“Dobrou-a e usou-a como a uma adolescente, conheceu-a e exigiu-lhe as servidões da mais triste puta, magnificou-a em constelação, teve-a entre os braços cheirando a sangue, fez com que bebesse o sêmen que corre pela boca como um desafio ao Logos, chupou-lhe a sombra do ventre e do sexo, erguendo-a depois até o seu rosto, para untá-la de si mesma, numa última operação de conhecimento que só o homem pode dar à mulher, exasperou-se com pele e pelo e baba e queixumes, esvaziou-a até o máximo da sua magnífica força, lançou-a contra um travesseiro e um lençol e a sentiu chorar de felicidade contra o seu rosto que um novo cigarro devolvia à noite do quarto e do hotel”
“A única possibilidade de encontro estava em que Horacio a matasse no amor, no qual ela conseguia encontrar-se como ele, no céu dos quartos de hotel, onde se enfrentavam iguais e despidos, onde se podia consolar a ressurreição de fênix, depois de ele a ter estrangulado deliciosamente, deixando-lhe cair um fio de baba da boca aberta, olhando-a, extático, como se começasse a reconhecê-la, a fazê-la sua de verdade, a trazê-la para seu lado”
“Se alguém não tem domínio sobre si, jamais poderia ter alcançado a singularidade. E, afinal, quem é que se dominava de verdade? Quem é que tinha a perfeita consciência de si, da solidão absoluta que significa nem sequer contar com a própria companhia, que significa ter de entrar num cinema ou num bordel, ou em casa de amigos ou numa profissão absorvente ou, ainda, no matrimônio para estar, pelo menos, só entre os demais? Assim, paradoxalmente, o cúmulo da solidão conduzia ao cúmulo do gregarismo, à grande solidão das companhias alheias, ao homem só na sala de espelhos e dos ecos. A verdadeira singularidade feita de delicados contatos, de maravilhosos ajustes com o mundo, não podia ser cumprida por um só lado: a mão estendida deveria receber outra mão, vinda de fora, vinda do outro”
“As únicas coisas que terminam de verdade são aquelas que recomeçam todas as manhãs”
“A invenção da alma pelo homem se insinua toda vez que o sentimento surge do corpo como um parasita, como um verme aderido ao eu. É suficiente uma pessoa sentir-se viver para que mesmo o mais próximo e querido do corpo, por exemplo, a mão direita, se torne imediatamente um objeto que participa repugnantemente da dupla condição de não ser eu e de estar aderido a mim”
Julio Cortázar e o jazz
“O jazz é como um pássaro que migra ou emigra, que imigra ou transmigra, saltador de barreiras, contrabandista, algo que corre, que se difunde por todos os lugares, com o dom da ubiquidade que o Senhor lhe deu, no mundo inteiro, é inevitável, é a chuva e o pão e o sal, algo absolutamente indiferente aos ritos nacionais, às tradições invioláveis, ao idioma e ao folclore: uma nuvem sem fronteiras, um espião do ar e da água, uma forma arquetípica, algo de antigamente, de baixo, que reconcilia mexicanos e noruegueses e russos e espanhóis, que os reincorpora ao obscuro fogo central já esquecido, que os devolve mal e precariamente a uma origem atraiçoada, indicando-lhes que talvez houvesse outros caminhos e que aquele que escolheram não era o único e não era o melhor, e que um homem é sempre mais do que um homem por encerrar em si aquilo que o jazz faz sentir e até antecipa, e menos do que um homem em virtude de ter feito dessa liberdade um jogo estético ou moral, um tabuleiro de xadrez”
“Nascera a única música universal do século, algo que aproximava mais os homens, mais e melhor do que o esperanto, a Unesco ou as companhias de aviação, uma música bastante primitiva para alcançar a universalidade e bastante boa para poder fazer a sua própria história com cisões, renúncias e heresias, com o seu charleston, o seu black bottom, o seu shimmy, o seu foxtrot, o seu stomp, o seu blues, para admitir as classificações e etiquetas, o estilo isso ou aquilo, o swing, o bebop, o cool, ir e vir do romantismo e do classicismo, hot e jazz cerebral, uma música-homem, uma música com história, diferentemente da estúpida música animal de baile; uma música que permitia ser reconhecida e admirada em Copenhague, em Mendoza ou na Cidade do Cabo, uma música que aproximava os adolescentes, com os seus discos debaixo dos braços, que lhes dava nomes de melodias como cifras para se reconhecerem, se familiarizarem e se sentirem menos sós, rodeados por chefes de escritório, famílias e amores, infinitamente amargos, uma música que permitia todas as imaginações e gostos”
“Quase não se dança, apenas se fica de pé, balançando-se, e tudo é turvo e sujo e canalha e cada homem gostaria de arrancar aqueles pequenos corpetes, enquanto as mãos acariciam um ombro e as moças entreabrem a boca e se vão entregando ao medo delicioso e à noite; então, eleva-se um trompete possuindo-as em nome de todos os homens, tomando-as para si com uma só frase quente que as deixa cair como uma planta cortada entre os braços dos companheiros; e segue-se uma corrida imóvel, um pulo no ar da noite, sobre a cidade, até que um piano minucioso as devolve a si mesmas, exaustas e reconciliadas, ainda virgens até o próximo sábado, tudo isso numa música que espanta os conquistadores da plateia, aqueles que acreditam que nada é verdade se não houver programas impressos e acomodadores, e assim vai o mundo”
Trechos extraídos do livro O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar.
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