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Oito passagens de Aidil Araújo Lima no livro de contos Mulheres sagradas

Aidil Araújo Lima - Foto: Letícia Ribeiro e Camila Andrade

“(...) Ela não lembra que dia aconteceu a chegada dos turistas, curiosos com o cemitério de brancos e negros, um em frente ao outro. Só recorda que eles a escolheram para tirar foto junto dos túmulos, diziam-lhe ser uma negra linda. Ela se orgulhou e ficou paradinha ao lado de várias catacumbas, a imagem se impregnando da alma dos antepassados. Depois desse dia, nunca mais foi a mesma, sua alegria ficou presa nos retratos. Largou mão do estudo, ia para a casa da madrinha no Largo d’Ajuda aprender a costurar. Pensava que podia descosturar sua vida do retrato e coser outra com agulha e linha. Quando o sol esfriava, voltava para casa, descia a ladeira e corria para o rio Paraguaçu, gostava de ver a imagem refletida na água; nesse instante, a alegria presa no retrato se soltava e ela ria. O tempo foi curvando seu corpo sobre as linhas, os seios encolhendo, dando espaço ao corpo. As moças bonitas que chegavam com panos de seda, só lembravam o retrato que os turistas lhes prometeram mandar. Enquanto isso, um fio de silêncio costurava sua vida.”

“Elas despem as afrontas e cantam, suspendendo os rastros de dor; tornam-se sombra, entregam-se ao sagrado. Dizem que quem canta seus males espanta. Elas espantam a tristeza com seu canto, trajadas de cores simbólicas, enfeitadas com contas de sentido sem tamanho. São mulheres de santo negras, mulheres de fé. Acordam no pensamento a todo instante, a proteção do seu orixá, é só distrair a mão no pescoço, que as contas iluminam as trevas no caminho. O clarão vem como um raio antes do trovão quando elas passam em cortejo, vestidas de branco, espantando fantasmas da existência. Vozes ecoam, desassombrando o tempo, que acompanha o compasso num passo de eterno abrigo, assustando a tristeza, soltando a felicidade em qualquer ocasião.”

“(...) Assistia a filha sentada, sem nunca ser chamada para uma dança que fosse. Rosa sofria ao ver os olhos da menina esperando a dança, querendo também ser gente, igual às colegas de cor branca. Rosa um dia se encheu de coragem, confessou à filha uma infâmia da sociedade – Você é uma linda menina, minha filha, não existe problema com sua aparência, sim com a nossa sociedade, algumas pessoas pensam que são melhores que as outras, a cor da pele ainda continua sendo motivo de exclusão, tratamento desigual. (...) Antigamente, minha filha, os homens negros ainda queriam a nós, mulheres negras, hoje em dia muita coisa mudou, elas se tornaram piores, (...) começaram a querer ter mulher branca, para se sentirem gente que nem eles, os filhos saem mais claros e nunca são afrontados. Sabe o que acho disso tudo, eles são uns covardes, nos abandonaram nessa luta. Erga a cabeça, estude, assim enxergam tua beleza, te respeitam.”

“(...) Lembra-se de quando foi jovem, era muito bonita, namorou muito, teve muitos filhos, frutos das promessas de amor, eles lhe diziam que era bobagem esta coisa de cor, de ser de família pobre. Acreditava. E agora, restava a amargura. Não tinha esta pele tão morta, o olhar vazio, a bela Filomena ficou lá esquecida, em um canto onde os homens praticam o engano. Tola. Barriga crescia, e eles voltavam à sua posição de homens de bem. Casavam com alguma mulher branca – feia que fosse – não tinham as ancas salientes de Filomena, nem o porte altivo que adquiriu carregando latas d'água na cabeça.”

“(...) As meninas perderam o interesse pela riqueza da comunidade, largaram os costumes, respeito pela natureza, cultivo da terra para o alimento, rumando para o outro lado. (...) Nunca foram vistas como gente, eram apenas serviçais. Com o tempo, o barro se assombrou com o pisar estranho, a firmeza deu lugar ao arrastar da vontade, era uma servidão desconhecida em toda sua história de caminho para a liberdade. As coisas mudaram de repente, as pessoas se deixaram levar pelo esquecimento. Foram perdendo a força da terra, recorrendo à loucura, como Chibata, mulher descendente de rainha africana, na comunidade era chamada de Nanã, respeitada como mãe por todos. Um dia de chuva, atravessou a lama, cruzou a fronteira, virou mendiga, percorria o Mercado Municipal como se estivesse num palácio, andar imponente, manto feito de trapos. E Maria, mulher negra, foi violentada por vários homens, ninguém se indignou, era gente do lado não visto, renegado. Quem haveria de se importar... Nasceram filhos. Conta-se que foi vista, se equilibrando na linha do trem, num deserto cercado de mato, talvez ela encontre uma cabana abandonada, ou quem sabe, o caminho de casa.”

“(...) Descia a ladeira e ia para o riacho Caquende lavar roupa de ganho. O riacho lhe sustentava – com suas pedras lisas, colocava as roupas para quarar, saíam branquinhas. Folhas de alfazema faziam cheirar a roupa – cheirar suas mãos ingênuas. Ela... Coitada, era a mulher vadia que havia se entregado a vários homens. – Eles me enganaram, todos me prometeram mundos e fundos. Eu é que deixei de ser gente. Eles não. As pessoas só me veem quando me chamam para lavar roupa. Acho que nem me enxergam.”

“(...) Nesse dia de levantar mais cedo, esforçou o corpo para caminhar pela estrada, no trajeto ao acaso encontrou uma mulher, semeava a terra e cantava, espalhava o ar de quem está de bem com vida, se desimportando do líquido brotando na testa, correndo no rosto prestes a ser engolido. Imaginou que talvez aquele suor alimentasse a alegria de sua alma, quis perguntar à mulher como se faz pra ser feliz desse jeito. A coragem não achou lugar em sua boca, enxergou no pensamento a mulher soltando uma gargalhada, largando no chão a enxada, rindo até cair na terra, seu rosto virar lama, e a chuva esperando a ocasião, caísse, lavasse seu rosto, então ela dançaria mais feliz ainda, pensando na colheita. A chuva trouxe lembranças, sua avó gritava: sai da chuva, menina...”

“(...) corre em direção à lagoa de Oxum, mirando serenar a mente, ter uma ligação com o mundo sagrado, sente o brilho amarelo na sua pele negra, são as forças da natureza. Encontrou forças que sequer foram anunciadas. Segue na lida, sem vontade de sentir saudade. (...) Certo dia, sentada na esteira estendida sob a mangueira, corpo encostado no tronco, esperando o sol deitar para fazer pedido pelos filhos, lembrou Oxum que lhe havia sossegado a aflição, pegou a corda, desceu o balde na cisterna, subiu cheio, tomou banho, foi ao terreiro. Os atabaques estavam cantando seu lamento, sentiu a alma se escondendo, Oxum tomou seu corpo e ela ficou linda, brilhando feito ouro, dançando de alegria.”



Presentes no livro de contos Mulheres sagradas (Portuário Atelier Editorial, 2017), de Aidil Araújo Lima, páginas 48, 87, 58, 66, 33, 66, 45-46 e 109, respectivamente.

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