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Dez passagens de Breece D’J Pancake no livro Contos cortantes

Breece D'J Pancake - foto daqui


           “Buddy levou a arma ao peito devagarinho, apontou para a sombra. Antes que o estampido chegasse ao vale ele viu um risco em movimento. Correu para onde o veado tinha estado, mas não viu sangue. Acompanhando o rasto, encontrou o animal caído uns dez metros adiante. Era uma fêmea ferida na pá, mas sem sangue.
           Trabalhando rápido, ele abriu os tendões traseiros do animal, passou uma corda pelas aberturas e pendurou-o em um galho baixo. Começou a abri-lo partindo da garganta e o sangue foi pingando na neve. Quando correu a faca no ventre, alguma coisa se mexeu dentro. Buddy continuou cortando, e quando as vísceras se derramaram, uma pelota palpitante caiu aos seus pés.
           Buddy chutou a coisinha para o lado, despregou as tripas da mãe, esquartejou-a e deixou a carcaça para os carniceiros. Cortou três fatias pequenas de fígado e as deixou na neve para esfriarem.
           O sangue morno da corça queimou os nós dos dedos feridos de Buddy. Ele os limpou com neve (...) Comeu um pedaço de fígado cru e enquanto sentia o gosto ficou olhando os tremores finais do filhote na neve regelante. Ele não via a hora de inundar a mina amanhã, e riu ao pensar na cara de Curtis.
           — Greve. Greve — murmurou várias vezes.
           Em um montículo na serra, para onde fugira do cães, o lince olhava, esperando que o homem se fosse.”


           “Íamos pelo campo examinando a cana à procura de pragas e insetos, e o sol da tarde fazia reflexos no cabelo liso de meu pai. Ele mordia o canudo do cachimbo, parava com uma perna cruzada no joelho e batia o cachimbo na botina para esvaziá-lo.
           Criei coragem e perguntei:
           — Acha que posso ir para o colégio, pai?
           — O que é que você tem contra a agricultura?
           — Bem... nada, se é isso que o senhor quer.
           (...)
           Ele encheu o cachimbo, ficou dando voltas como se procurasse alguma coisa, depois parou e olhou os morros. — O problema é o seu nome — disse. — Quando você nasceu, meu pai disse: ‘Batize ele de William Haywood, e, se ele entrar numa mina um dia, desejo que morra sufocado.’
           Achei isso uma coisa horrível para ser dita por meu avô. Fiquei olhando meu pai, torcendo para que ele me deixasse ir. Finalmente ele falou:
           — Todo mundo hoje quer estudar para ser alguém melhor. Ora, quase todo mundo está indo em um rumo, é tempo de dar meia-volta e ir ao rumo contrário, entende? Não me interessa se acabam cagando pepitas de ouro; alguém precisa trabalhar o maldito chão. Alguém precisa trabalhar a terra.
          — Sim, senhor.”


           “A mão dela na minha nuca me dá vontade de rir para ela, de lambê-la.
           — Por que você não larga isso de ser putinha? Você não tem o jeito. Está abaixo de você.
           — É bom você pensar assim.
           Olho para ela e penso no que ela poderia ser se tivesse ajuda. Mas não vai ter aqui. Ninguém aqui consegue ajuda. Eu poderia lhe falar dos meus pais adotivos, das senhoras dos serviços de assistência e do jeito que eles me olhavam quando me punham em um ônibus para outra cidade, mas ela não entenderia. Apago a luz e nos despimos.
           Nada como o escuro. Não há rosto, não há conversa, só a pena morna, o contato e a ternura, um lugar para a gente se perder. Mas quando a pego sei o que tenho — um corpo de menina que não vibra, criança brincando de puta; me sinto vil com ela, por causa dela. Me forço nela como os outros. Sei que a estou machucando, mas ela não vai ter ajuda nunca. Ela geme e meu corpo se arqueia em espasmos, depois ela se encolhe e se enrosca longe de mim e eu a toco: ela não sente.”


           “Entro na Primeira Avenida e vou andando devagar pelos botecos cheios, pelas janelas olho os sortudos que se reuniram para festejar o Ano-Novo. Lá está ela sentada a uma mesa perto da porta dos fundos. Entro, sento num tamborete do bar, peço um uísque puro. Uma fumaça pesada paira no ar, mas mesmo assim vejo o reflexo dela no espelho atrás do balcão. Ela tem os lábios caídos, sinal de que está alta. Não sabe que a saída não é por aí.
           Olho em volta. Toda essa gente fracassada está aqui porque não tinha uma festa para ir. São estranhos que jogam bilhar ou sinuca, bebem um pouco. O ano inteiro eles rangem os dentes — bombeiam gás, servem mesas, deitam-se com prostitutas, seduzem bichas e não gostam nada disso; mas sabem que é melhor do que nada.
           Procuro-a no espelho, ela já foi. Pela frente ela não saiu: então vou à porta dos fundos procurá-la. Ela está sentada com as costas na parede de um edifício, completamente apagada. Dou-lhe uma sacudidela e vejo que ela cortou os dois pulsos até os tendões, mas a chuva gelada coagulou o sangue, e só um fiozinho escorre quando eu a movimento. Volto ao bar.
          — Tem uma garota aí fora que tentou se matar.
          Três sujeitos saem correndo e a trazem para dentro. O barman pega o telefone. Pergunta se a conheço.
           — Não. Saí para tomar ar — digo e vou saindo.”


           “Os morros vão ficando para trás, e nos aproximamos de Gauley, limpando o trecho à beira do New River. O rapaz fuma e põe a mão para fora para sentir a neve.
           — Nevava assim na França no inverno de 44 — digo. — Eu era paraquedista, nos soltaram num lugar que estava assim de alemães. Meu pelotão tomou uma fazenda sem dar um tiro.
           — Pô, matou eles a faca?
           — Torcemos os pescoços deles. — Vejo minha vítima cair no chiqueiro. Gente morre tão fácil.”


Breece D'J Pancake - foto daqui


           “— Olhe só! — Reva mostrou uma jaula de arame onde dois macacos-aranha trepavam. Um terceiro estava numa prateleira se coçando, esperando a sua vez.
           — Conheci uma mulher que foi emprenhada assim.
           Reva desviou o olhar da cena dos macacos e encarou com desgosto os olhos azuis de Carlene.
           — Foi minha mãe quem me contou. Disse que ela já estava de sete meses, e o marido não conseguia tirá-la dos macacos.
           Reva voltou a olhar a macaca que esperava ser trepada pelo outro macaco. O outro macaco desceu da prateleira para dar a sua trepada, enquanto a fêmea olhava indiferentemente para Reva e piscava.
           — A criança nasceu parecida com macaco — disse Carlene se inclinando para falar a Reva rente à jaula. — Mamãe jura que é a marca da besta, mas ela é muito intolerante nesses assuntos.”


           “Quando saiu da cidade, Chester deixou um germe. Não daquele germe que a gente pensa que faz uma planta crescer; mas uma doença, um vírus, um contágio. Chester espalhou-os no café quando o oficial de justiça o reconheceu e perguntou o que ele andava fazendo. Chester respondeu que estava na Broadway, e distribuiu ingressos do show de que participava, e um bando de gente se tocou para Nova York. Todos voltaram cantarolando músicas do show. O germe se espalhou por toda Rock Camp, e todo garoto do grupo teatral do ginásio ficou pensando que podia ser um Chester. Dois dos mais destacados se mataram, e os que voltaram tiveram de enfrentar um verdadeiro inferno quando Pop lhes disse que não havia trabalho para tanta gente no posto.
           Mas teve uma coisa que foi bom ficar sabendo: foi quando Chester foi mastigado e cuspido para fora de Nova York. É que ele pensava que o cocô dele não fedia — pelo menos foi o que as pessoas aqui disseram. Não sei o que se passou em Nova York, mas acho que posso deduzir com base no que Chester fez aqui. Ele decidiu estragar a mágica de todo mundo e apresentar a dele como a melhor. Isso deu resultado nos que ainda acreditavam no êxodo de Arkansas, ou entre os que pensavam que a teta farta jamais secaria; e deu resultado também com Chester quando ele voltou e ficou acreditando ele também.”


           “O carro esporte de Ginny zune na estrada, buzinando ao passar, mas sei que ela vai voltar.
           — Bem como a mãe — diz mamãe — voando como louca para os inferninhos de cerveja.
           — Ela não conheceu a mãe — digo. Ponho o prato no chão. Gostei de Ginny ter se lembrado de buzinar.
           — E se eu for embora com algum empregado dos poços?
           — Você não vai fazer isso, mamãe.
           — Não vou — ela diz e fica olhando os carros passarem. — Matou ela em Chicago. Depois se matou.
           Olho para além dos morros e do tempo. Cabelo vermelho derramado no travesseiro, sangue espalhado pelo tiro. Outro corpo desarrumado e quente aos pés da cama.
           — Dizem que ele fez isso porque ela não queria casar com ele. Foram encontrados dois anéis de casamento no bolso dele. Italianinho empolgado.
           Vejo polícia e repórteres no quarto acanhado. Murmúrios chegam ao corredor. Ninguém olha o rosto da morta.
           — Bem, pelo menos estavam vestidos — diz a mãe.”


           “Skeevy tentou acertar a barriga despencada, acertou duas vezes, mas se desapontou com os resultados. Dançou um pouco mais, se esquivando de suingues, sabendo que Gibson só acertaria o ar algumas vezes antes de cansar. Quando viu que o tempo chegara, visou a têmpora machucando o outro, mandou um gancho de esquerda e o derrubou. Aí o cincerro soou.
           Skeevy sentiu uma pontada no olho e ficou sabendo que era sangue, mas aquilo não era uma luta real. Ora essa! Gibson queria matá-lo! Preciso abandoná-lo, pensou. Preciso pará-lo antes que ele me mate.
           (...)
           Quando mandou um cruzado de direita no peito de Gibson, Skeevy sentiu os ossos do queixo quebrarem e provou sangue. Gibson não caiu, e Skeevy dançou com a dor. Atacou novamente a têmpora com uma série de golpes. Queria arrancar o olho e pisar nele, senti-lo debaixo do pé até estourar.
           (...)
           Cephus jogou água em Skeevy, e ele cuspiu um pedaço da língua. Gibson ficou esperando Skeevy se erguer até ficar agachado. Com a cabeça já desanuviada, ele sentiu que podia ficar de pé.”


           “— Eu era menor do que você a primeira vez que meu pai me levou para caçar. — Enoch mudou de marcha, e a transmissão chacoalhou como um amontoado de correntes. — Fiquei bêbado com duas colheradas de uísque e uma mastigada de fumo. Rapaz! Tempo bom aquele. Nada para fazer, só ouvindo os mestres falarem. Cresci depressa. Precisava. Conheceu meu pai?
           — Não — disse Bo pensando no filme que ia perder.
           — O seu pai conheceu. Mais mesquinho do que uma cutucada. Quando eu tinha oito anos ele me iniciou. Me levou a uma casa em Clarksburg. A velha disse que eu não podia entrar. Então ele me deixou no carro e voltou lá com uma espátula de trocar pneu. Depois voltou, me levou na casa e mostrou a velha e o homem dela estatelados no chão.
           — Deve ter sido emocionante — disse Bo olhando os desenhos que as árvores lançavam para o céu à passagem do carro.
           — E não é só. Ele me levou ao quarto, pegou a garota, deitou ela e ficou segurando até que eu acabasse. Ela chamou meu pai de FDP porque ele só deu a ela cinquenta centavos, e ele quebrou os dentes dela com um soco.
           Enoch riu pra valer, Bo apenas sorriu. O velho Enoch não vivia mais, mas os rumores de restos de estranhos encontrados em covas debaixo de chiqueiros continuavam se espalhando.
           — Quando foi que você deu a sua primeira?”




Presentes no livro Contos cortantes (Bertrand Brasil, 1994), de Breece D’J Pancake, tradução de José J. Veiga, páginas 56-57, 132-133, 63, 64-65, 94-95, 105, 154-155, 35, 123 e 82-83, respectivamente.

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