e tuas mãos coloridas que espalham
flores infrequentes
e tua risada que abre meu ventre
faz acumular luas
e como água nenhuma
o teu contorno me ocupa
é a tua letra firme que me inscreve
inaugurando arenas e granitos
traz touros que irrompem
traz a euforia do usufruto
e o sol cobre o gramado
não sou mais nenhum segredo
minha aflição guardei-a
as tempestades negligenciei para sempre
perpetuei os vermelhos mais nítidos
de ser imensamente fêmea
os mais infinitos acenos
entreguei-te
um desenho de rio sem margens
e toquei teu rosto de amigo
o que quero dizer-te
é como a aurora
quando respiras sobre mim
eu tudo que se encharca pelas madrugadas
o que absorve e o que é solércia
e tu o que ingressa o que trespassa
o que move e restaura
é como a seiva
a noite assegurou-nos cadências
e tomas com tuas mãos inusitadas
o brilho suspenso
e colhes com teu artificio de cúmplice
acertos e tudo o que conflagrará oceanos
no que quis aqui dizer-te
no que disseste em mim
--------
Exercício
Luci Collin
sim houve um tempo em que você sorria
porque a noite era filigrana
e o próprio tempo encontrava casa e comida
na sua possível risada
branca e esférica
um tempo em que você plantava
porque a terra era unânime
e a própria semente via-se querer
tempo em que você deixou raros bilhetes
distribuiu prendas e especiarias
e trocou a água do mar
e guardou cada um dos peixes nos olhos
e balançou as pernas no final da tarde
e varreu sempre a varanda estreita da casa
todo santo dia
na repetição do gesto
no em nome do pai
a conta cumprida no terço
a pedra a deslizar firme no ábaco
a aurora vindo
ondas se sobrepondo à sua própria exaustão
e o galho entendendo em si a folha caída
e a terra calando a cisma da placa tectônica
na minha crença de mansidão
na depredação dos arcanos
herdei nenhuma clareza quanto aos enunciados
do ventre do vulto da derme
(pensei gosto, delícia)
herdei nenhuma doutrina
(será minha alma jogada ao cardume
afundará a tempo
perderei os olhos primeiro?)
agora ao lograr a concessão do silêncio
que mesmo muito se quer
plantarei figos ruminarei rios
cuidarei de lucubrar ritos
e encontrarei você ali mesmo
varrendo a cal da varanda
remindo o sal rouco das águas
absolvido do súlfur do tempo
romperá um recurso em cada sorriso
todo santo dia
--------
Peça
Luci Collin
o homem
em mim
esculpe
(lentamente)
cicatrizes
a mulher
em mim
refaz
(ponto por ponto)
a estrada
a estátua
(olho por olho)
refaz
em mim
a mulher
o homem
em mim
fabula
(solenemente)
cigarras
--------
Cinzel
Luci Collin
esse caminho até o microfone
como é imenso esse palco
é coisa imprecisa mesmo
sem nome de batismo
como talvez eu todo mundo
sem possibilidade de escape
o que dói
o que quase destrói
há uma mentira e eu tão extremos
que não escuto que não entendo
e as pernas o engesso
e não corro não cogito não fundo
tudo escancarado
inclusive o plástico real dos lírios
o mercúrio sonoro das febres
e o tempo que desfilou estrofes incompletas
tornará tudo sublime
e todas as portas se destrancam
e todas as vozes se confirmam
talvez o mais forte o mais florescente
seja o que nunca diz nada
o que definitivamente
cala protege-se com armas
manda que subam a ponte
talvez o mais nobre
talvez o mais pródigo seja
o que dorme até tarde
o que é até tarde
o que arde
seja o que não abaixa o olhar
o que não precipita reprimendas
nem louva a profundidade do fosso
o que gargalha solto
mesmo quando a sobremesa
é osso
--------
Rosa-após
Luci Collin
tudo é velho
mas teu sorriso está a salvo
com alguma esperança
deposito aqui velhas perguntas
que reerguem noites e seus sustos
éguas madrinhas com seus cincerros
que eternizam suspiros
que estancam o fluxo das faltas
que nos fazem
hoje o verso é álgido
é um beijo velho e roubado
um vinho magoável
uma carta sem ter destino
hoje o verso é uma vozinha inaudível
que confundirão com esgares
deuses esqueléticos engolem pão e serragem
e sonham que sangram
e seguem pintando as rosas de rubro
pintando sofregamente as estrelas
criadores reinventam as nuvens e mais
astros e sóis remotos
depois cospem de lado
e
na solenidade do descaso
os dedos espantados cobrem todo o teclado
tentando fugir talvez
em inconsolável desgoverno
na mais precária consciência
tentam alinhar-se aos reboos
ora é lótus ora lodo
ora uma cor de remanso
ora subtração e retorno
e vamos recolhendo
as pequenas mortes
lestas manhãs
todo dia
quando encaro o rosto de frente
aos olhos falta o hoje
falta o olhar no seu rosto
agora tudo é grave
e ao mesmo tempo acessório
o incenso que queima rápido
nos devolve
a solidão original
em forma de
cinza
--------
To beat or not
Luci Collin
de inédito a alma lavada
que o vinho cravou de instintos
pego carona até o fundo do sétimo mar
faço rima com deuses estabanados
você pula do trem em movimento
escampa no pangaré do carrossel
atira-se do edifício em fúria
jogue-me suas traças
mitigue nossas cinco mil chagas
vocifero como se calasse
calo como se florescesse
nós o par eterno de incomunicáveis
cenas que a espera requenta
mapa que a véspera apaga
um bongo de som bélico apascenta
palavras improvisadas
rito de dias sem dono
beija-se o chão sem rumo
o céu traga a reta infinita e vira
destino
esse tanto escrever
sobre si
mesmo
Presentes no livro de poemas “Rosa que está” (Iluminuras, 2019), de Luci Collin, páginas 60, 27, 49, 51, 44-45, 46-47, 34, 32-33, 38-39 e 23, respectivamente.
Comentários