Pular para o conteúdo principal

Dez passagens do livro Crônicas do Tom: Textos para quem tem um parafuso a menos, de Tom Cardoso



          “— Oi, Tom, bom dia.
          — Bom dia.
          — Acabei de me formar em jornalismo.
          — Bacana.
          — Pode me dar algumas dicas rápidas por aqui, no Instagram?
          (...)
          — Tá bom. Tá anotando?
          — Tô! Que Deus o abençoe, Tom.
          — Primeira dica, anote aí.
          — Sim.
          — Deus não abençoa ninguém.
          — Por que?
          — Porque ele não existe.
          — Não existe? Como assim? Quem falou?
          — Não existe. E mesmo que ele existisse, você não poderia acreditar nele.
          — Não posso? Por que?
          — Jornalista não acredita em instituições.”


          “Tô no Rio, voltando para SP. Acabei de chegar no Santos Dumont. Vim de Uber. Chegando no aeroporto, o motorista, com a cara e tamanho do Daniel Silveira, mas normal, lúcido, virou para mim:
          — Iiii meu irmão, olha lá. Tem manifestação dos taxistas contra o Uber. Vou ter que deixar você bem antes.
          Eu estava atrasado. Pulei para o banco da frente.
          — Toca em frente. Confia em mim.
          Ele foi. Paramos o carro na porta do aeroporto. Lotado de taxista bufando. Descemos. Eu gritei, fazendo cara de choro.
          — Jorginho, me abraça! Vou morrer de saudade.
          O cara me abraçou.
          Eu grudei minha cabeça no peito dele. Dei mais um suspiro e disse:
          — Tiamo, gato.
          Ninguém desconfiou.
          Só o amor salva.”


          “Liguei para alguns jornalistas baianos. Eles conheciam o cara, que era, de fato, um pesquisador, e um profundo conhecedor da obra de Torquato. Fiquei mais aliviado e fui todo confiante para reunião de pauta.
          (...)
          — Consegui poemas inéditos do Torquato Neto.
          — Sensacional, Tom. Vamos soltar logo isso. Capa de amanhã, ok?
          (...)
          O caderno fechava ao meio-dia do dia seguinte. A vinte minutos do fechamento, já com matéria escrita, editada, paginada, a caminho da gráfica, eu liguei para o pesquisador.
          — Opa, a matéria sai amanhã.
          — Que legal! O Torquato vai gostar.
          — Como assim gostar? Ele morreu, pô.
          — Sim, morreu. Mas eu vou falar com ele.
          — Tá doido. Papo de maluco. Se ele morreu como você vai falar com ele?
          — Eu sou médium, Tom.
          — Ahã? Como você conseguiu os poemas inéditos?
          — Foram psicografados por mim.
          Desliguei e fui correndo falar com o meu chefe:
          — A matéria de capa tem que cair.
          — Como assim, Tom? Os poemas não são inéditos?
          — São, mas vieram do além.”


          “O filho adolescente de uma amiga está viciado em putaria na internet. Passa o dia votando nos vídeos favoritos do PornoTube. Ela diz que o teclado do Bernardo é um nojo só, eu imagino.
          Fiquei pensando como era muito mais sofrida a vida do punheteiro nos anos 80.
          (...)
          Um adolescente de classe média baixa como eu não tinha videocassete em casa em 1985.
          A única opção era uma série erótica chinfrim que passava toda sexta-feira, depois da meia noite na TV Record (pré-Edir Macedo), chamada ‘Sala Especial’.
          A regulagem da ‘Sala Especial’ era tão grande que, se você fosse ao banheiro, ou atendesse o telefone, ou pegasse o rolo de papel higiênico, corria o risco de perder a cena de nudez, que se resumia sempre apenas a rápidos closes de peitinhos, mostrados no máximo duas vezes por filme.
          Lembro do desespero do irmão gêmeo, tentando ‘aproveitar’ o surgimento do peito-relâmpago. Até hoje ele sofre de ejaculação precoce, tadinho.”


          “Quando o Bahamas foi interditado, semanas após o acidente do voo da TAM, uma revista, já extinta, pediu para eu fazer um perfil do Oscar Maroni, o folclórico e fanfarrão dono do puteiro. É o tipo de matéria que eu topo até de graça.
          Fui para lá. Nunca mais esqueço da cena: o Maroni, esparramado no sofá do Bahamas, com cara de choro, e um monte de puta em volta dele, de costas para mim, só de calcinha. Como é dura a vida de repórter.
          (...)
          Fiz a entrevista. Como não pude gravar nada, não saí de lá com nada muito relevante, só com a imagem — que ficou uma semana na minha cabeça — do Picolé participando de um bacanal.
          O Maroni me acompanhou até a porta. Na saída, me deu um cartão da boate, com uma assinatura dele no verso.
          — É um vale-programa, Tom.
          — Como assim?
          — Com ele você pode escolher qualquer mulher da casa.
          — Ah, obrigado, mas a boate fechou.
          — Mas o vale é vitalício. Quando ela reabrir, você usa.
          O vale está na minha gaveta até hoje. Tô vendendo.”


          “Hoje voltei a trabalhar na Agência do Itaú Personnalité do Jardim Bonfiglioli.
          Não, não virei o gerente Cardoso.
          Continuo jornalista e escritor.
          Mas quando começa a esquentar não há outro refúgio possível para alguém calorento e pobre como eu.
          (...)
          Aqui não há só ar condicionado.
          Há salas com mesas e tomadas, onde o cliente premium pode trabalhar sem ser incomodado, com direito a três ristretos por dia, servidos pela Mauricélia, copeira e minha amiga.
          Quinta-feira tem língua de gato da Kopenhagen.
          Na hora do almoço leio os três jornais assinados pela agência: Folha, Estadão e Globo. Já falei para a Mauricélia pedir para a gerência uma assinatura da Piauí.
          Não sou cliente e não pretendo ser.
          Nesses lugares, ninguém pede comprovante de nada — não é como essas salas VIPs de aeroporto.
          Por isso eu fui ficando, mordomia interrompida só na pandemia.”


“Todo cavalheiro de ocasião é, no fundo, um canalha.”


          “— Amiga, não aguento mais.
          — O trabalho?
          — Não, o casamento.
          — Isso não chega a ser uma novidade.
          — Então, mas agora o Jorge tá controlando até a siririca no chuveiro.
          — Aí é grave.
          — Se eu demoro dez minutos a mais no banho, ele já começa a bater na porta.
          — Você usou a desculpa do dia de fazer a hidratação no cabelo?
          — Sim, mas ele percebe. Homem tem faro para essas coisas. Toda vez que eu começo, ele bate na porta.
          — Mas ele diz alguma coisa?
          — Ele começa a falar sobre um determinado assunto só para me desconcentrar. Ontem foi sobre a Palestina. Hoje sobre a última reunião do Copom.
          — Que saco.
          — Semana passada, aliás, ele me pegou no flagra.
          — E você?
          — Eu usei aquela sua dica, amiga.
          — ‘Não morre mais?’”


“Contei 78 mulheres beijando golfinho, 43 em frente a Torre Eiffel, 32 em frente ao Coliseu, 25 naquela praia com as duas rochas em Fernando de Noronha e 1.278 com o castelo da Cinderela da Disney ao fundo. (...) Achei a mãe do Valter, meu dentista. (...) Mentiu a idade na cara dura. Numa das fotos aparece de maio cavado na Riviera. (...) Vou contar para o Valter.”


          “(...) nada se compara com uma pequena comunidade caiçara, a praia de Almada, no norte de Ubatuba, onde a tradição manda que se dê cinco beijos. Juro.
          Alicinha, minha namorada de adolescência era de lá, a caçula de 16 irmãos, sendo que 13 eram mulheres.
          Além da mãe, moravam com ela duas tias, uma avó e sete crianças, suas sobrinhas.
          De modo que toda vez que chegava na Almada, morrendo de saudade da Alicinha, tinha, primeiro, que passar por um interminável corredor polonês afetivo.
          Peguem a calculadora: 25 mulheres, 50 bochechas, 5 beijos e cada uma. 250 beijos.
          Levando-se em conta que cinco beijos levam cinco segundos, e que tem sempre um parente que gosta de conversar, mais o tempo que eu demorava para ir de uma bochecha à outra (elas não me recebiam em fila indiana), gastava-se 2 minutos por cabeça.
          2 minutos x 50 bochechas = quase duas horas para, enfim, beijar quem eu queria beijar.
          E uma das velhinhas da casa estava com Alzheimer. No terceiro beijo pensava que ainda estava dando o primeiro. Não acabava nunca.
          Terminei com a Alicinha e comecei a namorar a Tina, da Pompeia. Filha única.”


Presentes no livro “Crônicas do Tom: Textos para quem tem um parafuso a menos” (Minotauro, 2025), de Tom Cardoso, páginas 43, 19, 52-53, 57, 34, 74, 100, 17, 11 e 67-68, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Dez passagens de Clarice Lispector no livro Laços de família

Clarice Lispector (foto daqui ) “A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo do orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver no armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felici...

Dez passagens de Jorge Amado no romance Capitães da Areia

Jorge Amado “[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava ‘meu padrinho’ e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A...