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Quinze passagens do livro de crônicas Vamos ao que interessa, de João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho
(foto: Letícia Moreira)


“(...) sempre digo que a ‘felicidade’ não é um lugar a que se chega; nem sequer é um ‘estado de espírito’ que seja possível manter pela eternidade. É, tão somente, aquilo que existe quando não estamos a pensar no assunto. O que significa que ela é temporária, intermitente e, na maioria das vezes, contingente. Não se procura; encontra-nos. Estar preparado e grato para esse encontro já é um milagre da existência. Exigir mais é, paradoxalmente, uma forma de nos condenarmos à infelicidade.”


“(...) não somos nós os culpados pela loucura dos outros. Imaginar o contrário, por medo ou ignorância, é simplesmente partilhar a loucura em que eles vivem.”


“Certo, certo: ninguém ama a doença e, tirando casos extremos, ninguém deseja morrer. Mas sem a doença e a morte, a vida não teria qualquer valor em si mesma. Os projetos que fazemos; as viagens com que sonhamos; os amores que temos, perdemos, procuramos; e até a descendência que deixamos — tudo isso parte da mesma premissa: o fato singelo de não termos todo o tempo do mundo. Vivemos, escolhemos, amamos — porque temos urgência em viver, escolher e amar. Se retirarmos a urgência da equação, podemos ainda viver eternamente. Mas viveremos uma eternidade de tédio em que nada tem sentido porque nada precisa de ter sentido. Sem a importância do efêmero, nada se torna importante.”


“O filósofo John Armstrong, em ensaio recente sobre a ‘filosofia da intimidade’ (Conditions of Love), questiona por que motivo a arte sempre se ocupou do sublime — entendido aqui como experiência emocional que nos permite subir ao cume da existência — para esquecer, ou ignorar, o seu contraponto fundamental. O nome grego desse contraponto é katabasis: significa o momento em que ‘vamos abaixo’; em que nos confrontamos com a fragilidade da nossa condição; em que abandonamos a complacência (e a indiferença) onde reinamos todos os dias para aceitar uma lição de humildade. Sem katabasis, escreve Armstrong, nenhuma relação sobrevive. Porque nenhuma relação se revaloriza: é fácil amar quando se paira nas nuvens. Mas é quando descemos delas que as qualidades do outro adquirem a sua verdadeira e necessária tonalidade. Ainda nas palavras de Armstrong, não é o sofrimento que nos faz apreciar o amor. O sofrimento apenas destrói a nossa vaidade para despertar o nosso respeito pelo amor.”


“Esquerda, direita: há coisas mais importantes na vida. Vamos lendo, vamos vivendo. E então percebemos que a distinção fundamental não é entre esquerda e direita. Até porque existem várias esquerdas e várias direitas. A diferença resume-se em duas palavras: liberdade individual. Ou estamos dispostos a ceder essa liberdade a um poder político único e centralizado; ou, simplesmente, não estamos.”


          “(...) uma celebração gentil, urbana, por vezes absurda e absurdamente cômica (...) sempre foi anátema para a mentalidade dos fanáticos. (...) O Ocidente é (...) essa cultura de ‘perdão’ e ‘ironia’, como explicava o filósofo Roger Scruton tempos atrás. Uma cultura onde recusamos a literariedade do fundamentalismo para acomodarmos a imperfeição de que somos feitos. Para nos rirmos dela. E, pelo riso, para perdoarmos e nos perdoarmos. Sem ‘perdão’ e ‘ironia’, explicava Scruton, as liberdades da civilização ocidental teriam sido inalcançáveis. Como são inalcançáveis em culturas dominadas pela violência e pela intransigência de quem aplica comandos sagrados aos outros.
          David Angell mostrou o que somos em cada episódio de Frasier. E mostrou que a nossa salvação não está no martírio; está na ironia. Lembrá-lo, nos dez anos do 11 de Setembro, não é apenas evocar uma das vítimas mais famosas daquela manhã. É retirá-lo daquele avião funesto e permitir-lhe uma última gargalhada sobre o ódio e a escuridão.”


“(...) O problema do e-mail é a sua facilidade: em minutos, escrevemos e esquecemos. Ou apagamos. Ou alguém apaga por nós. Alguém nos apaga a nós. (...) As cartas tinham outro tempo. Corrijo. As cartas tinham outros tempos. O tempo de pensar. O tempo de escrever. O tempo de lacrar, enviar. Esperar. Era uma forma de respeito. Mesmo que fosse uma forma de despeito. As cartas eram formas únicas de comunicar ao outro a importância do outro. Como se cada carta fosse, por si só, uma declaração de humanidade. Parei para te escrever. Parei para te enviar esta carta. E estarei à espera que me escrevas de volta, quando pensares em mim e parares por mim. Brás Cubas não deixou a ninguém o legado da sua miséria. Mas tenho a certeza de que, algures na sua existência imaginária, deixou cartas. E as cartas são o legado da nossa passagem.”


“(...) sem memória, isto é, sem a capacidade de relembrarmos o passado, somos incapazes de reconstituir o nosso mundo e a nossa identidade. Somos nada, no fundo. Apenas escravos do presente; escravos da fugacidade do tempo, obrigados a aprender, e a reaprender, sempre e sempre, não apenas as informações mais triviais (nomes, lugares, rostos, conversas), mas também sentimentos primevos como a perda e a tristeza. Haverá maior suplício?”


“(...) há números que já não existem porque há nomes que também não. Dias atrás, assistindo a uma entrevista com um político lusitano, ele dizia que havia momentos em que sentia vontade de falar com o pai e tinha o reflexo infinitesimal de o procurar ainda na lista do celular. Só depois lembrava que o pai já não estava entre os vivos. (...) Seria bom. Sim, seria bom ligar para certos números que ficaram cá embaixo e alguém atender lá em cima. Uma secretária angelical, digamos assim, que diria com voz suave: ‘Só um momento, vou passar ao seu pai’. Apagar esses números é talvez uma das formas mais tangíveis de despedida que conheço.”


          “O tirano, afirma La Boétie olhando para a história clássica, é normalmente a figura mais ridícula (...) que existe. Raramente é um Hércules, raramente é um Sansão. Para usar a magistral prosa de La Boétie, ele é alguém ‘não habituado ao pó da batalha’, um estranho ‘às areias do torneio’. E, no entanto, é aos pés dessa anedota que os homens voluntariamente se escravizam. A ela concedem poder; a ela entregam as chaves das suas próprias correntes. Como explicar esse espantoso fenômeno?
          (...)
          E quando não são os pequenos tiranos a submeterem-se à grande tirania é o resto da nação em peso a fazê-lo, o que torna a servidão voluntária ainda mais insondável. La Boétie arrisca uma hipótese: quando a tirania começou, é possível que as primeiras vítimas tenham sentido o fato como uma privação fundamental. Mas o tirano só sobrevive porque a servidão torna-se uma espécie de tradição. Gerações passam, a memória do crime apaga-se. E para quem nunca conheceu um regime de liberdade, viver sem liberdade parece a mais natural das condições.
          A proposta final de La Boétie é, logicamente, simples: não é preciso lutar contra o tirano para terminar com o abuso; basta que um povo inteiro não colabore mais na sua própria escravidão. ‘Sem madeira, o fogo apaga-se’, escreve metaforicamente o autor. E o Colosso, sem pedestal, quebra-se em mil pedaços, conclui.
          O texto foi escrito no século XVI. Mas é impossível não pensar no jovem La Boétie quando olhamos para o nosso tempo. Tivemos ditaduras que sobreviveram obscenamente. Não apenas pelo aparato policial que elas promoveram. Mas também porque milhares, milhões de seres humanos permitiram que elas sobrevivessem. Como? Entrando voluntariamente no curral. (...) um povo que não é cúmplice da mentira também não será cúmplice da sua própria servidão.”


“O tribunal de Amsterdã não teve dúvidas: as palavras de Geert Wilders podem ser fortes. Mas uma sociedade que não tolera palavras fortes será uma comunidade de cidadãos fracos: de gente que acabará sempre por impor aos outros uma mordaça mental em nome de sensibilidades particulares — políticas religiosas, morais.”


          “Porque a verdade, a triste verdade, é que estamos mais infantis do que nunca. O jornalista britânico Michael Bywater, em livro sobre a matéria (Big Babies, or: Why Can't We Just Grow Up?), já tinha alertado para o fato: a todas as horas, em todos os lugares, são infindas as campanhas que tratam o parceiro como criança. Campanhas que nos dizem o que devemos ser; pensar; comer; dizer; como nos devemos comportar; vestir; e até despir, ou não fosse o sexo o prato principal das sociedades adolescentes em que vivemos.
          Essa infantilização absoluta dos cidadãos não é apenas praticada por autoridades democraticamente eleitas, que aconselham roupa quente quando faz frio ou chapéu de chuva quando cai chuva. Encontra-se na quantidade obscena de publicações que determinam ‘estilos’ e ‘tendências’ como se um ser adulto precisasse de ter um ‘estilo’ e cultivar uma ‘tendência’. Escreve Bywater, em frase primorosa: ‘O meu pai não tinha um estilo de vida. Ele tinha uma vida’. Curioso. O meu também. E o seu, leitor?
          No Ocidente balofo e pós-ideológico, ninguém tem uma vida para viver em paz. Porque só é possível ser-se adulto quando somos deixados em paz: nós, confrontados com as nossas escolhas e responsabilidades, sem uma mão paternalista a guiar as nossas existências. O circo em volta impede essa autonomia ao prolongar perpetuamente a infância. Quando somos tratados como crianças, dificilmente deixaremos de ser crianças.”


“Os artistas ‘boêmios’, ou pretensamente ‘boêmios’, só marcham contra a civilização burguesa precisamente porque existe uma. Sem uma civilização burguesa, o lugar deles era a irrelevância, o anonimato ou coisa pior. E não existe imagem mais patética do que ver o ódio do artista rebelde contra o exato mundo burguês (ou capitalista, tanto faz) que sustenta e promove a sua rebeldia.”


          “Platão, na sua República, não era particularmente entusiasta dos poetas da sua época. Shakespeare, tido agora como parte fundamental do ‘cânone ocidental’, era considerado um dramaturgo ‘popular’ pela intelligentsia da Inglaterra isabelina. Não estaremos nós também a ver superficialidade em toda a parte e a cometer o mesmo erro dos nossos antepassados, que sempre se consideraram testemunhas de um mundo em decadência?
          Woody Allen, de quem Vargas Llosa manifestamente não gosta, glosou sobre o assunto em Meia-noite em Paris: há nos contemporâneos de todas as eras um descontentamento com o presente que os leva a romantizar eras passadas. Assim acontecia com o personagem do filme, o roteirista Gil (um notável Owen Wilson), que suspirava no século XXI pela Paris da década de 1920. Ate viajar a esse passado de ‘festa móvel’, como diria Hemingway, e descobrir que os contemporâneos da década de 1920 suspiravam pela Belle Époque; e os contemporâneos da Belle Époque, pelo Renascimento italiano; e etc. etc., sempre em regressão nostálgica.”


          “Os ansiosos começam a sofrer em finais de outubro, inícios de novembro. Com os presentes que é preciso comprar (ou evitar); mas sobretudo com a logística que é preciso respeitar: noite de 24 na mãe dele; almoço de 25 na mãe dela; jantar de 25 na própria casa; dia 26 no manicômio da cidade. O ‘espirito de Natal’, para esses infelizes, é muito semelhante a uma prova universitária que é preciso fazer todos os anos, com os mesmos professores, sobre a mesma matéria. O eterno retorno da etiqueta. E com possibilidade de reprovação.
          Os deprimidos são outra história: incapazes de viver o Natal presente, eles são como mr. Scrooge, o personagem de Dickens, só que perpetuamente condenados a viverem apenas os Natais passados. Aproxima-se o dia 24 e é vê-los, meditabundos e lacrimejantes, recordando as companhias que tiveram e já não têm; as oportunidades que surgiram e já não surgem; os lugares por onde passaram e onde já não passa nada.
          Para os ansiosos, o Natal é uma prova; para os deprimidos, uma provação: uma forma de serem novamente esfolados vivos pelos fantasmas do fracasso e do arrependimento. Um amigo meu, usualmente solar, hiberna sempre a 24 e só ressuscita a 26. Hiberna em hotéis (‘são mais impessoais’) ou, de vez em quando, cruzando os céus quando as famílias terráqueas se reúnem cá em baixo. ‘É mais fácil assim’, dizia-me ele há uns meses, recusando qualquer convite para um jantar lá em casa. E a sentença final: ‘Eu só quero que o Natal passe depressa, João’.


Presentes no livro de crônicas “Vamos ao que interessa” (Três Estrelas, 2015), de João Pereira Coutinho, páginas 106, 60, 118, 173, 159, 193, 135-136, 190-191, 205, 77-78, 48, 22, 145, 149-150 e 200, respectivamente.


Aforismos de João Pereira Coutinho em “Vamos ao que interessa”

“Não passamos de almas torturadas entre a experiência do passado e as expectativas do futuro”

“Existe alguma beleza nas ruínas. Não porque as ruínas são a expressão tangível do que se teve e perdeu. Mas porque elas são a expressão tangível do que sobreviveu”

“O futuro, como dizem os ateus, a Deus pertence. E eu só conheço o passado”

“Liberdade não é impor um único padrão de comportamento. Liberdade é, precisamente, não impor nenhum”

“Nada perturba tanto as vidas que vivemos como as vidas que não vivemos”

“No aperto de uma mão revela-se um caráter”

“Escrevo porque leio”

“Os prêmios só honram verdadeiramente quem os concede”

“Não espero que um artista seja um santo. Mas também não tolero que ele se faça passar por santo. E, sobretudo, que faça sermões aos outros exigindo essa santidade”

“É um princípio pessoal: só viveria em países e cidades onde ninguém se intromete na vida de ninguém”

“Não existem fatos incontestáveis. A realidade será sempre uma interpretação pessoal; uma interpretação onde projetamos os nossos desejos e as nossas fraquezas”

“Ler é uma questão de qualidade. Não interessa que o sujeito leia muito. Interessa que ele leia o que vale a pena”

“Nada nos autoriza a desfigurar uma obra de arte para que ela possa acomodar os preconceitos transitórios da nossa época”

Aforismos presentes no livro de crônicas “Vamos ao que interessa” (Três Estrelas, 2015), de João Pereira Coutinho, páginas 99, 189, 134, 44, 189, 133, 207, 154, 94, 47, 191, 73 e 33, respectivamente.

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