Daniel Mason - foto daqui
“(...) aprendera logo cedo na vida que ser necessário não é o mesmo que ser aceito. Embora fosse visita frequente nas casas de classe alta, onde os donos de piano caríssimos muitas vezes se punham a conversar sobre música com ele, nunca julgou ser bem-vindo. E essa nítida sensação de estranhamento aplicava-se também ao outro lado, já que quase sempre se sentia meio refinado, ainda que de forma canhestra, na presença dos marceneiros, ferreiros e carregadores que muitas vezes tinha de contratar para seu trabalho. Lembrava-se de ter comentado com Katherine sobre essa sensação de não pertencer a lugar nenhum, logo depois de se casarem, um dia de manhã, quando caminhavam à beira do Tâmisa. Ela apenas rira e lhe dera um beijo, as maçãs do rosto rosadas de frio, os lábios quentes e úmidos. Lembrava-se disso quase tão bem quanto se lembrava do que ela tinha dito: Acredite o que quiser sobre o lugar a que você pertence; tudo que me importa é que você é meu.”
“(...) estão cruzando uma clareira e, de repente, passa uma flecha zumbindo e atinge uma árvore em cima da cabeça dele. Os soldados tentam se proteger entre as árvores e aprontam os rifles, mas Carroll continua parado na clareira, sem se mexer, doido varrido (...) mas calmo, bem calmo mesmo (...) e uma outra flecha passa por ele, mais rápida dessa vez, raspa no capacete do homem (...) e o que ele faz? (...) O louco desgramado tira o capacete, lá dentro tinha uma flauta pequena que ele gostava de tocar durante as marchas, põe a maldita coisa na boca e começa a tocar (...) uma música que nenhum de nós nunca ouviu, uma modinha esquisita (...) Carroll para e olha em volta, e os soldados todos ajoelhados no mato, rifles contra o rosto, prontos para atirar se um passarinho piar, mas nada acontece, continua tudo parado, e o Carroll toca a música de novo e, quando termina, fica esperando e depois toca de novo, e olha a floresta toda em volta da clareira. Nada, nem um pio, nenhum flecha mais e Carroll toca de novo e do mato vem um assobio, a mesma melodia, caramba, (...) estão todos cantando juntos, Carroll e o seus atacantes, e os homens ouvem risadas e brados contentes vindos de dentro da mata, mas é tudo muito fechado e escuro, e não dá para ver nada. Por fim, Carroll para e faz um sinal para os homens levantarem e eles levantam devagar, estão com medo, dá para imaginar, e montam de novo, e continuam a marcha, e nunca mais veem o pessoal que atacou, ainda que o soldado que me contou essa história tenha dito que ouviu pelo caminho todo que eles estavam por lá, guardando o grupo inteiro (...) e dessa forma Carroll passa por alguns dos territórios mais perigosos do Império sem disparar um tiro (...) ‘A música. Que música foi que ele tocou na flauta?’ (...) ‘A música... uma canção de amor dos chans. Quando um chan faz a corte à sua amada, ele sempre toca a mesma música. Não é grande coisa, bem simplesinha, mas funcionou feito um milagre. Carroll disse mais tarde ao soldado que me contou essa história que nenhum homem conseguiria matar alguém que tocasse uma música que o fizesse lembrar da primeira vez em que se apaixonou’.”
“(...) na escuridão do quarto perfumado de coco e canela, um desejo de que as mãos, quem sabe, se raspassem de leve, primeiro sem querer, depois de novo, talvez com mais ousadia, mais deliberação, que seus dedos se encontrassem, se enroscassem, e que ficassem os dois desse jeito por algum tempo antes que ela erguesse os olhos e ele baixasse os seus. E ela? Estaria pensando o mesmo?, Edgar se perguntou, enquanto continuavam parados lá fora sentindo o frio da água na pele. (...) E talvez pudesse ter acontecido, caso Edgar tivesse agido com a espontaneidade da chuva, caso tivesse se aproximado dela com a mesma ousadia com que cai a água. Mas não agora. Seria pedir demais de um homem cuja vida se caracteriza pela criação da ordem a fim de que outros possam criar beleza. É esperar demais, de quem faz regras, que elas sejam por ele violadas. E assim, depois de um longo silêncio em que ficaram ouvindo a chuva, a voz lhe sai da garganta e ele diz: ‘Acho melhor trocarmos de roupa. Preciso encontrar alguma coisa seca para pôr’. Palavras passageiras que significavam pouco e muito.”
“Os lamentos foram num crescendo e a areia começou a girar ao meu redor. Em seus redemoinhos, vi lampejos de imagens. De pássaros voando em círculos, do acampamento, cidades de tendas, o sol de pondo rápido, estilhaçando-se, incendiando o deserto numa chama gigantesca que se espalhava pelas dunas, ora englobando tudo, ora recuando e deixando apenas fogueiras isoladas. De repente, anoiteceu e em volta das fogueiras reuniram-se viajantes, dançarinos, músicos, tocadores de tambor, mil instrumentos que gemiam como areia em movimento, aumentando de volume, cada vez mais altos e estridentes, e à minha frente apareceu um encantador de serpentes que tocou um alaúde e as cobras saíram do cesto e enroscaram-se em suas pernas. Moças dançavam, o corpo besuntado de manteiga, perfumadas, reluzindo ao fogo, e eu me vi olhando para um gigante com cicatrizes na pele feito estrelas, a carne tatuada de histórias, e as cicatrizes viraram homens vestidos com peles de lagartos e crianças feitas de barro, e eles dançaram, e as crianças espatifaram-se. E aí então já era dia de novo e as visões sumiram, fiquei sozinho com a areia e o grito, e de repente isso parou. Ergui a mão diante do rosto e perguntei: ‘Quem é você?’. Mas não podia mais ouvir minha voz.”
“Quando eu cheguei até o rapaz, as pálpebras já começavam a fechar, era a paralisia se instalando no corpo. Não sei como ele ou um dos outros conseguira pegar a cobra e matá-la; quando me aproximei, lá estava ela, despedaçada e morta na picada. Os homens usavam uma palavra chan que eu não conhecia, mas em birmanês o nome é mahauk, do gênero Naja, que nós conhecemos como cobra asiática. Entretanto, eu não me sentia muito propenso a investigações científicas naquele momento. A ferida continuava sangrando de dois talhos paralelos. Os homens me olhavam, à espera de algum conselho médico, mas havia pouca coisa a fazer. Agachei-me ao lado do rapaz e segurei sua mão. As únicas palavras que consegui dizer foram ‘Eu sinto muito’, já que ele tombara a meu serviço. A morte por picada de cobra é terrível: o veneno paralisa o diafragma e mata por sufocação. Ele levou apenas meia hora para morrer. Na Birmânia, são poucas as cobras, fora a asiática, que conseguem matar tão depressa. Os remédios chans para picada de cobra são, primeiro, amarrar a ferida, coisa que fizemos (embora sabendo que de pouco adiantaria a medida), chupá-la (que eu fiz) e depois aplicar uma pasta de aranhas moídas (mas não tínhamos a pomada e, a bem da verdade, sempre duvidei da eficácia dessa cura). No lugar dela, um dos chans fez uma oração. Ali do lado, as moscas já começavam a se juntar em volta da cobra. Algumas pousaram no rapaz e um de nós espantou-as.”
Daniel Mason - foto daqui
“E agora flutua por cima da cama, vê-se a si mesmo. A água escorre-lhe da pele, junta-se, começa a se mover, não é mais água, são formigas que jorram em enxames de seus poros. Ele está preto de formigas. Cai, de volta ao corpo, e grita, estapeando as formigas, elas se espalham nos lençóis e viram fogos minúsculos, e ele passa a mão e elas são substituídas por outras, saindo de seus poros como se de um formigueiro, nem depressa nem devagar, mas incessantes, elas o cobrem inteiro. Ele grita e escuta murmúrios ao lado da cama, são muitas as formas agora, acha que conhece todas, o médico, a senhorita Ma e uma outra, parada atrás dos dois. O quarto está escuro e vermelho como fogo. Vê a fisionomia de todos, mas as imagens borram e derretem, as bocas transformadas em focinhos de cães, bocas que soltam gargalhadas e avançam para ele de patas estendidas, e onde o tocam parece gelo, ele grita e tenta espantar aqueles braços. Um dos cães se debruça e comprime o focinho em seu rosto, o hálito fede a calor e a ratos, e os olhos queimam transparentes, feito vidro, e neles enxerga uma mulher, ela sentada na margem de um rio, vendo dois corpos, e ele os vê também, os braços escuros agarrados às costas largas e brancas, pálidas e sujas de areia, rostos colados, ofegantes. Há um único barco na areia, a mulher entra nele e começa a remar, ele tenta se erguer, mas os braços escuros o restringem, sente-se escorregadio, quente, e o focinho lhe abre os lábios, uma língua áspera entra-lhe na boca. Tenta se erguer mas está cercado, tenta lutar mas cai para trás, exausto. Dorme.”
“Carroll fez um gesto para que se aproximasse de uma superfície lisa do paredão. ‘Ponha o ouvido aqui.’
‘O quê?’
‘Vá, encoste o ouvido no paredão, escute.’
Edgar olhou-o com ceticismo. Agachou-se e pôs o ouvido na pedra.
Das profundezas da rocha vinha um canto estranho, insistente. Afastou a cabeça. O som parou. Encostou-a de novo. E de novo ouviu-o. Parecia familiar, como se fossem milhares de sopranos exercitando-se antes de começar a cantar. ‘De onde vem?’, gritou.
‘A rocha é oca, são as vibrações do rio, uma ressonância aguda. Essa é uma das explicações. A outra é a que dão os chans; dizem que é um oráculo. Aqueles que buscam conselho vêm até aqui escutar. Olhe lá.’ Apontou para uma pilha de pedras sobre as quais fora colocada uma coroa pequena de flores. ‘Um santuário aos espíritos que cantam. Imaginei que fosse gostar deste lugar. Um cenário próprio para um homem que se dedica às questões musicais.’”
“À medida que foram avançando, o nervosismo e a desorientação de Edgar começaram a se dissipar diante da arremetida entusiasmada do médico. Todas as suas próprias perguntas, a maioria a respeito de música, a respeito do piano, a respeito do que os chans e os birmaneses achavam de Bach e de Händel, a respeito dos motivos de Carroll continuar em Mae Lwin e, ao fim e ao cabo, do porquê de ele próprio ter ido até ali, foram temporariamente esquecidas. Curioso, mas não parecia haver nada mais natural do que marchar a cavalo para caçar plantas sem nomes, tentando compreender o caudal de histórias, lendas chans, nomenclatura latina e referências literárias do dr. Carroll. No alto, uma ave de rapina fez a volta, pegou uma corrente ascendente e Edgar se pôs a imaginar o que o pássaro enxergaria, três figurinhas seguindo uma trilha árida que acompanha um colar de colinas de calcário, povoados minúsculos, o Saluen escorrendo lânguido, as montanhas a leste, o planalto Chan desembocando em Mandalay e, depois, toda a Birmânia, o Sião, a Índia, os exércitos ali reunidos, à espera, as colunas de soldados franceses e britânicos, cegos uns para os outros, mas visíveis ao pássaro, enquanto nesse meio-tempo três homens cavalgam colhendo flores.”
“Carroll deu a cada um dos doentes com malária pastilhas de quinino, extrato de uma planta segundo ele vinda da China e também uma raiz local para amainar a febre. Para a diarreia, deu láudano ou sementes moídas de mamão; para o bócio, pastilhas de sal. Instruiu o manco sobre como fazer um par de muletas. Na grávida, esfregou uma pomada na barriga inflada. Pela criança surda não podia fazer nada e disse a Edgar que ver uma criança assim o entristecia mais do que quase todas as outras doenças, porque os chans não tinham linguagem de sinais e, ainda que tivessem, o menino jamais poderia ouvir as músicas tocadas nas festas ao luar. Edgar lembrou-se de uma outra criança, o filho surdo de uma cliente, que encostava o rosto na caixa do piano quando a mãe tocava, para sentir as vibrações. Lembrou-se do vapor para Áden também, e do Homem de Uma Só História. Existem causas para a surdez que talvez nem a medicina consiga entender.”
“Já quase escurecera e a neblina do rio invadia os esqueletos queimados. De repente, Edgar sentiu medo. Estava tudo quieto demais. Não se afastara muito, mas não sabia mais dizer em que direção ficava o rio. Caminhou apressado pelo amontoado de casas, que pareciam aumentar de tamanho, as portas feito bocas carbonizadas, cadavéricas, zombando, a névoa se juntando nos telhados, agrupando-se em gotas, fios de água agora a escorrer. As casas choram, Edgar pensou, e pelas frestas do tabique de uma choça viu as chamas de um fogo aceso iluminando a neblina e sombras escuras que se dilatavam contra o flanco do morro e dançavam.”
Presentes no romance O afinador de piano (Companhia das Letras, 2003), de Daniel Mason, tradução de Beth Vieira, páginas 100, 140-142, 299-300, 86, 262-263, 285-286, 228-229, 224, 237 e 355, respectivamente.
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