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Vinte poemas de Anna Akhmátova no livro Antologia poética



Música
                    Para D. D. Sh.

Algo de miraculoso arde nela,
fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar
depois que todo o resto tem medo de estar perto.
Depois que o último amigo tiver desviado o seu olhar
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores explodissem em versos.

                                                                1957/1958

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Separação

1
Nem semanas nem meses — anos
levamos nos separando. Eis, finalmente,
o gelo da liberdade verdadeira
e as cinzentas guirlandas na fachada dos templos.

Não mais traições, não mais enganos,
e não me terás mais de ficar ouvindo até o amanhecer,
enquanto flui o riacho das provas
da minha mais perfeita inocência

                                                     1940

2
E como sempre acontece nesses dias de ruptura,
à nossa porta bateu o espectro dos primeiros dias
e, pela janela, irrompeu o salgueiro prateado
com toda a encanecida magnificência de seus ramos.
E nós, perturbados, amargos mas altivos,
não ousamos erguer do chão os nossos olhos.
Com voz exultante, o pássaro pôs-se a cantar
o quanto um do outro tínhamos gostado.

                                                                      25/09/1944

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Vinte e um. Noite. Segunda-feira
A silhueta da cidade na neblina.
Algum desocupado inventou
essa história de que há amor no mundo.

E por preguiça ou por tédio,
todos acreditaram nele e assim viveram:
esperando encontros, temendo rupturas
e cantando canções de amor.

Mas a outros será revelado o segredo
e sobre estes cairá o silêncio...
Eu tropecei nele casualmente e, desde então,
sinto-me como se estivesse doente.

                                                         1917

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Esboços de Komarôvo

E aqui renunciei a tudo.
A todos os bens terrestres.
O cepo de árvore no bosque converteu-se
no espírito guardião deste lugar.

Todos nós somos um pouco hóspedes desta vida.
Viver é apenas um pequeno hábito.
Parece-me ouvir, nos aéreos caminhos,
o som de duas vozes conversando.

De duas? Mas ainda há, perto do muro leste,
em meio aos robustos pés de framboesa,
a sombra fresca do ramo de sabugueiro.
Esta é uma carta de Marina.

                                              1961

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Cerca de ferro fundido
e a cama feita de pinho.
Como é doce não ter mais
de sentir de ti ciúmes.

Forraram a minha cama
com súplicas, com soluços.
Vai, procura o teu caminho
onde queiras, Deus te guie.

Já não ferem teus ouvidos
palavras descontroladas,
já ninguém espera a vela
queimar até o dia seguinte.

Finalmente conseguimos
paz e dias inocentes
Tu choras — mas eu não valho
uma só de tuas lágrimas.

                                         27/08/1921

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Ele gostava de três coisas neste mundo:
o coro das vésperas, pavões brancos
e mapas da América já bem gastos.
Não gostava de crianças chorando,
nem de chá com geleia de framboesa
e nem de mulheres histéricas
... e eu era a mulher dele.

                                         09/11/1911

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8
Tu me inventaste. Não há um ser assim,
e nem poderia um ser assim haver.
O médico não cura, o poeta não consola —
uma aparição te assombra dia e noite.
Nós nos encontramos num ano inacreditável
quando as forças do mundo se esgotavam;
tudo estava de luto, murcho pelo infortúnio
e só os túmulos mantinham-se frescos.
Sem as luzes da rua, o Nevá era um breu
e na espessa noite eu estava emparedada...
Foi então que a minha voz te chamou.
Por que ela o fez — ainda não entendo.
Mas vieste a mim, guiado pela estrela,
naquele outono trágico, entrando
naquela casa irremediavelmente arruinada,
de onde fugira um rebanho de versos calcinados.

                                                            18/08/1956

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Treze versos

E finalmente pronunciaste a palavra
não como quem se ajoelha,
mas como quem escapa da prisão
e vê o sagrado dossel das bétulas
através do arco-íris do pranto involuntário.
E à tua volta cantou o silêncio
e um sol muito puro clareou a escuridão
e o mundo por um instante transformou-se
e estranhamente mudou o sabor do vinho.
E até eu, que fora destinada
da palavra divina a ser a assassina,
calei-me, quase com devoção,
para poder prolongar esse instante abençoado.

                                                                  1962

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Não estás mais entre os vivos.
Da neve não podes erguer-te.
Vinte e oito baionetadas.
Cinco buracos de bala.

Amarga camisa nova
cosi para o meu amado.
Esta terra russa gosta,
gosta do gosto de sangue.

                                        16/08/1921

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II
Lento flui o Don silencioso.
Amarela a lua entra em casa,

entra com seu boné enviesado,
a lua amarela, e depara com uma sombra.

Esta mulher está doente,
esta mulher está sozinha.

O marido morto, o filho preso.
Digam por mim uma oração.

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V
Há dezessete meses choro,
chamando-te de volta para casa.
Já me atirei aos pés de teu carrasco.
És meu filho e meu terror.
As coisas se confundem para sempre
e não consigo mais distinguir, agora,
quem a fera, quem o homem,
e quanto terei de esperar até a tua execução.
Só que me resta são flores empoeiradas
e o tilintar do turíbulo e pegadas
que levam de lugar nenhum a parte alguma.
E bem nos olhos me olha,
com a ameaça de uma morte próxima,
uma estrela enorme.

                                 1939

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Epílogo

1
Aprendi como os rostos se desfazem,
como o pavor dardeja sob as pálpebras,
como a dor sulca a tabuinha do rosto
como seus rugosos caracteres cuneiformes,
como os cachos negros ou cinzentos
de um dia para o outro se prateiam,
como em lábios submissos o sorriso fenece
e, com um risinho seco, como se treme de medo.
E não e só por mim que rezo,
mas por todas as que estiveram lá comigo,
no frio selvagem, no tórrido mês de julho,
em frente à muralha rubra e cega.

2
Uma vez mais volta o Dia da Lembrança.
Vejo, ouço, sinto por vocês todas:

aquela que mal conseguiu chegar ao fim,
aquela que já não vive mais em sua terra,

aquela que, balançando a bonita cabeça,
disse: “Volto aqui como se fosse o meu lar”.

Gostaria de poder chamá-las, a todas, por seu nome,
mas levaram a lista embora, e onde posso me informar?

Para elas teci uma ampla mortalha
com suas pobres palavras que consegui escutar.

Sempre e em toda parte hei de lembrar-me delas:
delas não me esquecerei, nem numa nova miséria.

E se tamparem a minha boca fatigada,
através da qual jorra um milhão de gritos,

que seja a vez de todas elas me lembrarem,
na véspera do meu Dia da Lembrança.

E se, neste país, um dia decidirem
à minha memória erguer um monumento,

eu concordarei com essa honraria,
desde que não me façam essa estátua

nem à beira do mar, onde nasci —
meus últimos laços com o mar já se romperam —,

nem no jardim do Tsar, junto ao tronco consagrado,
onde uma sombra inconsolável ainda procura por mim,

mas aqui, onde fiquei de pé trezentas horas
sem que os portões para mim se destrancassem;

porque, mesmo na morte abençoada, tenho medo
de esquecer o som surdo das Marias Pretas*,

de esquecer como os odiosos portões estalavam
e como a velha gemia qual animal ferido.

Das pálpebras imóveis, das pálpebras de bronze,
deixem que corram lágrimas qual neve fundida,

deixem que as pombas da prisão arrulhem na distância
e que os barcos deslizem em silêncio sobre o Nevá.

                                                          Março de 1940

* “Maria Preta” era o nome popular dado aos carros
usados pela NKVD, a polícia política stalinista.

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Dedicatória

Diante dessa dor, as montanhas se inclinam
e o grande rio deixa de correr.
Mas os muros das prisões são poderosos
e, por trás deles, estão as “tocas dos condenados”
e a saudade mortal.
É para os outros que a brisa fresca sopra,
é para os outros que o pôr do sol se enternece —
mas nada sabemos disso: somos as que, por toda parte,
só ouvem o odioso ranger das chaves
e o passo pesado dos soldados.
Levantávamo-nos como para o culto da madrugada,
arrastávamo-nos por esta capital selvagem,
para nos encontrarmos lá, mais inertes do que os mortos,
o sol cada vez mais baixo, o Nevá mais nevoento,
enquanto a esperança cantava bem ao longe...
O veredicto... e as lágrimas de súbito brotam.
E ei-la separada do mundo inteiro
como se de seu coração a vida se arrancasse,
como se com um soco a derrubassem.
E, no entanto, ela ainda anda... cambaleando... sozinha...
Onde estão, agora, as companheiras de infortúnio
desses meus dois anos de terror?
O que estarão vendo, agora, na neblina siberiana?
A elas eu mando a minha última saudação.

                                                                 Março de 1940

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VIII
À morte

De qualquer jeito virás — então, por que não vens já?
Estou te esperando: tudo para mim ficou difícil.
Apaguei a luz, abri a porta
para ti, tão simples, tão maravilhosa.
Para isso, toma o aspecto que quiseres:
entra como um obus envenenado,
ou sorrateira qual hábil bandido,
ou como as emanações do tifo,
ou sob a forma daquela fabula que tu mesma inventaste
e que todos já conhecem até a náusea —
na qual torno a ver o topo do quepe azul e,
por trás dele, o zelador pálido de medo.
Para mim dá na mesma. O Ienissêi corre turbulento.
A Estrela Polar brilha no céu.
O brilho azul dos olhos que eu amo
é recoberto por esse terror.

                                          19/08/1939

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Quando, na angústia do suicídio,
o povo esperava pelo hóspede germânico,
e o austero espírito de Bizâncio
desertava a Igreja russa,
quando a capital às margens do Nevá,
esquecida de sua grandeza,
como uma prostituta bêbada
nem sabia mais a quem se entregava,
ouvi uma voz consoladora
que me dizia: “Vem para cá,
abandona essa terra surda e pecadora,
abandona a Rússia para sempre.
Limparei o sangue de tuas mãos,
a negra vergonha arrancarei de teu coração,
com um nome novo cobrirei
a injúria e a dor da derrota”.
Mas eu fiquei calada e indiferente
e tapei os ouvidos com as mãos
para que essas indignas palavras
não viessem profanar minha alma aflita.

                                      Outono de 1917

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Prólogo

Houve um tempo em que só sorriam
os mortos, felizes em seu repouso.
E como um apêndice supérfluo, balançava
Leningrado, pendurada às suas prisões.
E quando, enlouquecidos pelo sofrimento,
os regimentos de condenados iam embora,
para eles as locomotivas cantavam
sua aguda canção de despedida.
As estrelas da morte pairavam sobre nós
e a Rússia inocente torcia-se de dor
sob as botas ensanguentadas
e os pneus das Marias Pretas.

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O último brinde

Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo —
aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou.

                            27/03/1934

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O primeiro projétil de longo alcance atinge Leningrado

E o multicolorido ruído da multidão
calou-se de repente.
Mas não era um som típico da cidade,
e tampouco do campo,
esse longínquo estrondo que mais parecia
ser o irmão gêmeo do trovão.
Se bem que, no trovão, há a umidade
das nuvens, altas e frescas,
e o desejo das campinas
de que venha um alegre aguaceiro.
Neste havia só um calor seco, escorchante;
mas não quisemos acreditar
nesse rumor que ouvíamos — porque
ele crescia e aumentava e se expandia,
e por causa da indiferença
com que trazia a morte a meu filho.

                            Setembro de 1941

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Não estou com aqueles que abandonaram a terra
às dilacerações do inimigo.
Às suas grosseiras lisonjas não cedo.
A eles não darei minhas canções.

Para mim, o exilado é digno de dó,
como quem está preso ou está doente.
Sombria é a tua estrada, peregrino,
vermes infestam o teu pão estrangeiro.

Mas aqui, em meio à fumaça do incêndio,
que consome o que resta da nossa juventude,
sabemos que nem um pouquinho
nos afastamos de nós mesmos.

E sabemos que, na hora do acerto final,
cada um de nossos momentos estará justificado...
Não há no mundo gente mais sem lágrimas,
mais simples e orgulhosa do que nós.

                                     Julho de 1922

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Eu perguntei ao cuco
quantos anos viveria...
O topo do pinheiro estremeceu,
o sol banhou a relva de dourado,
mas som algum perturbou a clareira...
Voltei então para casa.
A brisa fresca acariciava
a minha fronte escaldante.

                                        01/06/1919


Presentes no livro de poemas “Antologia poética” (L&PM, 2018), de Anna Akhmátova, traduzido e organizado por Lauro Machado Coelho, páginas 107, 85, 69, 110-111, 77-78, 56, 104-105, 115, 75, 89, 90-91, 94 a 96, 88, 92, 72-73, 88-89, 85-86, 101, 76-77 e 73, respectivamente.

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