João Pereira Coutinho
“(...) O amor não sobrevive aos ritmos da nossa modernidade. O amor exige tempo e conhecimento. Exige, no fundo, o tempo e o conhecimento que a vida moderna de hoje não permite e, mais, não tolera: se podemos satisfazer todas as nossas necessidades materiais com uma ida ao shopping do bairro, exigimos dos outros igual eficácia. Os seres humanos são apenas produtos que usamos (ou recusamos) de acordo com as mais básicas conveniências. Procuramos continuamente e desesperamos continuamente porque confundimos o efémero com o permanente, o material com o espiritual. A nossa frustração em encontrar o ‘amor verdadeiro’ é apenas um cliché que esconde o essencial: o amor não é um produto que se compra para combinar com os móveis da sala. É uma arte que se cultiva. Profundamente. Demoradamente.”
“A tentação totalitária é a tentação dos ressentidos. De todos aqueles que encaram o poder não só como forma de transformação do mundo mas sobretudo como instrumento de destruição de um mundo de que se sentem excluídos. Por isso, ao chegarem ao poder, na França de 1789, na Rússia de 1917 ou na Alemanha de 1933, os ressentidos procuram destruir instituições que conferiam poder aos outros. A lei, a propriedade privada, a religião e qualquer outra fonte de poder ‘intermédio’ entre o Estado e os indivíduos.
Mas o ressentido não procura só destruir qualquer princípio de autoridade que se oponha à sua própria autoridade. Ele entende que não há destruição sem inimigo e a tentação totalitária exige um grupo capaz de expiar todas as falhas. A aristocracia para os jacobinos. Os burgueses e os kulaks para os comunistas soviéticos. Os judeus para os nazis. E, numa escala menor e individual, os ‘miúdos ricos’ para Cho Seung-hui, o monstrinho solitário que deplorava nos outros o ‘materialismo’, o ‘deboche’ e a indiferença perante ele. Olhar e escutar o criminoso da Virgínia é uma lição preciosa para entender dois séculos de política e ressentimento.”
“(...) quando Bobby pergunta a um dos casados se ele nunca lamentou ter dado o passo matrimonial (...) a única resposta possível para quem partilha os dias com alguém: lamentamos e agradecemos; duvidamos e temos absoluta certeza; sentimos que não estamos sós e sabemos que continuamos sós. (...) Company não é apenas um musical sobre adultos. É sobretudo um musical para adultos, sem que o patético sentimentalismo romântico se introduza nos versos, pronto para distorcer a verdade última da nossa condição: sim, existem vários motivos para não estarmos com alguém; mas talvez não exista nenhum para estarmos sozinhos. (...) Para quê deixar entrar na nossa vida alguém disposto a sentar-se na nossa cadeira, a arruinar o nosso sono, a conhecer-nos profundamente e, quem sabe, a magoar-nos profundamente? Porque estar só é estar só, não é estar vivo.”
“(...) A estima pressupõe o olhar dos outros sobre nós. O respeito pressupõe o olhar de nós sobre nós próprios. A auto-estima depende da opinião alheia. O auto-respeito depende da opinião pessoal: de aceitarmos o que somos sem a obrigação tirânica de sermos o que os outros esperam que sejamos. Para Montaigne, é o auto-respeito que permite uma felicidade serena, ou possível. A auto-estima, porque dependente de terceiros, é volátil como o vento. E gera uma insatisfação voraz que transforma qualquer ser humano num escravo.”
“As pessoas usam e abusam da palavra génio. Alguém escreve, pinta ou filma com relativa competência e as massas críticas irrompem em delírio, proclamando genialidade com assustadora ligeireza. Como se chegou a este triste estado, em que os génios se multiplicam com a rapidez própria dos coelhos? (...) Todos somos génios, o que implica que ninguém é. O acto tem efeitos perversos: ao declarar qualquer um como génio, acabamos por ignorar os verdadeiros. Que são, como sempre foram, raros.”
“Não sou geólogo, físico ou astrónomo. A minha ignorância nestas matérias tem o tamanho de um rochedo fatal. Mas, com a devida vénia aos sábios, nada disso invalida o meu fascínio aterrador: o dia em que séculos e séculos de vida ou civilização serão apenas um segundo, suspiro, no eterno silêncio do universo. Ter estado, não ter estado: apenas uma diferença gramatical. E as obras que fomos acumulando, lendo, vendo, vivendo, para nossa beleza e consolação, serão apenas fantasmas sem memória, ou sem gente para os recordar. As palavras todas, as imagens todas. Serão como o pó mais negro que se espraia pelo vazio como uma onda de esquecimento.”
“(...) se a liberdade de expressão é uma benesse, ela implica aceitar vozes discordantes que devem ser toleradas, ou ignoradas, ou debatidas — e, em casos extremos, denunciadas por pessoas concretas que se sintam atingidas no seu bom nome. Existem tribunais para isso. Mas nenhuma sociedade livre será capaz de sobreviver pela criminalização de todas as opiniões que o ‘senso comum’ maioritário considera ofensivas. Proibir é a atitude preguiçosa do tirano menor que, incapaz de tolerar, ignorar ou refutar intelectualmente uma opinião, prefere criminalizá-la.”
“(...) Amores de um mês, conhecimentos de praia que foram como vieram, mesmo quando nesse tempo tudo parecia eterno e as promessas tinham o peso das declarações definitivas. Eu nunca te vou esquecer, diziam os dois. Despediam-se, choravam, havia uma orquestra imaginária que descia dos céus. As ondas imolavam-se contra as rochas, como num filme de Hitchcock.
Nas semanas seguintes, as cartas trocavam-se com uma urgência só concedida aos amantes nas óperas clássicas. Combinavam-se prazos. Memorizavam-se estações ferroviárias, como nos filmes franceses tão cheios de tristeza e neblina. ‘Eu estarei lá.’ Mas a vida intrometia-se entretanto, o Outono chegava para arrefecer os corpos e havia cartas mais esparsas — uma por semana, uma por mês — até só restar silêncio e memória e mais nada.
(...)
O coração é elástico quando somos adolescentes e estúpidos. Morremos várias vezes, ressuscitamos várias vezes. Usamos e abusamos desse músculo que bate apressadamente no peito como um tambor festivo porque acreditamos que a festa é móvel, como na Paris de Hemingway, um carrossel que não pára nunca, e que cada tristeza será redimida por uma nova alegria triste.
Mas envelhecemos. O coração bate mais devagar. As ondas não rebentam contra as rochas ao som da orquestra: são agora espuma lenta e cansada, como nós, e apenas se exaltam com a regularidade cósmica de um ciclo lunar. Arrumo tudo numa caixa e pergunto se vale a pena (...) levar o passado comigo e arrumá-lo num sótão, que será um dia revolvido por filhos ou netos.”
“(...) era impressão minha ou a alegria do Brasil vinha sempre embalada numa tristeza funda — a tristeza própria de quem ri para não chorar? (...) Ela gostou da pergunta e contou uma história apropriada: a história de como os cariocas transbordam de agrado para as câmaras durante o Carnaval, mas regressam à melancolia sincera quando as câmaras se apagam. Questão de segundos. Ela própria presenciara o fenómeno repetidas vezes numa única noite: o sorriso, o festejo automático, a vibração do corpo perante as lentes; e, quando as lentes se afastam, o desânimo progressivo, o desencanto e finalmente a solidão. A imagem é perfeita como comentário de outra imagem: a imagem que os brasileiros constroem de si próprios para iludir a realidade em volta.”
“(...) as pessoas falam, sim, mas raramente conversam. Qual a diferença? Falar é coisa utilitária, que começa e acaba com um propósito comum. Conversar, não: desde logo porque ‘conversar’ implica dois sentidos. Falamos e escutamos. E falamos. E escutamos. Como uma dança que precisa de dois parceiros: dois parceiros que avançam e recuam pelo simples prazer de dançar. Existe disputa. Mas existe também a natureza vagabunda de uma conversa: a forma como vai deambulando pelas ruas da intimidade sem ninguém saber exactamente como, para onde, ou porquê. (...) Tudo isto implica um desprendimento do tempo, e da ‘cultura dos resultados’, que a modernidade enterrou sem retorno. (...) a cultura do ruído surgiu e instalou-se, precisamente, para esconder a vacuidade das pessoas. Para esconder, no fundo, como os seres humanos se tornaram desinteressantes. Nada para dizer. Nada para escutar. Às vezes, o ruído em volta é até um alívio (para eles) e uma benesse (para nós).”
“(...) a visita à Córsega serve também como meditação sobre a morte: sobre a forma como os locais preservam ainda a memória física dos seus antepassados, ao contrário das sociedades urbanizadas onde vivemos e morremos. (...) Um tempo sem espaço físico para os mortos é também um tempo sem possibilidade de memória: passamos pelo mundo e, na hora final, é como se nunca tivéssemos cruzado estas terras. Passamos sem testemunho. Passamos sem testemunhas. Somos feitos de esquecimento e invisibilidade.”
“Hoje, a fama deixou de ser meritocrática; passou a ser literalmente democrática, para alegria geral das massas. Se o talento é elitista (e, por definição, não-igualitário), só uma fama desabitada de qualquer talento pode enterrar essa desigualdade. Eu sou famoso, tu és famoso, ele é famoso: toda a gente é famosa porque, no limite, ninguém é famoso.”
“O fenómeno não se limita a um shopping. Abrange as relações sociais mais mundanas. Comportamento em restaurantes. Em supermercados. Em pequenas lojas do centro. No trânsito da cidade, em trânsito pela cidade. Oscila entre a náusea e a humilhação perante os mais pobres. Uma náusea e uma humilhação que aumentam à medida que a cor da pele escurece. Só falta mesmo o chicote — em sentido físico, claro, porque psicologicamente, verbalmente, socialmente, ele já está lá. Resquícios do colonialismo e da escravatura? Talvez. (...) comento as minhas impressões com amigos paulistanos, colegas de ofício neste mundo das rotativas, a ideia é reforçada. Sim, as ‘elites’ são ostentatórias, prepotentes, grosseiras.
Profundamente racistas. Herdeiras da mentalidade Casa Grande e dispostas a subjugar as senzalas modernas com os vícios dos velhos colonizadores. Entendo. Mas, se me permitem, discordo de um ponto essencial: é um erro olhar para as ‘elites’ brasileiras como se elas fossem verdadeiras elites. Pelo contrário: as chamadas ‘elites’ são, na verdade, antielites. Elas encarnam valores e perversidades que uma elite, em sentido clássico, manifestamente repudia e despreza. (...) O problema do Brasil não está nas suas elites porque, ironicamente, o Brasil não tem elites. Tem antielites, incapazes de pensar o país como espaço comum. Ou, adaptando a linguagem teórica para a realidade prática, o Brasil tem uma falsa elite que, em matéria política, prefere colocar os interesses particulares e partidários à frente dos interesses do país. O preço a pagar é inevitável: quando o dever cívico se destrói, destrói-se a confiança e o futuro do Brasil.”
“Há uns anos, aliás, comprei brigas feias na imprensa portuguesa por afirmar o óbvio: ter orgulho da sexualidade é como ter orgulho da cor da pele. Ilógico. Se a orientação sexual é um facto tão natural como a pigmentação dermatológica, não há nada de que ter orgulho. Podemos sentir orgulho da carreira que fomos construindo: do livro que escrevemos, da música que compusemos. O orgulho pressupõe mérito. E o mérito pressupõe escolha. Na sexualidade, não há escolha.”
“(...) Quando falamos de ‘utopia’, falamos de um estado perfeito: uma realidade onde os valores mais caros à existência humana — a liberdade, a justiça, a igualdade — se encontram na sua expressão máxima. Falamos de uma realidade onde existe a liberdade máxima, a justiça máxima, a igualdade máxima. (...) Infelizmente, esse mundo não passa de uma ilusão. Não apenas pelas razões empíricas que nos levam a concluir que jamais foi possível habitar tal mundo. Mas porque os valores mais caros à existência humana são múltiplos e nem sempre compatíveis entre si. Podemos ter alguma liberdade, alguma justiça, alguma igualdade. Mas a liberdade total dos lobos significa apenas a morte dos carneiros.”
Presentes no livro de crônicas “Avenida Paulista” (Record, 2009), de João Pereira Coutinho, páginas 57, 222-223, 44, 147, 46-47, 261, 209, 131 a 133, 147, 66, 41, 85, 142+145, 177 e 75, respectivamente.
Aforismos de João Pereira Coutinho em “Avenida Paulista”
“A arte não tem género. Tem talento ou falta de”
“A culpa tem abismos que o abismo desconhece”
“A grande arte vive do que é permanente”
“O sexo começa tudo o que somos. A morte termina com tudo o que fomos”
“Dormir para que se é sempre dia dentro de nós?”
“A loucura é uma questão de perspectiva”
“A força da nossa humanidade também repousa nos momentos em que somos inocentes e vulneráveis”
“As respostas são nada quando a vida é minha e a morte é nossa”
“O amor assusta mais do que todos os fantasmas que habitam o coração humano”
“O problema da velhice é a invisibilidade”
“A frieza, a arrogância e a distância dos ingleses são a fonte da sua excentricidade — a mais importante contribuição cultural da Inglaterra ao mundo”
“Montaigne sabia que só há uma coisa pior do que caminhar para o fim. É fazer de conta que ainda estamos no início”
“A consciência do pouco que somos e temos quando o mundo conspira — sempre e sempre e sempre — para destruir as nossas últimas ilusões”
“Nos dias que passam, a eternidade vale nada quando toda a gente corre e se atropela pelo aplauso de um único dia”
“A nossa inveja é isto: desejar uma vida que pode ser nossa e que deve ser nossa”
“Num tempo em que ler é uma perda de tempo, nada melhor do que a ilusão de que um filme confere sabedoria necessária para entender o mundo”
“Millôr Fernandes costumava dizer que o problema da morte é não ser possível espantar as moscas”
“A vida intelectual é hoje essencialmente solitária e privada, onde os escribas vão cultivando os seus feudos, e os seus ódios, sob a luz triste da existência suburbana”
“Como em Shakespeare, não interessa apenas a Nelson Rodrigues aquilo que mostramos. Interessa o que mostramos, o que fomos e o que somos. Três estados para uma mesma condição”
“A solidão do insone é uma solidão desabitada de pessoas. Somos nós e nós e nós. O mundo dorme e nós somos sós”
“A suprema riqueza de livros usados está nisto: letras de fantasmas que passaram pelo mundo com as alegrias e tristezas tão próprias da nossa condição”
“O problema de um hipocondríaco não é a doença. É o medo da doença”
“O excesso de dramatismo sempre me pareceu uma forma preguiçosa de expressão”
“Demência é a nossa vida sem um toque de demência”
Aforismos presentes no livro de crônicas “Avenida Paulista” (Record, 2009), de João Pereira Coutinho, páginas 177, 41, 130, 229, 265, 274, 265, 83, 57, 104, 258, 103, 113, 86, 82, 128, 105, 215, 125-126, 263-264, 37-38, 238, 28 e 36, respectivamente.
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