Myriam Fraga - foto daqui
“Na abençoada terra de meus antepassados, dos ancestrais que forjaram a incrível aventura de criar uma civilização em que se encontram e convergem todos os possíveis caminhos — num difícil aprendizado de tolerância, num delicado equilíbrio de raças, de línguas, de crenças e costumes —, foi que consegui finalmente entender, integralmente, a grande herança que nos foi legada por este povo admirável, fruto da pedagogia ditada pelo jeito português de entender o Outro como a si mesmo e, dentro da diferença, encontrar o equilíbrio.”
“De uma velha senhora, gente simples do povo, aprendi, há algum tempo, uma lição preciosa. É que eu costumava fazer planos, programar o futuro, como se as coisas fossem acontecer sempre na medida dos meus próprios desejos. Todas as vezes em que eu afirmava convicta: ‘Vou fazer isto ou aquilo, sábado irei a tal lugar, próximo ano, etc.’, ela ouvia em silêncio e, com um ar muito sério, respondia solene como uma sibila cabocla: ‘Se Deus quiser’. Da primeira vez, a frase me soou como uma advertência. Fiquei meio parada no entusiasmo dos projetos, sentindo um certo mal-estar, pressentindo, naquelas palavras tão simples e tão usadas por todo mundo, um toque de sabedoria milenar, aquela sabedoria que vem dos fundos do tempo, aprendida às custas de muito sofrimento, de imemoráveis experiências, de um saber atávico que não se encontra nos livros nem se aprende na escola, mas se bebe com o primeiro leite, com o primeiro sorvo de ar aspirado com ânsia por um delicado pulmão que, enfim, se descola.
(...)
Vamos com calma, humildes e prudentes. Vamos bem devagar, contentes do que conseguimos vencer, deste dia que, afinal, nem sempre merecemos; o presente alcançado, o outro lado do muro. Com vagar, chegaremos. Isto é, se Deus quiser, se os fados permitirem, se for esta a nossa moira. Porque certeza mesmo neste mundo ninguém pode ter de coisa alguma. A gente faz por merecer: luta, trabalha, se esforça, sonha, projeta. Mas, de repente, o destino nos prega uma surpresa e, em meio à nossa vaidade, aos acordes voluptuosos de nosso próprio triunfo, como no cortejo dos Césares, a voz soturna e monótona marca os limites de nossa insignificância a lembrar que somos apenas mortais, e o nosso quinhão é sempre o imprevisível. A voz noturna e distante como um agouro ou um aviso: ‘Cuidado, não caias’.”
“Nós somos o mundo. Nosso é este abismo que se alarga a cada dia. Nossa é a responsabilidade pelo exercício cotidiano da solidariedade. (...) São nossas as dores do mundo, são nossas as alegrias, juntos giramos sem parar nesta bola perdida num universo misterioso de segredos infinitos, de infinitas distâncias. São nossos os gritos e os gemidos nos campos de batalha, os ossos furando a pele das crianças da Antiópia. (...) Nós somos os tiranos e a força que nos sustenta, nossa é a culpa porque somos tíbios, porque somos omissos e não queremos doar além do que é preciso, como a esmola jogada de longe para alcançar um remorso, para esconder uma culpa. (...) Nós somos o mundo. Somos o sentimento que faz bater, num mesmo ritmo, corações tão distantes no mesmo entusiasmo febril em busca de um caminho, de uma estrada que nos leve a um lugar mais seguro, a um futuro em que não haja sempre sobre as nossas cabeças uma espada de cobalto. (...) Um futuro sem humilhados e ofendidos, sem carrascos e opressores, no qual o vinho que se bebe não seja a anunciação de sedes mais severas, e a comunhão seja possível mesmo entre contrários, mesmo entre distantes pela razão e pelo espírito.”
“A gente sabe que as pessoas estão morrendo. A gente sabe que as pessoas estão se matando como animais doentes. Mas um número é um número. Uma fria abstração. Aquele jovem na foto era dolorosamente real. Não como nas imagens dos noticiários da TV, trágicas mas passageiras. Eficientes e rápidas como um golpe de faca. Um retrato pesando em minhas mãos como um pecado de séculos. Impresso indevidamente, queimando-me a retina, incomodando como um prego no sapato.
Na sala vazia, eu respiro fundo, enquanto no meu coração um pensamento egoísta começa, insidiosamente, a infiltrar-se. Aqui estamos salvos, aqui ainda estamos salvos. Eu não conheço este jovem. Como o Mandarim do célebre romance, ele está do outro lado. Não posso ser culpada. Ele é apenas alguém que eu não conheço. Em minha sala silenciosa, eu fecho os olhos um instante para não ver a inocência daqueles sapatos fugindo. E tento não pensar no clarão suicida, no cogumelo crescendo como uma flor malsinada ao ritmo alucinado do galope das bestas.”
“Hoje eu só quero esquecer. Quero fingir que tudo vai dar certo. Que tudo seguirá adiante, e a vida é assim mesmo, temos de continuar. Continuamos. Difícil é esquecer aquele homem sozinho, lutando desesperado contra um inimigo insidioso, um adversário cruel que não fará acordos, para quem de nada adiantará sua conhecida diplomacia, sua comprovada experiência em conciliar os contrários. Eu disse sozinho, e isto talvez cause espanto, pois nunca se viu tamanha corrente de solidariedade no país, tantos médicos, tantos familiares, tantos amigos apreensivos, o povo todo unido na mesma prece angustiada, o coração batendo forte a cada notícia, a cada boato, a cada leitura de um boletim médico que não traz mais esperanças, mas que ainda insinua um milagre. Eu disse sozinho. E é isto mesmo. Ele está sozinho, porque é assim sempre nos momentos mais graves. Um homem sempre está só, quando enfrenta o destino. Um muro de silêncio e solidão o separa do mundo, e o sofrimento é pouco diante de tamanho desamparo.”
Myriam Fraga - foto daqui
“Do alto do casarão azul do Pelourinho, sede da Fundação Casa de Jorge Amado, procurando um caminho, um fio que me conduzisse através do labirinto de recordações que me afogavam, como ondas de um mar invisível, sentia-me como uma pessoa que, no meio de uma ventania, procurasse agarrar algumas folhas rodopiantes para colá-las num álbum. As palavras se dispersavam, a memória fragmentava-se. Meu coração está dividido. De um lado, cumpre exaltar o grande escritor, a figura internacional de um homem que soube conquistar o mundo com seus personagens construídos e amalgamados com o barro e o sal da grandeza e das misérias humanas. Ele mesmo, personagem maior do universo literário, a construir uma obra que, só no futuro, quando conveniente e extensamente estudada, poderá vir a tornar-se um parâmetro de aferição da sua importância. Por outro lado, o que me conforta recordar, o que me serve de consolo, nesta hora de despedidas, são os momentos em que pude desfrutar de uma amizade sem preço, da convivência de um ser humano verdadeiramente excepcional.”
“Janelas são espaços de fuga. Maneiras de viajar num doce abismo. De espreitar desvãos, inventar caminhos, insuspeitadas paisagens, desconhecidos horizontes.
Janelas são olhos arregalados para o mundo, mas, às vezes, são apenas espelhos, águas paradas refletindo o rosto ambíguo de nosso próprio desespero. Olhos perdidos num mundo que nos foge como um peixe irreal na superfície de um lago.
Janelas são veredas abertas para o sonho. São passagens para a distância infinita que nos chama com seu poder de encantamento, com a magia do ignoto. Debruçar-se numa janela é respirar o mundo. É aspirar o ar salitroso das manhãs cheirando a fruta e maresia. É ser tocado por um vento quente num dia de verão, quando o sol racha os campos, e o aroma do capim se mistura na memória com o cheiro bom dos currais; a espuma macia do leite transbordando das canecas lustrosas.”
“(...) São João, na tradição brasileira o mais povo dos santos, o mais chão, o mais humilde e, por isso mesmo, o mais festejado, o mais profundamente ligado aos costumes de nossa gente, porque teluricamente associado a ritos que se enraízam no tempo, que se alongam mais fundo que a própria história da cristandade. (...) Há, no espírito da festa de São João, alguma coisa particular e delicada. O retorno à ancestralidade esquecida, aos cultos domésticos, aos costumes passados. Mito de ressurreição e festa da colheita.”
“Hoje a cidade explode com seus milhões de habitantes, carências, violências, assaltos, ruas bloqueadas como fortalezas. Ninguém mais para numa praia deserta para ver o pôr-do-sol. Serenatas? Nem pensar. Passeios, nos pouquíssimos parques que nos restam, só em horas determinadas e com guardas por perto. Por todo canto, a desconfiança, o medo, a insegurança. A cidade inchada como um tumor expõe suas mazelas. A miséria, sem pudor, avança a passos largos com seu cortejo de sombras que nos fazem meditar sobre o destino que nos aguarda; sobreviventes da classe média, encastelados em nossos derradeiros bastiões, empastelados entre a pobreza absoluta e a usura desmedida.”
“Solidão, solidão. Um homem passa na rua, e sua tristeza faz dele apenas mais um desgovernado barco à deriva de sonhos. Um homem e sua dor, um homem triste e seu fardo, sua bruaca angústia. Centrado e concentrado em seu ruminar de grandes/pequenas angústias, um homem com sua paixão, sua dor de corno, sua fome, suas dívidas, sua angústia metafísica, sua luta inglória, sua batalha cotidiana.”
Presentes no livro de crônicas Mínimas estórias gerais (Alba, 2017), de Myriam Fraga, páginas 189, 216-217, 220-221, 219, 212, 186, 183, 197, 174-175 e 204, respectivamente.
Comentários
sensibilidade de Myriam Fraga.