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Oito passagens de Aleilton Fonseca no livro-poema A terra em pandemia

Aleilton Fonseca (foto: Nara Gentil)


“Quem geme e chora por seus filhos dizimados?
Em linha de desmontagem: a vida em decomposição.
Mortes em alta. Vidas em baixa. Um país sem farol.
(...)
Nossa tragédia é longa. A travessia mal começou.”


“Quantas corpos expiram nos leitos enquanto escrevo estes versos?
De repente, eu, que contava os mortos, serei chamado a compor a fila?
Quase um milhão de almas perambulam em nossas consciências.
Elas não têm para onde ir. São fogos-fátuos, ou vultos opacos.
A grande fábula do céu cedeu, faz tempo, às torres que erigimos.
Nelas ecoam buzinas, ruminam máquinas; passos, vozes, gemidos (...)”


“Incendiários do apocalipse tropical, seguidores do indigitado,
A contaminar as ruas e os dias com secreções mentais.
A arma entre o indicador e o polegar atira contra a razão.
O vírus atravessa por entre seus gritos, em torpe comunhão.
Quantas dessas criaturas irão sucumbir à própria loucura?
Pobres defensores da besta, meros viventes da terra plana.
Caricatos cavaleiros da discórdia, da balbúrdia, da dissolução.
Os pactários do caos! Atores da farsa dos servos da legião.”


“Agora já invades as florestas; e teu caminho não foi barrado.
Não se freia teu ímpeto; e segues no encalço de nossas aldeias
Tão sofridas, ao abandono, e vítimas de tantos vilipêndios.
És praga solta que avança ao norte, és o ávido galope da morte.
Ceifas os povos da floresta, irmãos da terra, guardiães das origens.
Tu, sem ajuda das moiras, cortas os fios de vidas raras e preciosas.
Se um cacique morre, se um curumim expira, se um pajé falece,
Um saber nos falta, são as matas que calam. E avulta o descaso.
Mais de 150 povos contaminados. Mais de 700 mortos nas aldeias.
O genocídio consentido. O crime será um dia punido e execrado?”


“A primavera será de saudades, tempo de encontros anulados,
Missas e cultos em memória dos entes queridos.
Emparedados em casa, no refúgio das máscaras,
Sofremos de solidão, ansiedade e síndrome das paredes.
Paramos junto aos pórticos, sem ânimo nem ângulo.
As lágrimas secaram? Ainda saberemos cantar?”


“Abril e maio foram os mais cruéis dos meses.
Túmulos e valas a céu aberto em todos os lugares.
Aos milhares: mortos, enfermos, curados, convalescentes.
Em campo de guerra, corpos indefesos e armas desiguais.
Cidades em crise, sem comércio, sem emprego, sem planos.
Entre nós, cinco mil mortos. ‘E daí?’, desdenha o indigitado.
Os técnicos somam as perdas. Mortos. Mortos. Mortos.
Médicos, enfermeiros, funcionários – salve, oh heróis!”


“A mulher me deu flores no ano-novo, e eu não sabia o que dizer.
Uma tarde fomos caminhar pela orla, a maresia ofuscava o ar.
Um rio de águas podres buscava a cura nos braços do mar.
O corpo da cidade fervilhava febril, prestes às dores.
Havia barulho de motores, ar viciado, mormaço, odores.
Futuros mortos cruzavam nosso caminho, distraídos.”


“E tu vais aqui te alastrar. E brecar o samba, e matar a bola,
E parar a dança, e ocupar os campos e ruas e avenidas para nos matar.
Dos condomínios para as favelas; das mansões para os barracos,
Das madames às domésticas, dos patrões aos empregados,
Dos clientes aos funcionários, dos filhos aos pais, dos netos aos avós,
De vizinho a vizinho, és o sopro da morte, de pulmão a pulmão (...)”



Presentes no livro-poema “A terra em pandemia” (Mondrongo, 2020), de Aleilton Fonseca, páginas 42, 43, 47, 40, 11, 35, 13 e 30, respectivamente.

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