“Este meu nome de batismo aqui — ‘Aeronauta’ — vem da poesia. Da poesia de Cecília Meireles. De um personagem que se parece comigo. E que um dia descobre que não é feliz nem triste, humilde nem orgulhoso, pois não é terrestre (...) era o crepúsculo de um sábado chuvoso, estávamos reunidos na mesa de nossa casa na rua da conceição: eu, mãe, pai, minha irmã, um candeeiro e o destino. E a chuva lá fora vinha com um vento que assanhava o fogo do candeeiro. Ali corroía uma atmosfera pesada (...) o vento vinha dizer que minha tia havia morrido. O nome dela era Corina. E ela morreu tendo o seu último filho. Que coisa! No dia em que alguém nasce do outro, esse outro morre. Como se a vida fosse a morte e a morte a vida. (...) Lembro que tive, isso sim, uma sensação de estranhamento, deslocamento, escuridão. Fomos todos para o povoado onde se encontrava o corpo de minha tia. Chovia forte. Na sala apertada, gente que não acabava mais. Mas minha lembrança está focada mesmo numa cama de pernas estranhas, uma pessoa deitada envolvida num lençol branco, enorme. O aroma, que o vento fazia questão agora de enfatizar, era de um incenso de igreja. E o som era de uma cantoria terrivelmente melancólica e chorosa, proveniente da reza sofrida. Me levaram correndo para o quarto ao lado. Nessa hora só lembro de minha mãe me acompanhando, mais ninguém. E de lá do quarto dava para eu ouvir, bem nítido, o som abafado da dor, e sentir o cheiro forte do incenso, e ver, como numa imagem de sonho, uma efígie sobre a porta onde eu me encontrava. Essa efígie me acompanha até hoje. Não sei o que ela significava, se ela existiu de fato. O que sei é que aquilo tudo doía muito em mim... (...) No outro dia, um grande silêncio, e a cama de pernas estranhas jogada num quintal vazio, devastado, triste... (...) como eu gostaria de ter sido, desde cedo, uma não-aeronauta, como minha irmã! Ela achou aquilo tudo uma grande novidade. E voltou contando para os amiguinhos que nossa tia morta era tão gorda que teve de ser enterrada em dois caixões.”
“Faço apenas apologia à possibilidade de poder transformar minha infelicidade em alguma coisa.”
“(...) Na casa em que ela morava com os pais e a irmã, havia uma varanda que dava para o quintal. No muro da varanda a mãe delas plantou uns crótons enormes, cada folha era do tamanho — quase — das duas meninas. Folhas verdes com riscos amarelos, um negócio sinistro, ameaçando o mundo. A mãe logo alertou, quando os crótons cresceram: ‘Cuidado, nem cheguem perto, esses crótons são veneno vivo!’ A expressão ‘veneno vivo’ funcionou, porque as duas nem se recostavam na varanda. E quando isso acontecia, tratavam logo de um bom banho para não restar no corpo nenhum resquício do tal veneno. (...) a menina tinha doze anos e namorava o dito maconheiro da cidade (...) A mãe mostrou as garras: batia na menina, chamava o dito cujo de ‘cão do inferno’ e de ‘esqueleto humano’ (porque o homem era muito magro), fazia escândalos no meio da rua ao encontrar os dois juntos, e dentro de casa era surra, muita surra na coitada. Aquilo foi desgostando a menina. Mas desgostando mesmo. Tanto que ela planejou tudo. A varanda. Os crótons. Era sábado. A mãe iria para o rio lavar pratos. Depois iria para a rua visitar uma tal comadre. Era o dia certo. E, para facilitar, ainda tinha uma pedra no quintal ao lado dos crótons. Uma pedra acolhedora, boa de sentar para esperar a morte. O que ela fez? Comeu a maior folha que tinha, a mais verde, a mais viva, comeu toda, só deixando o talo. Depois sentou-se na pedra. E lá ficou esperando, com a barriga cheia, a tal da Indesejada, ou melhor, nesse caso, da Desejada. Esperou sentada a tarde inteira, inteira... (...) Ah, minha irmã, como foi boa essa mentira de mãe! Por causa dessa mentira — a despeito de você, até hoje, ainda sentir a língua formigar em razão do cróton comido — podemos comemorar, neste dia de domingo, mais um aniversário seu!”
“Devo ter herdado mesmo de meu pai essa nostalgia, essa lágrima pendente, sempre pronta a cair, esse desespero de amar... Esses dias enormes que nunca acabam (...) essa melancolia absurda, essa emotividade sem freios, esse meio olhar para a vida. Todas as cartas de amor não respondidas, os sorrisos não trocados, a esperança lírica e íntima, sempre, açoitando... E a certeza de um destino escrito, ano a ano, num papel branco, como que se esboçando para o dia que nunca chega, que nunca chegará...”
“(...) Sou cruel comigo: na adolescência eu mordia meu braço quando estava com raiva. Mordia até ver o formato de meus dentes na pele. Era como se eu mordesse o mundo, com todo o veneno possível que havia em mim. Não sou flor que se cheire, como dizia minha mãe. Não venha para cá com dó de mim, que lhe cravo os dentes. Já pensei muitas vezes em matar. É, com revólver. E bem no meio das costas do fulano. Aquelas costas brancas, nojentas, que abraçavam uma outra pessoa. Aquelas costas que não vão me dar agora a infeliz ideia de um trocadilho clichê. Aquelas costas que são a parede branca, insustentável. Não, essas costas não merecem metáfora nenhuma, nem as piores. São costas largas, frias, cheias de odores. E que nunca me quiseram. (...) É, não sou mesmo flor que se cheire. A cara e o tamanho enganam. As palavras também. Já me atirei diversas vezes num rio anônimo que passava no fundo de minha alma. E cada vez que fazia isso mais minha alma renascia. Ah, ‘Eis a noite!’ como escreveu João Alphonsus! ‘Eis a noite!’ — conto que me deixou boba de emoção como uma solteirona — uma mulher ‘entrada em anos’, bem machadiana. Ah, ‘Eis a noite!’, repito bem alto para alguém na rua me ouvir, e me ver da janela acenando.”
Quando meu avô morreu (04/12/2007),
post altamente cinematográfico,
leia aqui
“Minha mãe é um riso com os olhos apertados. As unhas cheirando a alho e a cebola. O cabelo anelado, cortado curtinho, sempre pintado de preto. (...) sempre foi criança. Até quando batia em mim para que eu comesse. Dizia assim: ‘Ô sujeitinha, você não quer comer não?’, e me dava um beliscão no braço. (...) eu a odiava. Porém, logo depois me esquecia e estava rindo para ela. Minha irmã me chamava de besta por causa disso, pois eu apanhava e na mesma hora me esquecia (...) minha infância é sempre o mesmo retrato: eu e minha mãe. Onde estava ela, lá estava eu. Na adolescência o retrato mudou: ela era minha perseguição. Agora, na idade adulta, ela é a minha memória: gosto de perguntar coisas a ela de ‘quando eu era pequena’. Ela diz que tem saudades desse tempo, e os olhos se enchem de água. (...) nessas águas que saem dos olhos dela vejo eu correndo pela larga praça de minha cidade, fugindo de uma maldita injeção que me esperava na farmácia. E ela gritando para todos os moradores ouvirem: ‘pega, pega essa menina aí, pelo amor de Deus!’ E de todos os cantos da praça aparecendo pessoas para pegarem essa menina que era eu, na maldita armadilha de uma injeção que eu não queria, que eu não queria. É isso: minha mãe também representava o que eu não queria... Ora, para que tomar injeção e sentir dor? Não, eu não queria sentir dor...”
“(...) Sorriso terno, bigodinho a la anos sessenta, calçados vulcabrás e calça estilo social. Usava óculos e me chamava de ‘papai’. A minha irmã ele chamava de ‘pai’. Via, nessa diferença de apelidos mimosos, mais carinho por mim: óbvio, ‘papai’ é mais carinhoso que ‘pai’. Depois cresci e comecei a desconfiar: achava que ‘pai’ demonstrava algo mais sólido, mais seguro, mais firme. E ‘papai’, não-confiança. Coisas de semântica amorosa, ciúmes e intrigas de amor. Triângulo que cedo se formou entre mim, ele e minha irmã. Minha irmã sempre ganhou na esperteza: fazia cálculos, estratégias, e conseguia dele tudo o que queria. Eu não, nunca soube nada de técnica, medidas, era impulsiva, levava o coração na frente sem pensar antes, e só resultava em burradas.... Resultado: em todas as fotos antigas minha irmã está ao seu lado. Em todas as minhas lembranças minha irmã está ao seu lado, sempre sorridente, a chata, grudando nos dois braços dele. O que me restava mesmo eram o carinho e os beliscões de mãe. (...) Ela me roubou ele na infância, em algum momento completamente esquecido por mim. As fotos nada dizem, só mostram: eu com mãe, ela com pai. Sempre. Nas festas, nos batizados, nas fotografias oficiais que ficavam penduradas na parede da sala...”
“Sempre fui uma pessoa esquiva: gente sempre me deu medo. Mas no fundo, eu sei, adoro gente. Descobri isso dando aulas. Amo apaixonadamente meus alunos. Gosto de olhar para cada rosto e adivinhar seus mistérios. A fidelidade às carteiras onde se sentam, por exemplo, é um mistério saboroso. Por que será que eles se sentam constantemente nos mesmos lugares? (...) São todos adultos, e se comportam como crianças: isso é o que mais me encanta, e ao mesmo tempo o que me deixa, às vezes, nervosa. Aluno, por mais que goste da aula que assiste, fica sempre doido para ir embora. Sei disso e tento, a cada dia, trazer algo novo, como quem quer roubar mesmo a atenção de uma criança (...) no primeiro dia de aula, na hora da sondagem, eles têm orgulho de dizer que detestam poesia. Nesse instante volto a sentir a dimensão do desafio... É preciso, a partir daqui, em todos os momentos da aula, olhar para cada rosto, cada olhar, cada gesto, para tentar descobrir o caminho. É ainda preciso não ter medo de amar cada rosto, cada alma e, também, cada desprezo que eles possam lhe dar durante esse percurso. E, mais, é intensamente necessário amar estar ali com eles. E chegar perto. E falar dentro da alma de cada um, mesmo daquele que faz desdém, ri do que você diz. Ah, é tarefa maravilhosa essa. Poesia e alma andam juntas, por isso o resultado sempre é bom, muito bom. Num certo dia você percebe que o interesse deles já começa a mudar, eles já veem diferente o poema, sem bocejos, pois enxergam suas vidas ali. Depois começam a brincar com as palavras, e no final dizem: ‘puxa, professora, já estou começando a gostar de poesia!’ Ou: ‘Eu não achava, professora, que poesia era assim...’”
“O quintal de lá de casa é uma lembrança forte. Era enorme, tinha um pé de carambola baixinho, pendurado de carambolas, um portão e uma escada de cimento que dava para o rio. A gente acordava e nosso primeiro contato com o mundo era o quintal: descíamos os degraus correndo, com a escova e o creme dental na mão, e íamos escovar os dentes no rio (...) Voltando da escola, à tarde, era sob o pé de carambola que fazíamos nossas brincadeiras. As folhas eram dinheiro vivo para mim, para que eu pudesse fazer compras para minhas bonecas. Minha irmã não, gostava do pé de carambola para subir até o mais alto dos galhos e ficar de lá de cima proclamando sua audácia. Eu não subia, tinha medo de cair, mas catava todas as folhas possíveis para não deixar que minha casa de brinquedo passasse necessidades. (...) À noite, mãe abria as janelas que dava para o quintal. E era o vento que vinha do balançar do pé de carambola que trazia fresca lá para a casa. O calor era danado, e o vento vindo do quintal era o nosso mais delicioso ventilador. (...) Num final de tarde da década de oitenta, chegando do ginásio, encontramos um futuro sombrio: o quintal tinha desaparecido e plantaram uma casa nele. Não teríamos mais acesso ao rio, desapareceram portão e escada. Desapareceu o pé de carambola.”
“(...) Nunca tive sono de verdade. Perambulava por outro mundo enquanto todos da casa e da cidade dormiam. Gostava de escrever e de ler à noite. Era o que dava sentido à minha tão insignificante vida. Sempre senti isso: a inutilidade, o ser inútil. Só as palavras coloriam a existência — essa foi a descoberta que fiz, inconscientemente, aos seis anos, quando aprendi a ler. Depois fui tomando consciência de que só ler era preciso. E escrever, para não morrer. (...) Será que é esse o meu contato com Deus? Deus é a literatura? Pois só nela vejo uma possível salvação. Só através dela saio da inutilidade, e consigo ir além de mim, além de toda a mediocridade, além de toda essa vida sem graça.”
A pretensa suicida (04/11/2007),
uma bela homenagem à irmã,
leia aqui
“Ontem eu fiz dez anos de alma, Clarice. Dez anos, tão pouco, para quem tem trinta e nove... O que eu fiz nos vinte e nove anos anteriores, sem alma? Fiz muitas coisas; por exemplo, li você pela primeira vez aos quinze. Mas, mesmo assim, minha alma ainda não tinha nascido. Lendo você, minha alma, imersa, palpitava, eu não entendia direito o que seu texto dizia, mas eu sentia todas aquelas coisas enigmáticas, todas aqueles sortilégios que me tiravam do mundo, me levavam para o ar, e que estavam nas entrelinhas do famoso não-dito que você tanto perseguiu (...) Só aos vinte e nove minha alma nasceu. Eu já era uma pré-balzaquiana, e com a alma por nascer... Enfim, ela nasceu. No dia 10 de julho de 1997, exatamente às 18 horas. Nesse dia eu toquei o invisível.”
“Pego à toa na estante um livro de Roland Barthes, e vejo algo que ele anotou, entre parênteses, ao começar a falar sobre a poética experiência da fotografia: ‘(a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões)’. Está sublinhado a lápis por mim. (...) Essa frase, nesse momento, me captura totalmente. E volto a escrevê-la, como se murmurasse, falasse baixinho para eu não conseguir ouvir: ‘(a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões)’. E me lembro que você vai viajar, e que eu vou ficar alguns dias sem remédio. Não foi isso que o psicólogo prescreveu?: ‘abstinência total de amor’. E você me deixará sozinha em casa bem na hora em que se iniciará o tratamento, a análise propriamente dita. Golpes de pequenas solidões. ‘Abstinência de amor’, o psicólogo vibrou com a armação do destino: ‘... na hora certa, você precisa disso, falta de amor total para poder se curar’. Meu Deus. Abstinência de amor. (...) Como sobreviver sem esse remédio que você tanto me dá, e que me fez adoecer na infância? Que me deixou a sequela do chororô? Que me fez chorar até porque minha irmã rasgou a bandeira nacional no dia sete de setembro, em plena escola? Na minha cabeça ela ia ser presa por causa disso... E ela rasgava com gosto, a cada chorada minha, num sadismo engraçado. Ah, minha irmã de novo, que me ensinou o amor pelo avesso... Minha irmã que conhece o mundo desde menina, e que se habitou a viver nele como moradora incondicional.”
“(...) Quando pai percebeu que gostávamos de ler e começou a comprar para nós os primeiros livros, minha irmã não cuidava deles, profanava-os. Eu comecei a não querer que ela lesse os meus, escondia-os. Ela acordava bem cedo, e ia ler, de pirraça, os meus livros, escondido. Quando eu acordava via os dedos gordurosos dela na página... O mundo desabava. (...) Eu ainda era uma criança, mas cuidava de meus livros como se cuidasse de uma pessoa. Forrava com um plástico, e lia com cuidado, com o zelo de um amor que até hoje não conheci em suas outras formas. Escrevia o meu nome na folha de rosto, e a data. Até hoje tenho esse hábito, adquirido na infância. Ato de proprietária, mãe, dona. Dona de um mundo — mais esquisito do que este, confesso, e onde a felicidade é possível da maneira mais negativa.”
“O que escrever num final de tarde de quarta-feira? Tudo, menos sobre a falta de assunto, que já tem tradição na crônica brasileira. E o pior é que há muito assunto nas mãos. Há assunto demais, eis o problema grave. Como retirar tudo de dentro de mim para gravar no mundo? É falta de modéstia isto? Creio que não, pois o que tenho dentro de mim não é lá grande coisa, mas precisa sair, eu preciso limpar o terreno. É algo parecido com varrer aquele grande terreiro onde eu brincava com minha irmã, aos dois anos, na frente de lá de casa. Varrer bem varridinho para depois brincar, pular macaco (amarelinha) até dar dor de facão. Quando criança adorava girar, girar, girar, até ficar tonta e cair. A sensação de vertigem sempre me acompanhou como sedução, vontade de ir ao outro mundo e saber como é. Por isso amei tanto. Por isso de mim tenho essas notícias — palavras que se arrastam no meu ouvido e voam nas teclas do computador. (...) Escrever é mesmo buscar a vertigem, como eu fazia na infância: girar, girar, girar, ficar tonta e cair.”
“Apenas aos dezoito anos tive dinheiro suficiente para comprar minha primeira máquina. Uma máquina verde, portátil. Eu já havia feito curso de datilografia, datilografava com todos os dedos, rapidamente. Fiquei imitando Clarice Lispector, que dizia escrever com a máquina no colo enquanto olhava os filhos. Eu não tinha filhos, mas escrevia em qualquer lugar, usando o mesmo artifício clariceano — na sala, no quarto, na cozinha, no quintal, etc. Naquela época andava apaixonada demais por Carlos Drummond de Andrade e não pensei duas vezes: escrevi na própria máquina o nome ‘Drummondina’ e colei na parte da frente (...) Com essa máquina escrevi muita besteira — achando que estava fazendo coisa grande, começando minha vida de escritora. Eu me sentia o máximo, datilografando literatice, tentando preencher minha vida vazia de péssima literatura feita por mim. Com bons sentimentos, o que é o pior. Ah, aqueles sentimentos eram bons demais para se fazer boa literatura. Para onde foram esses textos só o grande rio de minha terra poderá dizer, e pelas mãos de mãe, que fez essa caridade.”
O lirismo de meu pai (19/11/2007),
as emocionantes memórias da poeta,
leia aqui
“É tarde, quase noite de Natal. E meu sobrinho, de dez anos, telefona para mim dizendo que sabe que Papai Noel não existe mais. E que não saiu perdendo não, pois os presentes continuam garantidos. (...) Ao desligar o telefone, tento buscar a menina de dez anos que fui, perdida do outro lado de uma linha que não existe mais. O que ela ainda sente? O que ela ainda gosta de ouvir? O que ela gostaria de ganhar neste Natal? (...) Ela não responde. Anda longe, e daqui só consigo ver uma árvore pequena que mãe armava todos os anos em cima da mesa, forrada com um pano bordado de sinos coloridos... Agora, nem um rastro de Papai Noel. Nem de um som natalino. Mas a menina está lá dentro, eu sei, insistente e pálida, aguardando.”
“A sensação é que o tempo parou, tudo parou para esperar 2008. E essa angústia que me consome? Esse mal-estar de final de ano? Onde ancorar tudo isso? Nas sobras de 2007? Na verdade, o que são 2007, 2008...? A vida é cíclica, só aumentamos de idade. Os dias da semana se repetem, os meses se repetem, as estações se repetem, o seu sorriso e o seu choro (vixe, cuidado com a autoajuda, Aeronauta). Tudo é uma repetição só. (...) hoje é 27 de dezembro (...) já vi muitos 27 de dezembro. Sempre volta o 27 de dezembro. Sempre voltam os shows para festejarem o ano que chega: na passagem de 1917 para 1918 foi assim mesmo! (...) a expectativa, as palavras de ‘feliz ano novo’, os cumprimentos, são tudo coisas que se repetem. Chega uma hora em que a gente enjoa. É muito provável que guardo na parte mais superficial de minha alma todos os milênios de existências consumidos em ter a ilusão de ver mudar as coisas numa queimada de fogos, ouvindo trilhões de vezes ‘feliz ano novo’.”
“Festas de final de ano sempre me deixam desconfortável. Nervosa. Irritada. Esse ‘ter de’ passar o Natal ali, ‘ter de’ passar o Réveillon acolá, ‘ter’, ‘ter’... Muitas vezes renunciei a gente e resolvi passar as duas datas sozinha, muito bem sozinha, na minha casa. Que coisa boa! Nada de festas, nada de cumprimentos, nada de alegria, apenas paz. Uma paz enorme, ao constatar que aquelas datas estavam passando dentro de mim em silêncio, e não em algaravia com um monte de gente. Ah, meu Deus, será que preciso mesmo aprender a não ser só? Quero ser só, que diacho. (...) Estou mesmo nervosa hoje. E não só hoje, desde o início dessas festas que não acabam nunca — uma grudada na outra. E este chamado recesso é horroroso. Porque não há recesso em paz. Há recesso com um monte de obrigações. Fazer isso, fazer aquilo. Enquanto que o que desejo é dormir. Dormir um sono longo, longo, longo... E que não me acordem, façam o favor!”
“Mãe veio passar esse 10 de novembro comigo, como todos os anos ela faz. E eu pergunto, mais uma vez para ela, sobre o tal do nascimento. E ela diz: ‘seu pai estava no jogo, e quando ele chegou, de madrugada, por pouco você já teria nascido’. Ela nunca esquece de frisar que pai madrugava no jogo enquanto ela já sentia as primeiras dores do parto. E foi bem na hora que ele chegou do jogo que eu cheguei também, de outro lugar. Grande achado metafórico, já fiz até poema com esse acontecimento. (...) Enfim, cheguei. Chorando muito, claro. Muito, muito, muito. Acho que não queria vir não. Como disse um amigo meu, eu vim para a vida contrariada, pois estava muito bem lá numa biblioteca do outro mundo, e me mandaram na marra. Como não passar a vida toda chorando por causa disso? Lá a biblioteca era sortida, tinha livros para eu ler por toda a eternidade, e eu só iria fazer isso, só isso... Para que vir para o mundo para fazer outras coisas?”
“Não consigo me lembrar qual foi a primeira pessoa que não me amou, o primeiro gesto de rejeição, o primeiro desdém (...) Quem seria essa pessoa? Em quais circunstâncias? Não há resposta, não há. O que ficou foi um abismo, um buraco, onde há muita raiva e muito amor dentro: os dois na mesma dimensão, com a mesma fúria: redemoinho que me leva para lá e para cá, num bruto estado de solidão. E que dá vontade de bater na cara, de esmagar alguém até ficar roxo o lugar da batida. Esse ‘alguém’ tem rostos emprestados, sei que não são esses os rostos que quero bater. Mas como achar a primeira pessoa que não me amou para dar uns bons tapas na cara? Sempre apanhei, nunca bati. Deve ser muito bom dar, além de uns sonoros tapas, um murro na barriga, um beliscão no braço... Nunca fiz isso. Apenas imaginei. E me calei. Lembro que teve uma época em que eu tinha um facão imaginário: através desse facão muitas cabeças foram cortadas. Era só eu encontrar uma pessoa com uma prosa ruim, a cabeça ia ao chão. Isso me aliviava. Mas agora o facão sumiu. O que fazer? Chega de amar, chega, chega! Procuro a primeira pessoa que não me amou, e aí acertaremos as contas.”
Um reino jamais perdido (16/09/2007),
uma homenagem à profissão de professora,
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“(...) Não estou mais nessa de achar que psicólogo precisa ter afeto por seu paciente. Chego lá, choro choro choro, ele me dá lencinhos de papel e busca comigo encontrar o labirinto, sem pegar na minha mão. É melhor assim, o labirinto é meu, tenho que ir sozinha, ele só precisa me ajudar profissionalmente. Pronto, eis uma palavra dura: ‘profissionalmente’ — palavra longa, fria, parece escritório, secretária fardada atendendo ao telefone e um sonzinho de fax ao fundo. Eis, pois, o mundo.”
“Esse homem é incorpóreo, já atravessei seu corpo como se atravessasse o corpo dos ventos. Ele foi algo que inventei desde menina quando, insone, insistia em criar rosto de gente nas formas esquisitas do telhado de lá de casa. Ele insistiu em me acompanhar, em todos esses anos. Desde que saí de casa, invento seu rosto ao relento, sob as nuvens. O que é ainda lúdico, na maioria das vezes se transforma em jogo perverso, pois que as formas das nuvens não têm a estabilidade das formas do telhado...”
“Eu tinha sete anos e vestidos curtos. Sempre bem curtos. Viam a calçola. Cor de rosa. Enorme. Eu adorava mostrar essa calçola cor de rosa para a família de dona Clotildes, na hora do jantar da casa dela, principalmente para Eugênio, um meninão de seus quatorze anos, tímido como não sei nem o quê. Eu sabia que ele era tímido e queria que ele ficasse vermelho que nem um pimentão. E toda noite ia para tal casa promover o espetáculo. Na sala do jantar, a família toda reunida, uma mesa redonda, Eugênio perto da parede, eu dizia assim: ‘olhe, Eugênio, minha calcinha nova!’ O povo todo gargalhava e ele, coitado, querendo desaparecer...”
“A casa está enorme, fechada, eu sozinha dentro dela. (...) fecho o livro, enquanto vou abrir a janela do quarto e apagar a lâmpada. Faço isso, mas a luz que vem de lá de fora não consegue clarear sozinha, sem a ajuda da lâmpada, o quarto e eu dentro dele. Deixo as duas luzes, portanto, acesas. São cinco horas de uma tarde estúpida de domingo. Os domingos não deveriam existir, todos já sabem disso. Os domingos só servem para a gente morrer mais um pouco. E ficar com raiva ao saber que muitos estão adorando esse dia, ao som de um fundo aberto de carro, perto da praia...”
“Desde cedo descobri que o meu grande amor, para a vida toda, seria mesmo a literatura. Nas férias, deitada no sofá de lá de casa — um sofá antigo, desses que não existem mais — eu passava o dia lendo, ninguém me importunava. Pai passava quando vinha da rua, mãe quando varria a sala, minha irmã quando vinha da casa das amigas, e eu lá, no mesmo lugar, lendo, sendo feliz. Ninguém me tirava daquele mundo... Minha família sempre entendeu isso muito bem. Acho que sentiam orgulho. Pai, que sempre foi leitor fervoroso de Jorge Amado, e lia jornal todas as noites, sentia-se orgulhoso (...) Mãe não entendia muito bem aquele negócio meu com os livros, mas achava melhor assim: melhor dentro de casa que aprontando na rua.”
Ah, o amor (16/10/2007),
a golpes de pequenas solidões,
leia aqui
“(...) Mãe sempre foi adepta do rádio, e demorou muito para assumir o seu amor pela televisão. Todos os anos, antes da televisão chegar, ela fazia questão de comprar um rádio novo. Colocava na cozinha, ligava pela manhã e só desligava à noite. (...) nunca me esqueci de uma conversa que ouvi de mãe com sua amiga, logo que pai comprou a famosa televisão. Ela dizia para a amiga que jamais trocaria o rádio por ‘aquilo’. A outra ficou espantadíssima e perguntou o motivo de tal despautério. Ela argumentou que a televisão exigia sua presença na sala o tempo todo, enquanto que o rádio não — era só aumentar o volume e ela podia cozinhar, lavar pratos, ir ao quintal, fazer tudo. Minha mãe, sem saber, falava talvez sobre a liberdade...”
“(...) Não vemos o vento e temos a certeza que ele existe. Há comprovação maior do mundo sensível? (...) O vento é, pois, uma das provas mais contundentes da existência do invisível.”
“Minha memória guarda também retratistas inesquecíveis. ‘Zé Lópe’, por exemplo, que falava cantando porque teve a língua cortada pelo doido da cidade. Esse tirava fotos 3X4, para a escola. Cismava que tínhamos que soltar os cabelos, e se déssemos uma risadinha qualquer o homem ficava brabo. Com a fala cantante, dizia que tínhamos cabelos que baratas roeram, que com aqueles cabelos não sairia nunca retrato que prestasse; e que retrato para documento com gente rindo ele não tirava. A fala dele nos fazia rir, rir, rir. O homem se destemperava, saía pela rua para dar queixa a pai. (...) Numa das revelações dessas fotos, caí de perplexidade. Simplesmente não era eu. Fui dizer para ele que houve um engano. Ele bateu pé firme, era eu sim. Não sei por que razão a boca daquela menina do retrato estava torta, o cabelo assanhado, e exibia uma cara de fuinha que nunca tive na vida... Ele dizia que era eu sim, eu dizia que não era eu não.”
“Minha avó foi nos receber na porta, assim como ela estava fazendo com todas as pessoas que chegavam. E também repetiu o que dizia desde que ali entrou a primeira pessoa: ‘Parem com essa besteira de chorar, gente! Que chororô que nada! Todo mundo um dia vai morrer! Hoje foi ele, amanhã sou eu, depois serão vocês! Entrem, entrem, mas nada de choro, nada de choro!’”
“Nunca consegui me achar dentro deste mundo. Sou uma aeronauta. O nome pode não ser lá muito bonito, mas é o que sou. O que me deram de batismo é somente um adendo. Não precisam saber que outro nome é esse. Com o nome que me deram muitos pensam que sabem quem eu sou. Que nada, não sou essa que tem o nome que todos pensam conhecer. Sou outra. (...) não dizer meu nome de batismo e escrever ao léu, escrever de uma aeronave distante, longe do mundo, e com uma furtiva esperança: ser amada.”
Ângela Vilma - Foto daqui
Presentes no blog Aeronauta, de Ângela Vilma, postagens O segredo que a vida exala (14/10/2007), Escrever (16/12/2007), A pretensa suicida (04/11/2007), “Ninguém sabe nem saberá” (11/12/2007), “Eis a noite!” (16/12/2007), Eu não queria sentir dor (17/09/2007), O lirismo de meu pai (19/11/2007), Um reino jamais perdido (16/09/2007), Meu pé de carambola... (26/09/2007), “Notívaga” (06/11/2007), Conversas com Clarice (11/07/2007), Ah, o amor (16/10/2007), História de amor (13/07/2007), Bate-papo num final de tarde (28/11/2007), Doloroso silêncio (11/11/2007), Conversas natalinas (24/12/2007), Contínua prosa do contra (27/12/2007), Prosa do contra (26/12/2007), Nasci... (10/11/2007), Procura-se (29/10/2007), Conversando no divã (II) (01/10/2007), Jogo perverso (24/08/2007), No confessionário (10/09/2007), Casamento feliz (07/09/2007), Domingo, com Cecília (28/10/2007), Nunca me esqueci disso (26/08/2007), O vento e sua “incorpórea música” (21/08/2007), O verdadeiro retrato (14/08/2007), Quando meu avô morreu (04/12/2007) e Sou uma aeronauta (18/08/2007), respectivamente.
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