Pular para o conteúdo principal

Dez passagens de Chris Fuscaldo no livro Discobiografia Legionária


          “Renato Russo era democrático: na banda, todos tinham que opinar e qualquer decisão devia ser tomada em conjunto. O vocalista era a cabeça pensante da Legião Urbana, mas os demais integrantes carregavam o mesmo grau de importância, dentro ou fora do estúdio, lembra José Emílio [Rondeau]: ‘Ele sabia quando o Bonfá não ia gostar, sugeria que falasse com o Dado, dizia que seria o Negrete quem responderia tal coisa. O Renato delegava’.
          Dado era sério e responsável, e Bonfá não tinha medo de dizer ‘não’ quando algo não lhe agradava ou ia contra os interesses da banda. ‘Eu era mais velho e estava na defensiva, querendo fazer valer minha autoridade de produtor. Fiz muita besteira por causa disso. E acabei brigando muito com o Bonfá. Mas depois nos desculpamos um com o outro’, conta Rondeau.”


          “O processo de composição da Legião Urbana era ‘inusitado’, como define Mayrton Bahia: ‘Era comum eles chegarem com a linha de baixo e a bateria prontas, mas sem melodia alguma. Às vezes, vinham com esboços e trabalhavam lentamente em cima daquilo. E às vezes iam rápido demais. Tive que esquecer muito do que sabia para trabalhar com a banda.’ As ideias, na maioria das vezes, chegavam soltas ao estúdio. Fragmentos que podiam ser a primeira, a segunda ou qualquer outra parte da música viravam um drama, porque o importante era montar uma melodia inteira.
          ‘Renato [Russo] escrevia uma letra livremente, tentando manter o ritmo e a métrica. Aí, ele pegava aquilo e cantava por cima da base instrumental já feita. A melodia ia surgindo num processo totalmente diferente do que eu estava acostumado’, comenta Mayrton.
          Dessa forma, apareceram, pouco a pouco, ‘Fábrica’, ‘Quase sem Querer’... Esta última ganhou de presente sobras de músicas. Parece proposital, mas o bandolim e alguns trechos finais foram colados ao que já tinha sido gravado.”


          “Renato Russo não sabia beber. Saía do estúdio para ir ao bar da esquina, porque muitas vezes não segurava a onda sóbrio. ‘Havia dias em que ele saía para comprar conhaque e alguém tinha que ir lá resgatá-lo’, lembra Jorge Davidson, que também se mantinha sempre preocupado com ‘seus’ meninos. Na época das gravações do primeiro álbum da Legião Urbana, Renato chegou a ser encontrado por funcionários da EMI-Odeon deitado com os mendigos na frente do prédio da gravadora: empolgado e/ou amedrontado com a iminência de ficar famoso, o vocalista comprou comida e bebida e ofereceu àqueles homens que moravam na rua. Inspirado no polêmico disco Beggars Banquet, dos Rolling Stones, que teve a capa (um banheiro público todo pichado) censurada, o solidário Russo promoveu um verdadeiro ‘banquete para os mendigos’.”


          “‘Índios’ foi a última a acontecer. Com uma letra muito maior do que a ‘levada’, que já estava pronta, Renato Russo não conseguia encaixar as palavras na melodia. Tentou cantar, primeiro. Na segunda tentativa, começou a recitar: ‘Quem me dera ao menos uma vez...’ Mas ainda assim as palavras não couberam. Mayrton Bahia e Amaro Moço tentaram mais de dez vezes, e tudo ia sendo gravado. O vocalista se desesperou: ‘Isso não dá! Essa letra não deu e não vai dar.’ Produtor e técnico voltaram aos recortes e às colagens, trabalho que aprenderam a fazer na época do primeiro disco e que, com a Legião Urbana, se tornou recurso constante.
          Em ‘Índios’, o mantra é feito através do teclado. Então, a gente usa o padrão da repetição e, em cima disso, trabalha o arranjo, a harmonia das linhas vocais e o diálogo entre os instrumentos’, comentou Renato. ‘Por causa da estrada, a gente aprendeu a tocar um pouco melhor. Duas notas era legal, mas a gente já sabe tocar oito notas agora.’
          A guitarra de Dado não teve vez em ‘Índios’: ‘Caberia a guitarra, mas a música já estava muito preenchida com os teclados’. A segunda versão, na qual Renato Russo recitou, foi a que ficou. Para terminar, Dado colocou o violão e um sintetizador foi usado para fazer o barulho de vento.”


          “Há imperfeições na gravação de ‘Faroeste Caboclo’, admite o produtor. O quarteto demorou a conseguir tocar a base inteira de uma vez só, sem errar. Com Renato no violão, uma hora saiu. Mas Bonfá deixou escapar um toque na caixa que não deveria entrar na melodia. ‘Foi um erro na única base que eles conseguiram fazer do início ao fim. Como já estavam muito cansados, sugeri aproveitarmos a caixa. Eu botaria um efeito de eco e iria parecer que era uma coisa de cenário, como um filme. A música tem uma história, então, olhar com esse conceito de filme foi o que nos fez conseguir preservar o som bruto da banda e ter o acabamento fonográfico’, conta o produtor.
          Ao perceber o sucesso que ‘Faroeste Caboclo’ vinha fazendo, as rádios não arriscaram perder a chance de emplacar mais um hit em sua programação e editaram a saga de João do Santo Cristo, camuflando os trechos que a Censura havia considerado mais apimentados. ‘Foi uma surpresa muito grande tocar ‘Faroeste’ no rádio. A permanência, o público é que explica’, disse Dado, já em maio de 1988, ao jornal O Globo.”


          “Um dia, ‘Pais e Filhos’ nasceu. Mas com detalhes demais. ‘Eram várias camadas de guitarra e muitos sons que sobravam. Pareciam várias músicas dentro de uma só. Voltei ao esquema de cortar e colar pedaços e peguei o que tinha de melhor em cada canal’, conta Mayrton. O mesmo aconteceu com ‘Monte Castelo’, que foi pivô de um atrito entre o produtor e Renato Russo.
          O vocalista da Legião Urbana misturou trechos da Bíblia com pedaços de poesias de Luís de Camões enquanto escrevia a letra. Durante as gravações, vários violões e um teclado com som de acordeom serviram como base para que ele tentasse cantar. ‘Rolou uma dificuldade de achar a linha melódica e ele foi gravando em vários canais. A letra estava caótica, e a base, um pandemônio’, lembra o produtor. Dado e sua esposa, Fernanda, saíram do estúdio apavorados depois de lerem o texto, manuscrito num papel em cima da mesa.
          O problema foi resolvido na mixagem, mas não antes de uma discussão. Mayrton tentava mixar de uma maneira, e Renato dizia: ‘Não é nada disso.’ O produtor testava outro jeito, e o vocalista não aprovava. Horas e horas de trabalho depois, Renato meteu a mão na mesa e desligou o som. Chateado, Mayrton subiu na cadeira e ameaçou: ‘Vou terminar este disco, queira você ou não, com você ou sozinho. Se quiser ficar aqui, fica quieto.’ O cantor não deu mais um pio até o fim daquele trabalho e, depois, declarou ter gostado do resultado final. ‘Quando coloquei a música pronta para o Dado ouvir, ele começou a chorar’, entrega Mayrton.”


          “‘O que a gente quis passar para o V era um tédio e um marasmo. Aquele disco foi feito lento de propósito’, disse Renato Russo em entrevista a Zeca Camargo para a MTV, em 1993. Antes, o músico desabafou com o repórter: ‘Eles estão fazendo com que o Brasil seja um país de assassinos. É garoto de 15 anos sendo morto pelas costas, pela polícia. É menininha de 15 anos sendo estuprada. É essa porrada na cabeça o tempo todo... Se eu falo de coisas boas, parece uma coisa irreal. Eu acho que hoje em dia os jovens estão sendo massacrados, a situação está péssima e a gente não sabe mais para onde ir. As pessoas não têm mais senso de civilidade e respeito. Para sobreviver, você tem que ter uma rede de amigos. Eu, graças a Deus, tenho isso no trabalho. Não vejo muito o Dado e o Bonfá, mas a gente faz cachorro-quente. Domingo, teve churrasco e todo mundo levou as crianças. Amigo é para se divertir.’”


          “A capa do disco passa a leveza do momento, com Dado de caçador empunhando um bandolim, Bonfá de camponês e Renato de cavaleiro medieval segurando um ramalhete de flores. Os três posaram num campo florido montado especialmente para a foto de Flávio Colker. Houve apenas um contratempo: no dia da sessão, Dado foi assaltado em frente ao estúdio. Levaram o carro e o bandolim, que teve que ser substituído por outro. A mesma inspiração rendeu o florido clipe de ‘Perfeição’, o único com superprodução e o último da banda. ‘Era para ser um lugar meio idílico, meio fantasia, um lugar lindo. E assim... Era o redescobrimento do que éramos’, conta Dado.”


          “Reginaldo Ferreira, o fã que virou roadie da Legião Urbana, exerceu um papel importante durante as sessões de mixagem de A Tempestade: o de pombo-correio. Reginaldo levava ao apartamento de Renato as fitas entregues por Dado. O vocalista as escutava e mandava de volta pelo roadie. Só que, assim como muita gente, o fã não sabia que Renato era portador do vírus HIV. ‘Ele falava que estava em depressão. Ele usava a expressão ‘depressão química’. Um dia, cheguei na casa do Renato e vi ele todo entubado, com enfermeiros em volta. Achei estranho, mas ele disse que estava bem. A partir daquele dia, fiquei grilado’, diz Reginaldo.
          Jorge Davidson, o homem que levou a Legião Urbana para a EMI-Odeon, foi convidado por Renato a fazer uma visita ao apartamento da rua Nascimento Silva, em Ipanema, assim que A Tempestade ficou pronto. O cantor queria saber a opinião do ex-diretor artístico da sua gravadora, que já trabalhava na Sony Music. Jorge sugeriu que o amigo regravasse as vozes, mas Renato foi enfático. ‘Ele disse que era problema do Dado e que tinha Pro Tools. Eu disse que ele não era cantor de Pro Tools, que era o maior do Brasil, e ele desconversou. Minha ficha foi caindo... Saí de lá, liguei para o Rafael para saber se estava tudo bem. Ele pediu para que eu não falasse nada a ninguém sobre o que tinha acontecido na casa do Renato’, conta Jorge.”


          “Falecido em 2004, Tom Capone — na verdade Luís Antônio Ferreira Gonçalves — nasceu em Brasília, em 1966. Foi guitarrista da Peter Perfeito, banda contratada da RockIt!, selo de Dado. No Rio de Janeiro, iniciou sua carreira de produtor, tornando-se um dos mais bem-sucedidos nomes do mercado fonográfico brasileiro. Trabalhou em discos de Gilberto Gil, Lenine, Raimundos e Maria Rita, e fez parte da produção de Uma Outra Estação. Apesar de seu nome não constar nos créditos de A Tempestade, ele ajudou Dado durante o processo de gravação do disco. Então, comandou a ‘arrumação’ do álbum seguinte, lançado após a morte de Renato Russo, e assinou a coprodução ao lado do guitarrista. Na época, Capone era diretor do AR Estúdios.
          ‘Entrei nesses projetos para dar uma força para o Dado. Tanto que no Tempestade não tem os meus créditos, pois eu só produzi as guitarras, apesar de estar ligado em tudo que eles estavam fazendo. Aí, quando o Renato morreu, o Dado me chamou para fazermos o outro disco’, contou Capone ao site tantofaz.net em 2000.
          A guitarra, o violão e até a percussão de Capone estão em Uma Outra Estação (...)”


Chris Fuscaldo (foto: Tatynne Lauria)

Presentes no livro “Discobiografia Legionária” (Leya, 2016), de Chris Fuscaldo, páginas 25, 37, 38, 39, 50-51, 62, 73, 84-85, 93-94, 102-103, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d