Pular para o conteúdo principal

Contra um mundo melhor, de Luiz Felipe Pondé — Parte 04

Luiz Felipe Pondé
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"O que nos torna humanos são nossas desgraças. Por isso, uma sociedade que faz estilo 'utilitarista dos afetos', movida por uma geometria do útil, como a nossa, em que quase todo mundo carrega o rosto idiota de quem vive buscado a felicidade, se desumaniza à medida que se faz estrategista eterno do sucesso existencial. Sim, eu acredito na infelicidade como matéria de vida. Não que a procuremos, nem precisa, ela nos acha, mas creio na infelicidade como medula, espinha dorsal de nossa dignidade (...) O fracasso é que torna o homem confiável"


"Não somos animais autônomos na cadeia de produção de sentido (...) Não somos nós que produzimos conscientemente o que faz sentido em nossas vidas (...) Nossa cadeia de produção de sentido não é historicamente cumulativa (grandes cadeias de sentido podem ser sepultadas com o declínio de grandes civilizações), nem carrega em si um eixo essencialmente justificável. O acaso, o pecado, a injustiça, a miséria, a escuridão, a guerra, tudo pode produzir sentido. Ao elegermos apenas a razão feliz como máquina de sentido, ignoramos o possível mistério na experiência humana de atribuição de sentido (...) o racionalismo seria uma forma sofisticada de impostura"


"As virtudes máximas na tragédia são a coragem e a humildade: humildade de se saber um nada, coragem de se manter de pé sabendo-se sempre um derrotado. Essas virtudes antigas produzem uma sensibilidade peculiar e poderosa, pouco ativa entre nós, contemporâneos, escravos de modelos infantis de vida (...) Se não faz o percurso trágico (a transvaloração em si, a tomada de consciência da insuficiência do mundo e de si mesmo), você não chega à dança sem sentido da vida como gozo da existência. A esmagadora maioria dos homens e mulheres se despedaça contra as paredes desse abismo que é o vazio e a indiferença cósmica"


"O melhor das grandes tradições religiosas (e aqui tenho parceiros como o grande teólogo suíço reformado do século XX, Karl Barth) não é o fato de elas fazerem a vida mais fácil; ao contrário, é o fato de elas ampliarem e aprofundarem o drama humano para além das soluções facilmente científicas, políticas e sociais, típicas da ingenuidade mau caráter de muitos modernos"


"Cansei da filosofia, por isso comecei a escrever para não filósofos, porque a universidade, antes um lugar de gente inteligente, se transformou num projeto contra o pensamento. Todos são preocupados em construir um mundo melhor e suas carreiras profissionais (...) Eu não acredito num mundo melhor. E não faço filosofia para melhorar o mundo"


"Uma consciência atormentada pela dor humana alimenta implicitamente o desejo dessa fuga: a percepção de que o homem é um animal aporético (isto é, sem saída) serviria para legitimar todo e qualquer processo de autojustificação, desde que tal processo de alguma forma alivie essa consciência infeliz. Trata-se de um tipo de instrumentalismo (muitas vezes inconsciente, creio eu) psicossocial que busca criar modos de sobrevida 'feliz', ainda que sem fundamento real (...) O problema é que a impostura moderna da felicidade não aceita ser caracterizada como uma forma de mercenarismo retórico existencial"


"Sim, vivemos sem o pai. Em cada canto do mundo, órfãos sentem o alívio de não mais carregarem tradição alguma. De não terem casa para voltar. Transcendem em direção à liberdade e, com ela, à insegurança e à solidão. Mas esse é o preço pago por tornar-se um ser humano adulto. Morto o pai, morta a tradição, morto o narrador, a casa passa a ser habitada por fantasmas, as palavras tornam-se mudas, os afetos, sem nome e sem destino. A alma, envelhecida, adorme junto à janela, esperando também sua hora de morrer"



Trechos extraídos do livro de ensaios "Contra um mundo melhor" (Leya, 2013), de Luiz Felipe Pondé.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez poemas de Carlos Drummond de Andrade no livro A rosa do povo

Consolo na praia Carlos Drummond de Andrade Vamos, não chores... A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão. Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o humour ? A injustiça não se resolve. À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros. Tudo somado, devias precipitar-te — de vez — nas águas. Estás nu na areia, no vento... Dorme, meu filho. -------- Desfile Carlos Drummond de Andrade O rosto no travesseiro, escuto o tempo fluindo no mais completo silêncio. Como remédio entornado em camisa de doente; como dedo na penugem de braço de namorada; como vento no cabelo, fluindo: fiquei mais moço. Já não tenho cicatriz. Vejo-me noutra cidade. Sem mar nem derivativo, o corpo era bem pequeno para tanta