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Dez passagens de Buddhadeva Bose no romance Meu tipo de garota

Buddhadeva Bose (foto daqui)


          “(...) ‘Então, será que tudo é ilusão? Nada permanece? Você que é escritor, por que não conta para nós?’.
          O magrinho pareceu envergonhado de receber assim o título de escritor, mas não demorou a responder.
          ‘A memória permanece. Por fim apenas as lembranças permanecem, e nada mais.’
          ‘E qual é o valor da memória?’
          ‘Nenhum’, anunciou alegremente o homem de Delhi. ‘Ela corrói o trabalho, desperdiça o tempo, deixa a gente triste.’”


          “(...) Uma vela ardia sobre a mesa, grandes sombras tremiam nas paredes: parecia que a luz ia abandonando sua luta desigual com a escuridão. Eu também não conseguia lutar contra o sono. Como um pirata, o sono me cortava as mãos e as pernas; meu corpo derretia como cera, e cada vez que eu me chicoteava para não ceder, uma enorme onda de sono se erguia lá das profundezas. E enquanto eu me afogava, pensava, ó Mona Lisa, será que você também está lutando contra a morte dessa maneira, será que a morte está arrastando você para o fundo, como o sono, mas você ainda está aqui — e como! Assim que esse pensamento me vinha, sem ser convidado, o sono me abandonava, eu me sentava ereto, fitava seu rosto naquela luz tênue, Mona Lisa, com as sombras tremendo; aquele momento silencioso de grandeza, às quatro da manhã. Será que você ia morrer? Seu rosto não respondia. Estaria dormindo ou acordada? Não se podia saber. Mas eu continuava olhando, certo de que conseguiria a resposta, ela viria do seu rosto, da sua expressão, da sua voz. Notei então, espantado, seus olhos se abrirem devagar, como que respondendo, daí se dilataram e, depois de rodarem loucamente pelo quarto, pousaram em mim, e sua garganta adquiriu uma voz: ‘Quem é?’.”


          “(...) Essa é a pior coisa da idade que temos agora — parece que toda a felicidade reside no passado.”


          “A tarde chegou antes do meio-dia, a escuridão chegou antes da tarde. E então, quando a noite parecia um pouco mais pesada, de repente um grito se ergueu das entranhas da terra; levantou-se, caiu, ergueu-se de novo para o céu; o céu continuou em silêncio, as estrelas não se mexiam. De novo, como o grito do carneiro no sacrifício diante da divindade, mas não duas vezes, nem quatro vezes, nem dez vezes, e sim infinitamente. Saímos correndo lá para fora, mas por mais que corrêssemos o som nos perseguia — era o grito da mãe terra, onde se esconder dele?
          (...)
          A estrela que estava bem acima de nós foi caindo para o poente; a estrela que estava oculta se ergueu acima do horizonte; a escuridão no nascente empalideceu. Várias estrelinhas se apagaram, deixando em seu lugar uma única grande estrela, de uma luz esverdeada. Esse era o momento celestial, o instante mágico, aquele momento em que acordei e saí lá fora no dia do casamento dela, o momento em que a salvei da morte, no único bote iluminado naquele oceano de escuridão. Durante pelo menos um momento naquela noite ela fora minha; será que esse momento havia chegado outra vez?”


          “‘Eu estava pensando... estava pensando que este passeio é lindo, mas a estrada vai terminar, porque nós estamos caminhando nela.’
          Na época achei isso engraçado; agora me parece que aquela menina de catorze anos tinha dito, sem saber, palavras sábias. Nossa existência é assim: viver corrói nossa vida, todas as estradas que amamos acabam terminando porque nós seguimos por elas.”


          “(...) Os médicos nunca fazem amizade com mais ninguém, só com outros médicos. Eles não gostam de fazer amizade com outras pessoas para não aumentar o número de clientes gratuitos.”


          “E sob o escrutínio daqueles quatro pares de olhos, os que tinham feito a porta se abrir ali se detiveram. Era um casal. O rapaz segurava a porta entreaberta; não estava bem visível, mas havia indícios de um rosto, a pele avermelhada de frio, um pulôver marrom tricotado à mão e uma calça de tecido barato. A seu lado uma moça ― quase se aninhando a ele, ainda mais obscurecida. Mal se podia vê-la: apenas um lampejo de cabelo negro, uma orgulhosa risca escarlate no meio da testa, indicando ser casada, o pescoço suave e jovem, a luz branca lhe batendo de lado no rosto. Os dois pararam ali por apenas alguns momentos, disseram alguma coisa baixinho, viraram-se e se foram ― a sensação, porém, foi de uma lufada de ar quente entrando naquela sala de espera hibernal. Sem dúvida eram recém-casados, talvez de alguns meses, talvez um ano, mas estavam perdidos — ainda — em seu amor um pelo outro. Aquela leve pausa à porta; as palavras suaves trocadas, ou talvez não trocadas, depois a retirada; com tudo isso deixaram bem claro aos quatro homens de meia-idade que ainda eram habitantes do paraíso, que enquanto tivessem um ao outro não queriam mais nada, mais ninguém.”


          “(...) como é desvalido o ser humano, como é impotente! Médicos, enfermeiras, parteiras; remédios, injeções, orações — e ainda desvalido, o ser humano continua desvalido. O que estava acontecendo tinha acontecido, ia acontecer — ninguém trazia a resposta nos olhos, o rosto do médico era como uma pedra, os pais dela não tinham palavras exceto breves instruções, a mãe não conseguia nem nos olhar nos olhos — e quem haveria de dizer que durante esse tempo todo havia um velhinho encarquilhado escondido sob a aparência imaculada do sr. Dey? E quem haveria de saber que tantas lágrimas se ocultavam nas dobras azuis do céu? E será que não tínhamos mais nada a fazer além de ouvir essas lágrimas?”


          “(...) ‘O que aconteceu depois, se ele voltou a encontrar a moça, como ela se sentiu após insultar seu benfeitor, se ela costumava fingir que estava lendo junto à janela da sala, na esperança de ver mais uma vez aquele homenzarrão tão feio — tudo isso é irrelevante. A garota dos nossos sonhos, a que mora no nosso coração, Makhanlal queria vê-la, por uma vez que fosse, como uma pessoa real — e é só isso que é real, só isso importa, mais nada. Com certeza ele deve ter se casado com uma jovem escolhida pela mãe, depois que se mudaram para a casa nova — e a esta altura já deve ter sua família, seus filhos, e deve estar ganhando muito dinheiro também —, mas nenhum desses acontecimentos subsequentes pode invalidar aquele anterior. Seja lá o que for que Makhanlal precisava conseguir dessa Malati, ele já conseguiu, e é algo que ele nunca vai perder. Vocês não acham?’”


          “Tenho vontade de rir quando me lembro disso agora, mas meu coração batia de nervoso na manhã do meu casamento. Eu já tinha visto Bina em muitas situações diferentes, há muito tempo, já havia conversado muito com ela, primeiro em público, depois em particular, mas a cada vez que me dava conta de que ela estava prestes a se tornar minha esposa, que viria morar na minha casa, dormir na minha cama, que sua autoridade sobre minha vida seria maior do que a minha própria — e que tudo isso iria continuar, não por um mês ou dois, nem sequer por um ano ou dois, mas durante toda a minha vida —, cada vez que eu me dava conta disso precisava sair correndo para tomar água ou começava a andar ansiosamente pelo quarto.”


Presentes no romance “Meu tipo de garota” (Companhia das Letras, 2011), de Buddhadeva Bose, tradução de Isa Mara Lando, páginas 15-16, 119-120, 55, 140-141, 56, 75, 11-12, 140, 47 e 71, respectivamente.

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